Edson Teles: Padre Renzo e suas 'memórias do cárcere'
Entre os anos de 1975 e 1980, padre Renzo visitou quatorze presídios prestando solidariedade aos detidos por razões políticas. Estas lembranças nos chegam agora, pois no último dia 28 de março ele faleceu, aos 87 anos. Sua presença, contudo, permanece na memória de seu típico sorriso e solidariedade tão amigáveis.
Por Edson Teles*, Carta Maior
Publicado 24/04/2013 11:16
Era um domingo de inverno paulistano, garoa fina, ossos congelados. Logo pela manhã, às 8 horas, o carro passa para levá-lo à sua primeira visita ao Presidio Político Romão Gomes. Padre Renzo começava a ficar conhecido junto aos presos políticos do Brasil. Entre os anos de 1975 e 1980, visitou quatorze presídios prestando solidariedade aos detidos por razões políticas. Estas lembranças nos chegam agora, pois no último dia 28 de março ele faleceu, aos 87 anos. Sua presença, contudo, permanece na memória de seu típico sorriso e solidariedade tão amigáveis.
Naquele dia 17 de julho de 1976, Renzo registrou em seu diário, sob o título “Um dia no cárcere”, um dos momentos mais emocionantes de sua vida, segundo suas próprias palavras: “dias maravilhosos e emocionantes vivi muitos em minha vida, mas talvez nenhum deles o vivi tão intensamente como aquele sábado em que me encontrei com os presos políticos do Presídio Militar de São Paulo” (Nota 1). Entre os presos encontrava-se meu pai, César Teles, condenado a alguns anos de prisão por participar de organização clandestina de oposição ao regime (à época militava no Partido Comunista do Brasil) e por ajudar a produzir e divulgar jornal de denúncia e de ação política de protesto.
César havia sido preso no dia 28 de dezembro de 1972 e passou cerca de um mês no DOI-Codi de São Paulo, órgão ligado ao II Exército, nos quais sofreu torturas e ameaças de morte, juntamente com Amelinha, minha mãe, e Criméia, minha tia, grávida de oito meses. Eu, com quatro anos, e minha irmã Janaína, com cinco, testemunhamos os resultados da tentativa de destruição dos corpos de nossos familiares (Nota 2). Nos dias que se seguiram à prisão eles testemunharam o assassinato de Carlos Nicolau Danielli. Somente após este período de repressão e violências comandadas pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra (Nota 3), César e família tiveram suas prisões oficializadas, o que gerou a abertura de processos criminais (exceto a prisão de minha tia Criméia, a qual permaneceu sem processo formal e foi encaminhada para uma dependência do Exército em Brasília, onde continuou a ser torturada e onde nasceu, sob péssimas condições, seu filho, Joca).
Na primeira audiência na Justiça Militar, no dia 11 de julho de 1973, três anos antes da visita do padre Renzo ao presídio e poucos meses após passar pelo Doi-Codi, César declarou, com coragem, os fatos por ele vividos: “sob protestos quanto à natureza daquele sequestro fomos levados para local que ignorávamos e que depois foi informado tratar-se da OBAN (Operação Bandeirantes, primeiro nome do Doi-Codi), órgão subordinado ao II Exército. Já ao entrar no pátio Carlos Danielli foi espancado a vista de várias pessoas que lá estavam. Quando eu também, no mesmo local, comecei a ser agredido, minha esposa protestou informando minha condição de diabético e tuberculoso, atitude que foi repelida com um soco em seu rosto por um senhor alto que mais tarde soube tratar-se do comandante da Oban (o hoje coronel Ustra)” (Nota 4). Esta foi sua entrada na ordem jurídico militar da ditadura, caminho que o levaria mais tarde ao Presídio Romão Gomes.
O acesso ao presídio era precedido de uma ampla via toda contornada por uma bela mata, com macacos e outros bichos. Eu me preparava todo para ir visitar meu pai, pois era um dia muito esperado durante a semana. Parte do ritual da visita era fantasiar que eu era uma espécie de agente secreto cuja missão seria passar pelo sistema repressivo e levar ou trazer mensagens dos presos. Para entrar no presídio, mesmo nós crianças passávamos por uma minuciosa revista. Ao perguntar para minha mãe a serventia daquilo recebi certa explicação sobre o medo dos militares de que entrássemos com coisas escondidas. Isto mexeu com minha imaginação e pedi para minha tia que fizesse uma pequena abertura no forro de minha jaqueta. Nele colocava algum pequeno objeto, com o qual deveria passar pela revista sem ser descoberto e, de dentro do presidio, também sairia com algo. Poderia ser uma moeda, uma pedrinha, qualquer coisa que me permitisse burlar a revista. Certa vez fui “pego”. Havia colocado um potinho de tinta guache e, devido ao volume, a policial que me revistou localizou minha “ação revolucionária”. Contudo, ela não conseguia retirar o objeto porque não tinha acesso à abertura falsa. Como eu simplesmente não respondia às suas perguntas ela teve, então, que pedir autorização a um oficial para liberar minha entrada. Realizei-me. Entrei com o “perigoso” potinho de guache.
Neste dia em que Renzo conheceu os presos do “Romão Gomes”, os procedimentos foram os mesmos: “o sargento pede-me somente a carteira de identidade e pergunta-me quem desejo visitar. Sou revistado. Fazem-me tirar os sapatos para averiguar se por acaso levo armas”. Tal como nós, sua santidade também era tida como motivo de desconfiança para os policiais. É emocionante conhecer quem foi padre Renzo por suas próprias palavras, sempre generosas: “a coisa que mais me impressionou neste contato com os presos políticos, também nos que foram mais horrivelmente torturados, é a falta absoluta de ódio, de ressentimento, de desespero, de derrota”.
Lembro-me de como os presos eram orgulhosos de suas ações, mesmo com toda a incerteza sobre suas consequências e a necessidade de agir politicamente, inclusive de dentro da cadeia. Nós, crianças, podíamos circular entre as varias rodas de discussões que se formavam, pois os adultos achavam que não entendíamos nada. E era verdade. Ouvíamos sobre as diferenças entre as organizações, as articulações para os contatos fora da prisão, notícias da nascente campanha pela anistia. Renzo ouvia a todos e, me parecia, exercia a função do contato com o mundo exterior. Sua presença mostrava o tamanho da sua abertura. Ele não estava ali para buscar pedidos de perdão, confissões, muito menos distribuir castigos. “Inicialmente estou um pouco embaraçado. Não sei como iniciar o diálogo, fazendo as perguntas sinto um certo pudor. Desejaria conhecer muitas coisas, conhecer a historia de cada um, até os mínimos particulares, mas tenho medo de abrir feridas cicatrizadas… São eles mesmos, no entanto, que com muita delicadeza e bondade vem ao encontro do meu embaraço. Posso agora fazer qualquer pergunta. Toda resposta é sempre serena, clara, corajosa”. Sua presença ampliava o mundo limitado pelos altos muros cinzentos que cercavam o pátio central.
Renzo era uma pessoa sorridente, emotiva e carinhosa, sendo atencioso com as crianças. Brincava de dar um tapinha em nosso rosto e sempre corríamos quando ele chegava, rindo e nos divertindo, como se fosse um jogo de pega pega. Justamente em sua primeira visita não pudemos acompanhá-lo; naquela semana havia sido registrado um caso de tuberculose entre os presos, inviabilizando a visita das crianças. No frio dia de julho de 1976, em meio às aconchegantes conversas com os presos e ainda impressionado, Renzo recebe um presente de César. “A esta altura César, com um gesto delicadíssimo que me fez chegar lágrimas nos olhos, me dá um presente oferecido quase com timidez, é o original da famosa poesia de sua filha poetisa: ‘dói gostar dos outros’. É verdadeiramente o original, escrito a lápis, com todos os erros de ortografia próprios de uma criança de oito anos. O pai renuncia àquela preciosidade inestimável para oferecê-la a mim, padre maluco, como sinal de amizade e gratidão. Este milagre de poesia foi um presente de Janaína ao pai no cárcere, e o pai oferece-a a mim. É o tesouro mais precioso que levei comigo dos cárceres”.
Dói gostar dos outros
Oi, vocês todos.
Boa tarde para todos.
E um viva para todos.
Uns versos vou escrever.
Vou começar… atenção.
Preste atenção.
Dói o peito chorar.
Dói os seus olhos chorarem.
Dói nós viver.
Dói ver os outros chorarem.
Dói a natureza chorar.
Dói gostar dos outros.
Dói cair uma pedra no seu pé.
Dói falar tchau, amigos. (Nota 5)_
Notas
1) Cf. Emiliano José. “As asas invisíveis do padre Renzo”. São Paulo: Casa Amarela, 2002.
2) Depoimento sobre esta história disponível em: http://www.ufrgs.br/ufrgs/noticias/ufrgs-lanca-livro-de-depoimentos-sobre-ditaduras-do-cone-sul, acessado em 15 de março de 2013.
3) Este evento gerou o processo da família Teles contra o coronel Ustra, ganho em sentença final datada de 2013. Leia mais em: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5732.
4) A ficha referente ao seu processo encontra-se disponivel em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica, acessado em 17 de abril de 2013.
5) Autoria de Janaína de Almeida Teles, em 1976, aos 8 anos de idade.
Edson Teles* é professor de filosofia política na Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp). Organizou, junto com Cecilia MacDowell e Janina Teles, o livro ‘Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil (Hucitec, 2009) e, com Vladimir Safatle, ‘O que resta da ditadura?’ (Boitempo, 2010).