Saul Leblon: Dilma enfrenta a pátria rentista; mídia uiva
Uma dia de estupefação e revolta no circuito formado pelos professores banqueiros, os consultores e a mídia que os vocaliza.
Por Saul Leblon, na Carta Maior
Publicado 29/03/2013 11:04
Na reunião dos Brics, na África do Sul, nesta quarta-feira (27), a presidenta Dilma afirmou que não elevará a ração dos juros reivindicada pelos batalhões rentistas, a pretexto de combater a inflação.
A reação instantânea das sirenes evidencia a cepa de origem a unir o conjunto à afinada ciranda de interesses que arrasta US$ 600 trilhões em derivativos pelo planeta.
Equivale a dez voltas seguidas no PIB da Terra. Trinta e cinco vezes o movimento das bolsas mundiais.
Os anéis soturnos desse garrote reúnem – e exercem – um poder de extorsão planetária, capaz de paralisar governos e asfixiar nações. Gente que prefere blindar automóveis a investir em infraestrutura. O Brasil tem a maior frota de carros blindados do mundo.
E uns R$ 500 bi estocados em fundos de curto prazo; fora o saldo em paraísos fiscais. Carros blindados, dinheiro parado, paraísos fiscais e urgências de investimento formam a determinação mais geral da luta política em nosso tempo.
Em Chipre, como lembra o correspondente de Carta Maior em Londres, Marcelo Justo, o capital a juros compunha uma bocarra equivalente a 67 bilhões de euros, uns US$ 90 bilhões de dólares. Três vezes o PIB. De um país com população menor que a de Campinas.
A fome pantagruélica desse organismo requeria rações diárias indisponíveis no ambiente retraído da crise mundial. A gula que quebrou Chipre é a mesma que já havia quebrado a Espanha, Portugal, Irlanda, Islândia e alquebrado o mercado financeiro dos EUA. A falência cipriota assusta o mundo do dinheiro não por suas dimensões.
Mas porque ressoa o uivo cavernoso de uma bancarrota, só anestesiada a um custo insustentável na UTI mundial das finanças desreguladas. No Brasil o mesmo uivo assume o idioma eleitoral ao gosto do dinheiro graúdo: "dá para fazer mais".
O governo Dilma acha que sim.
Mas com a expansão do investimento produtivo. Não com arrocho e choque de juros. O país ampliado por 12 anos de políticas progressistas na esfera da renda e do combate à pobreza, não cabe mais na infraestrutura concebida para 30% de sua gente.
A desproporção terá que ser ajustada em algum momento. Como o foi, com viés progressista e investimento pesado, durante o ciclo Vargas. Sobretudo no segundo Getúlio, nos anos 1950. Mas também o foi em 1964.
Em versão regressiva feita de arrocho e repressão contra as reformas de base de Jango, no golpe que completa 49 anos neste 31 de março. O que se assiste hoje guarda uma diferença política importante em relação ao passado.
Nos episódios anteriores, o conflito de classe entre as concepções antagônicas de desenvolvimento seria camuflado pela vulnerabilidade externa da economia.
Um Brasil estrangulado pelo desencontro entre a anemia das exportações e o financiamento das importações colidia precocemente com o seu teto de crescimento. O gargalo do investimento se realimentava no funil das contas externas. E vice versa.
Era um prato cheio para o monetarismo posar de arauto dos interesses da Nação. E golpeá-la, com as ferramentas recessivas destinadas a congelar o baile. "Quem está fora não entra; quem está dentro não sai". Durante séculos, essa foi a regra do clube capitalista brasileiro.
Hoje, embora a pauta exportadora se ressinta de temerária concentração em commodities, não vem daí o principal obstáculo ao investimento.
O país dispõe de reservas recordes (US$ 370 bi). Tem crédito farto no mercado internacional. O relógio econômico intertemporal é favorável ao financiamento de um ciclo pesado de investimentos em infraestrutura.
Quem, afinal, veria risco em financiar a sétima economia do planeta, que, em menos de uma década, estará refinando a pleno vapor as maiores descobertas de petróleo do século 21?
O desencontro entre o Brasil que somos e aquele que podemos ser deslocou-se do gargalo externo, dos anos 1950/60/80 para o conflito aberto entre os interesses da maioria da sociedade e os dos detentores do capital a juro.
Assim como em Chipre, na Espanha, nos EUA ou em Paris, o rentismo aqui prefere repousar num colchão de juros reais generosos, blindado por esférico monetarismo ortodoxo.
Migrar para a esfera do investimento produtivo, sobretudo de longo prazo, como requer o país agora, não integra o seu repertório de escolhas espontâneas.
É essa prerrogativa estéril que os professores banqueiros do PSDB cobram pela boca e pelo teclado do jornalismo econômico, escandalizado com a assertiva defesa do desenvolvimento feita pela presidenta Dilma. Presidenciáveis risonhos que se oferecem untados em molhos palatáveis às papilas monetaristas e plutocráticas vão aderir ao jogral.
“Esse receituário que quer matar o doente em vez de curar a doença está datado; é uma política superada", fuzilou Dilma.
Previsível, o dispositivo midiático tentou desqualificar o revés como se fora uma demonstração de ‘negligência com a inflação’. Um governo que trouxe 50 milhões de pessoas para o mercado de consumo minimizaria a vigilância sobre a inflação? Seria o mesmo que sacar contra o seu maior patrimônio político.
O governo Dilma optou por abortar as pressões de preços de curto prazo com desonerações. E enfrentar o desequilíbrio estrutural com um robusto ciclo de investimentos. São lógicas dissociadas da receita rentista.
Aqui e alhures, a obsessão mórbida pela liquidez descolou-se da esfera patrimonial para a dos rendimentos financeiros. Não importa a que custo social ou político. Sua característica fundamental é a preferência parasitária pelo acúmulo de direitos sobre a riqueza, sem o ônus do investimento físico na economia.
A maximização de ganhos se faz à base da velocidade e da mobilidade dos capitais, sendo incompatível com o empenho fixo em projetos de longa maturação em ferrovias, hidrelétricas ou portos.
Durante a década de 1990, as mesmas vozes que hoje disparam contra o que classificam como "intervencionismo da Dilma", colocaram o Estado brasileiro a serviço dessa engrenagem.
A ração dos juros oferecida no altar da rendição nacional chegou a 45%, em 1999. Um jornalismo rudimentar no conteúdo, ressalvadas as exceções de praxe, mas prestativo na abordagem, impermeabilizou essa receita de Estado mínimo com uma camada de verniz naval de legitimidade incontrastável.
A supremacia dos acionistas e dos dividendos sobre o investimento –e a sociedade– tornou-se a regra de ouro do noticiário econômico. Ainda é.
A crise mundial instaurou a hora da verdade nessa endogamia entre o circuito do dinheiro e o da notícia.
Trata-se de uma crise dos próprios fundamentos daquilo que o conservadorismo entende como sendo ‘os interesses dos mercados’. Que a mídia equipara aos de toda a sociedade.
Dilma, de forma elegante, classificou essa ilação como uma fraude datada e vencida. De um mundo que trincou e aderna, desde setembro de 2008.
A pátria rentista uiva, range e ruge diante de tamanha indiscrição.