Noam Chomsky: O que move a política externa dos Estados Unidos
Abaixo, um trecho do livro ‘O que Tio Sam Realmente Quer’, do escritor americano Noam Chomsky. Ele mergulha, nesta passagem, na política externa dos Estados Unidos, e dedica várias linhas ao Brasil. Vamos focalizar a América Latina, e começar olhando para os direitos humanos.
Por Noam Chomsky*
Publicado 03/04/2013 20:01
Um estudo feito por Lars Schoultz, um destacado acadêmico especialista em direitos humanos da América Latina, mostra que “a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos “latino-americanos que torturam seus cidadãos”.
Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio.
Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman, revelam uma estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana e fornecem uma explicação: ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas.
Em comparação com este guia de princípios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na insignificância.
E a elevação do padrão de vida? Isso foi supostamente tratado na Aliança para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para as necessidades dos investidores norte-americanos.
A Aliança fortificou e ampliou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, como milho e feijão, cultivadas para o consumo local.
Com o programa da Aliança, por exemplo, a produção de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz um “milagre econômico” em que o PNB – Produto Nacional Bruto – sobe, enquanto a maioria da população morre de fome.
Quando se segue tal orientação política, a oposição popular aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. (O uso do terror é profundamente arraigado em nosso caráter.
Nos idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a “eficácia salutar” do terror em se tratando das “hordas misturadas de índios e negros sem lei”.
Ele escreveu isso para justificar a violência de Andrew Jackson, na Flórida, que praticamente exterminou a população nativa e deixou a província espanhola sob o controle americano, impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua sabedoria.)
O primeiro passo é o uso da polícia; ela é decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento e eliminá-lo antes da “grande cirurgia” (como é chamada nos documentos de planejamento) ser necessária.
Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército dos países da América Latina – particularmente a região do Caribe e da América Central – é tempo de derrubar o governo.
Os países que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob os governos capitalistas democráticos de Arévalo e Arbenz, ou a República Dominicana, sob o regime capitalista democrático de Bosch, tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos Estados Unidos.
O segundo passo é utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relações estreitas com os militares de países estrangeiros, porque essa é uma das maneiras de derrubar um governo que saiu fora do controle.
Assim foram assentadas as bases para os golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonésia, em 1965.
Antes desses golpes, éramos bastante hostis aos governos do Chile e da Indonésia, mas continuávamos enviando armas.
Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. O mesmo raciocínio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irã via Israel, desde o início de 1980.
De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos, esses fatos eram conhecidos já em 1982, muito antes de haver reféns.
Durante o governo Kennedy, a missão dos militares latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de “defesa hemisférica” para “segurança interna” (que basicamente significa guerra contra a própria população).
Essa decisão fatídica implicou a “direta cumplicidade [dos Estados Unidos]” com “os métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himler”, no julgamento retrospectivo de Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de contra-insurgência, de 1961 a 1966.
O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando a derrubar a democracia brasileira, que se estava tornando independente demais.
Enquanto os Estados Unidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituíam um estado de segurança nacional de estilo neonazista, com repressão, tortura, etc.
Isso provocou uma explosão de acontecimentos semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfério, desde os meados de 1960 até 1980 – um período extremamente sangrento.
(Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial.
Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)
Os militares agem de maneira típica para criar um desastre econômico, seguindo frequentemente receita de conselheiros norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os civis administrarem.
Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos em geral para a maior parte da população, etc.
Essas medidas colocam o poder decididamente nas mãos das classes dominantes e de investidores estrangeiros (“estabilidade”), além de reforçar as duas clássicas camadas sociais do Terceiro Mundo – a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miseráveis e sofredores.
A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas – a menos que as forças populares queiram entrar na arena política. Neste caso, os militares talvez tenham de reinstalar a “estabilidade”.
O Brasil é um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um país muito bem dotado de recursos naturais, além de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das nações mais ricas do mundo.
Mas graças, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao tão aclamado “milagre econômico” que se seguiu ao golpe (sem falar nas torturas, assassinatos e outros instrumentos de “controle da população”), a situação de muitos brasileiros foi, durante muitos anos, provavelmente parecida com a da Etiópia – e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.
Em 1993, três décadas depois do golpe militar, o Brasil tinha uma taxa de mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka.
Um terço da população vivia abaixo da linha da miséria e, nas palavras de uma revista dedicada aos países pobres, “sete milhões de crianças abandonadas pediam esmola, roubavam e cheiravam cola nas ruas.
E para milhares delas a casa era um barraco na favela… ou cada vez mais um pedaço de terra embaixo da ponte”.
Isso é o Brasil, um dos países de natureza mais rica do planeta. A situação era semelhante em toda a América Latina.
Apenas na América Central o número de pessoas assassinadas pelas forças apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970 até meados dos anos 1990, girava em torno de duzentos mil, ao mesmo tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e a reforma social, foram dizimados.
Essas façanhas qualificam os Estados Unidos como fonte de “inspiração para o triunfo da democracia em nosso tempo”, nas admiráveis palavras da revista liberal New Republic.
Tom Wolfe conta-nos que a década de 1980 foi “um dos grandes momentos de ouro da humanidade”. Como diria Stalin: “Estamos deslumbrados com tanto sucesso.”
*Noam Chomsky é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense. É professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
**Publicado no Diário do Centro do Mundo