Os Conselhos de Medicina e a defesa do direito de abortar
A maioria dos conselheiros federais e dos presidentes dos 27 Conselhos Regionais de Medicina aprovaram um entendimento para apoiar mudanças no Código Penal ampliando os casos de aborto legal até a 12ª semana de gestação em qualquer situação.
Por Leonardo Sakamoto, em seu blog
Publicado 25/03/2013 12:13
“Defendemos o caminho da autonomia da mulher”, afirmou Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina, à repórter Johanna Nublat, do jornal Folha de São Paulo. “Não estamos liberando o aborto. Vamos continuar julgando os médicos que praticam o aborto ilegal, até que, um dia, o Congresso Nacional torne o aborto não crime.”
Aproveito o ensejo para resgatar uma discussão que travei aqui com os leitores e rendeu boas análises. Perdoem a cara de figurinha repetida, mas é preciso reafirmar que defesa do direito ao aborto é diferente de defesa do aborto.
Na Minha opinião, o novo entendimento comunicado pelo CFM é um golaço dos representantes dos médicos brasileiros. Não há defensora ou defensor do direito ao aborto que ache a interrupção da gravidez uma coisa fácil e divertida de ser feita, equiparada a ir à padaria para comprar um Chicabon.
Também não seriam formadas filas quilométricas na porta do SUS feito um drive thru de fast food de pessoas que foram vítimas de camisinhas estouradas. Também não há pessoa em sã consciência que defenda o aborto como método contraceptivo. Aliás, essa ideia de jerico aparece muito mais entre as justificativas daqueles que se opõem à ampliação dos direitos reprodutivos e sexuais do que entre os que são a favor. A interrupção de uma gravidez é um ato traumático para o corpo e a cabeça da mulher, é sim a decisão sobre a interrupção de uma futura criança, tomada após uma reflexão sobre uma gravidez indesejada ou de risco.
Defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida (nem sei porque estou gastando pixels explicando algo que deveria ser óbvio, mas vá lá). E sim que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção.
É uma questão bastante prática. O aborto hoje é legal para quem é rico. Oito entre cada dez colegas jornalistas paulistanos, por exemplo, sabe onde fica uma clínica particular. Por ter usado os serviços, por conhecer alguém que tenha recorrido a elas.
Hoje, o “direito” ao aborto depende de quanto você tem na conta bancária. Afinal de contas, mulher rica paga R$ 4 mil e pronto. Mulher pobre se vale de objetos pontiagudos ou remedinhos vendidos a torto e direito sem controle e que podem levar a danos permanentes. A discussão não é quando começa a vida, sobre isso dificilmente chegaremos ao um consenso, mas as mulheres que estão morrendo nesse processo. Negar o “direito ao aborto” não vai o diminuir o número de intervenções irregulares, eles vão acontecer legal ou ilegalmente – gastando, inclusive, preciosos recursos do sistema público de saúde. Abortos mal feitos causam 9% das mortes de mulheres grávidas, 25% dos casos de esterilidade e são a quinta causa de internação hospitalar de mulheres, e acordo com dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
Mas aborto é mais do que um problema de saúde pública. Negar a uma mulher o direito a realizá-lo é equivalente a dizer que ela não tem autonomia sobre seu corpo, que não é dona de si. “Ah, e o corpo do embrião/feto que está dentro dela, seu japonês endemoniado do capeta?” Na minha opinião – e na de vários outros países que reconheceram esse direito, ela tem sim prevalência a ele.
Ou podemos entregar a questão da saúde pública aos cuidados da Igreja Católica. Certamente, ela terá a coragem de pôr em prática ações que o Estado não toma. Os problemas sociais serão resolvidos com base no Código de Direito Canônico e, por que não, na reedição da bula Cum ad nihil magis, do Santo Ofício. Por exemplo, condenar médicos que fizerem abortos, mesmo que nos raros casos hoje previstos em lei, a uma eternidade de privações no limbo – já que não se fazem mais fogueiras em praças públicas como antigamente – vai por um ponto final na questão.
Revolucionário, nesse sentido, foi o então arcebispo de Olinda e Recife José Cardoso Sobrinho, que excomungou os médicos envolvidos no aborto legal feito por uma menina de nove anos, 1,36 m e 33 quilos, grávida de gêmeos do padrastro que a estuprava desde os seis anos de idade. “Os adultos, quem aprovou, quem realizou esse aborto, incorreu na excomunhão. A Igreja não costuma comunicar isso.
Agora, a gente espera que essa pessoa, em momentos de reflexão, não espere a hora da morte para se arrepender”, disse em 2009. Não consigo deixar de lembrar, nessas horas, dos atores do Monty Python gritando alucinados “queimem a bruxa, queimem a bruxa!” Isso seria engraçado, apenas fait divers se, em épocas de eleições, os candidatos não vendessem sua alma à igreja na busca por votos, prometendo em troca a manutenção do controle simbólico sobre o corpo dos cidadãos. E se muitos médicos não levassem esse discurso a sério.
Defendo incondicionalmente o direito da mulher sobre seu corpo (e o dever do Estado de garantir esse direito). É uma vergonha ainda considerarmos que a mulher não deve ter poder de decisão sobre a sua vida, que a sua autodeterminação e seu livre-arbítrio devem passar primeiro pelo crivo do poder público e ou de iluminados guardiões dos celeiros de almas, que decidirão quais os limites dessa liberdade dentro de parâmetros. Parâmetros estipulados historicamente por…homens, veja só.
É extremamente salutar que todos os credos tenham liberdade de expressão e possam defender este ou aquele ponto de vista. Mas o Estado brasileiro, laico, não pode se basear em argumentos religiosos para tomar decisões de saúde pública ou que não garantam direitos individuais. A justificativa de que o embrião tem os mesmos direitos de uma cidadã nascida é, no mínimo, esquisito. Dá vontade de fazer cafuné em quem defende isso e explicar, pausadamente, que não se pode defender que minhas crenças, físicas ou metafísicas, se sobreponham à dignidade dos outros.