Publicado 08/04/2013 09:38 | Editado 04/03/2020 16:28
Aos 84 anos, depois de décadas de idas e vindas entre o Brasil e a Europa, o artista plástico cearense Sérvulo Esmeraldo é só mansidão. Autor de uma obra com repercussão internacional, ele hoje ainda se diz apenas um eterno menino interiorano
O que há em comum entre um barquinho soltando fumaça no alto da Ponte Metálica; um bastão gigantesco em pleno calçadão da Av. Beira-Mar, próximo à feirinha; três cones prateados em frente à Catedral de Fortaleza e os quadrados que geram uma ilusão de óptica em frente à Universidade Federal do Ceará (UFC), no Pici? Essas são apenas algumas das principais obras de Sérvulo Esmeraldo espalhadas por Fortaleza, dialogando com o cenário iluminado da Cidade.
Nascido em meio à paisagem interiorana, Sérvulo foi se descobrindo artista. Sua obra versa com a pintura, a gravura, a escultura e a ilustração. Ele credita a natureza como responsável por tudo o que aprendeu. A plenitude da fazenda que o acolheu nos seus primeiros anos de vida no Crato é até hoje mote para suas observações sobre o mundo. Ali, em meio ao roçado e aos cavalos, passou a confeccionar seus primeiros brinquedos – já os protótipos de grandes e pequenas obras que estampariam paisagens Ceará afora.
Arte pública
Intelectual, Sérvulo estudou em Fortaleza, São Paulo e Paris. Por onde passou, embebeu-se de conceitos estéticos até encontrar na arte pública, de acesso livre e que dialoga com o ambiente, uma de suas identidades. Suas esculturas e quadros, além da capital cearense, também podem ser apreciadas em São Paulo, Rio Branco (no Acre) e outras inúmeras cidades de que sua memória já nem dá conta.
Durante a conversa que aconteceu no aconchego de seu lar, nas idas e vindas de suas reminiscências, ele resgatou as origens e alguns dos momentos mais marcantes de sua trajetória. Confira abaixo, os principais trechos da entrevista.
Em primeiro lugar. Qual a origem do seu nome? É um nome diferente e é seu nome de batismo?
Sim. Sérvulo era um amigo do meu pai. Esmeraldo é sobrenome mesmo.
Em que momento o senhor começou a fazer suas obras?
Cresci na fazenda. Criança mesmo, eu já fazia meus brinquedos com papel, madeira, com umas tiras de bambu. Pedia para algum adulto cortar os pedaços de madeira e depois eu montava meus brinquedos. Eu também já desenhava muito. Foi aí que comecei.
E a xilogravura, como ela surgiu na sua vida?
Eu era jovenzinho e meu pai trouxe pra mim uma publicação que se chamava Xilogravura no Brasil. Mostrava tudo da área que estava sendo produzido no Brasil pós-guerra. Então ele me explicou como eram feitas aquelas gravuras e resolvi fazer também. A primeira que fiz era a imagem de um homem segurando uma enxada.
A paisagem interiorana era sua principal fonte de inspiração?
Nosso pensamento é muito ligado ao que nos envolve, isso é natural. O ambiente em que a gente vive é importante na nossa formação. Tudo aquilo acabou influenciando na minha forma de viver, naquilo que faço.
Em que momento o senhor decidiu ser artista?
Eu não decidi nada, foi a natureza que decidiu.
Corrigindo: em que momento o senhor se percebeu artista?
Desde o primeiro desenho, já percebia que gostava daquilo. Como nunca houve intervenção da minha família, fui me interessando cada vez mais.
Ainda na adolescência, o senhor saiu do Crato rumo a Fortaleza. Já era com intuito de fazer algum curso específico, de conhecer outros artistas?
Eu também não decidi sair do Crato. Na verdade, eu fui expulso do colégio em que estudava porque eu pensava e lá era proibido pensar. (risos) Era um colégio católico. Numa noite conversei sobre um assunto com meus colegas e o padre, que não vou citar o nome, ficou sabendo no dia seguinte.
Qual o assunto?
Não me lembro. Mas lembro que durante o sermão na igreja o padre falou muito mal de mim. Eu não fui à missa, mas meus primos me contaram. No dia seguinte, pedi um cavalo ao meu pai e fui falar com o padre, tomar satisfação. Eu disse: “O senhor está me proibindo de pensar?”. Ele respondeu com grosseria: “Cale a boca, seu boca suja!”. Aí respondi com mais grosseria ainda. Fui expulso e fiquei proibido de estudar por quatro anos, mas minha avó, Julieta Brígido Cordeiro, aposentada dos Correios, enviou um pedido ao Getúlio Vargas para que eu pudesse voltar a estudar. Ela era uma mulher de força e de ação. Então ele autorizou, mas só poderia estudar em Fortaleza. Então fui estudar no Lyceu do Ceará.
Aqui, o senhor passou a fazer parte da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), teve contato com Aldemir Martins, Inimá Pádua, Antônio Bandeira. O que isso representa na sua carreira?
A SCAP estava precisando de uma renovada, então chamaram três novos artistas: eu, Zenon Barreto e Goebel Weyne. Éramos os mais jovens. Nos reunimos e começamos uma nova fase na SCAP, mais interessada na arte contemporânea. Lá foi uma escola porque antes eu trabalhava copiando coisas de revistas. Lá eu comecei a ter experiências criando obras com mais identidade porque os scapianos eram interessados no mundo, lá ficávamos sabendo de tudo do que acontecia na Europa.
Nessa época, o senhor conheceu o pintor suíço Jean-Pierre Chabloz, que passou a ser seu tutor. O que isso representa no seu estilo?
Na verdade, eu o conheci no Crato, no meio da feira. Vi que ele desenhava as pessoas e fiquei encantado. Ele morava em Fortaleza, era casado com uma brasileira. Então fui ficando curioso, conversei com ele. Ele era muito culto, com ampla formação em artes plásticas. Comecei a desenhar meus familiares e ele passou a palpitar nos meus trabalhos. Por muito tempo ele fez análise dos meus trabalhos, como um professor.
O senhor participou da 1ª Bienal Internacional de São Paulo, em 1951. Logo depois passou a residir em São Paulo. Mudar para lá era realmente uma vontade para um homem tão telúrico? Fortaleza não comportava todos os seus objetivos?
Fui para São Paulo para fazer o último ano do colegial. Depois passei para Arquitetura na Universidade Federal de São Paulo (USP), mas abandonei o curso porque queria me dedicar às artes plásticas, à pintura. Lá conheci Aldemir Martins. Nos reuníamos em bares, conheci vários críticos, artistas. Fui para lá porque era possível estar em contato com muita gente influente.
E como o senhor começou a trabalhar no jornal Correio Paulistano?
Justamente nesses bares, acabei conhecendo pessoas do jornal. Eu não bebia, ia mais para conversar, trocar experiências. Então me convidaram para trabalhar lá. Passei a desenhar diariamente sobre o tema do dia. Eles (os jornalistas) me davam textos, eu os lia e criava uma ilustração. E assim foi por três anos. Eu também já fui jornalista profissional. (risos)
Em 1956 o senhor fundou o Museu da Gravura, no Crato, sua terra natal. Esse retorno era no intuito de contribuir com seu lar, com seu berço?
Não. Eu tinha muitos amigos lá. Eram amigos interessados na arte, por isso resolvemos um dia criar o museu. A gravura é muito presente por lá e é um meio interessante de expressão. Basta esculpir na madeira, não custa nada e gera obras de muita qualidade. Mas não foi para dar retorno, foi simplesmente porque lá não tinha absolutamente nada. Hoje não tenho ido muito por lá.
Depois de realizar mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), o senhor viajou para a Europa com bolsa do governo francês. Como o senhor conseguiu essa bolsa?
Minha tia era professora de francês. Meus primos já tinham estudado fora, então ganhei todos os livros e ela foi me ensinando. Nós conversávamos em francês. Um dia, o embaixador francês no Brasil viu meus trabalhos em São Paulo e me sugeriu que tentasse a bolsa. Preenchi uns documentos, fiz a solicitação e enviei ao Rio de Janeiro, que era a capital do País na época. Em Paris estudei litografia na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (Escola Nacional Superior de Belas Artes). Estudei lá por dois anos.
Na Europa, o senhor estudou a gravura de Albrecht Dürer e teve orientação de Johnny Friedlaender. Como foi essa experiência na Europa? Que novos conceitos o senhor aprendeu?
Nessa época passei a fazer a gravura em metal, que é diferente da gravura em madeira. A gente cobre a chapa com um verniz, depois faz o desenho, depois mergulha em um ácido, insere a tinta nos veios e depois carimba. Dá mais trabalho. O Johnny Friedlaender foi meu professor, depois passei a trabalhar no ateliê dele. Aí comecei a estudar a arte cinética, obras que têm uma dinâmica de movimento. Vou mostrar para você entender. (apontando um quadro na sala de casa). São quadros e objetos movidos pela eletricidade estática. Esse não está funcionando porque o clima aqui é diferente, mas é só passar a mão e essas pecinhas se mexem e fazem um barulho.
Sua esposa, Dodora Guimarães, é curadora de artes plásticas. São trinta anos de união. Em que ponto a relação de vocês influencia na sua criação?
Não tem tanta influência. Cada um tem sua vida. Somos casados, mas no trabalho é cada um no seu espaço.
Como é que está sua rotina hoje? O senhor ainda tem produzido suas obras?
Atualmente eu tenho um ateliê nos fundos de casa. Lá produzo minhas obras. Eu faço o projeto e tenho um assistente, o Haroldo. Ele trabalha comigo há 22 anos. Quer dizer, ele me aguenta há 22 anos.
O senhor tem muitas obras espalhadas por Fortaleza, algumas estão em estado de deterioração. O que o senhor pensa sobre isso?
É dever do Governo do Estado e da Prefeitura a manutenção dessas obras. Não fui eu quem colocou as obras lá sozinho, fiz com apoio deles, é preciso cuidar. A manutenção tem que ser não só sobre as minhas obras, mas sobre qualquer obra de arte que esteja na rua.
O que o senhor pensa sobre a produção em artes visuais feita hoje no Ceará? Tem acompanhado essa produção?
Sim. A produção local tem altos e baixos, mas acho que agora estamos em um momento bom. Temos grandes produtores de arte da nova geração e não é só na escultura, mas também na pintura, nas outras artes.
Quando o senhor olha para trás e vê o menino que nasceu no Crato, migrou para Fortaleza, depois São Paulo e finalmente a França, como se sente? Quem é o Sérvulo Esmeraldo hoje?
Não se assuste: sou o menino do Crato, não mudei nada. Aprendi muita coisa e fui assimilando tudo, os conhecimentos estão todos embutidos, mas sou a mesma pessoa.
Fonte: O Povo