Saul Leblon: Dilma cresce; mídia busca um ‘Capriles Nieto’
A restauração conservadora fareja frestas e flancos para romper o colar de governos de centro-esquerda que, nos últimos dez anos, estendeu suas contas formando um cinturão de políticas progressistas no interior da América Latina.
Por Saul Leblon*, na Carta Maior
Publicado 20/03/2013 09:29
Vive-se, grosso modo, um interregno entre dois ciclos.
Um, que parece ter se completado com a consolidação de políticas sociais e salariais, que remodelaram a dinâmica da cidadania e do consumo em largas fronteiras da América Latina.
Em graus distintos, esse estirão foi favorecido pelo afrouxamento do gargalo externo, marcado por uma década de preços altos das commodities.
Não há automatismos na história.
Políticas deliberadas destinaram esse impulso ao resgate parcial de uma exclusão secular, aprofundada pela hegemonia livre mercadista dos anos 90.
A história regional registra outros ciclos de valorização de produtos primários sem contrapartida social equivalente.
O fôlego externo enfrenta agora o ar rarefeito da estagnação planetária escavada pela desordem neoliberal.
Abre-se um descompasso entre o fluxo da história e o das receitas.
A América Latina depende de investimentos pesados, que liguem o impulso original do consumo a uma inadiável adequação da oferta e da logística à escala ampliada da demanda e dos direitos.
O cinturão de governos progressistas debate-se para erguer os pilares dessa transição num ambiente internacional que deixou de favorecê-lo.
A queda de braço para destravar o novo ciclo é a linguagem cifrada através da qual o aparato conservador põe a campanha na rua, enquanto busca o porta-estandarte capaz de encabeça-la.
Nessa corrida contra o tempo afloram os Enriques Peña Nieto, os Henrique Capriles, os Aécios e Eduardos Campos.
Não são feitos da mesma argila, sublinhe-se.
Mas se prestam como gargantas do mesmo sopro, sendo notável a semelhança entre o que dizem e o prometem.
A saber:
a)‘Manter o que deu certo’: ninguém, nem Capriles, nega os avanços sociais da última década; explicitamente não se vocaliza a intenção de revogar políticas e programas que resgataram milhões de pessoas da pobreza e da miséria na região;
b) ‘Dá para fazer mais’:a platitude, aparentemente ingênua, interliga Capriles a Campos, por exemplo. Repita-se, não são argila do mesmo rio. Emparedados pelos inegáveis trunfos dos que pretendem substituir, porém, apresentam-se como capazes de superá-los, sem contradizê-los naquilo que se tornou quase irreversível;
c) Mais liberdade para o mercado agir: Enrique Peña Nieto, presidente mexicano recém-eleito, um misto de Collor com Aécio, com sorriso fixo dirigido permanentemente à plutocracia, como Campos, é o que explicita de forma mais assumida o projeto conservador em gestação.
d) ‘Retomar as reformas’ : num ambiente desgastado pela incapacidade progressista de se unir em um projeto convincente para a sociedade, o engomadinho mexicano – jovem na aparência—ganha espaço para resgatar velhas bandeiras. O óbvio reiterado mais uma vez na sua ascensão: o neoliberalismo colapsado extrai sobrevida da ausência de projeto e lideranças críveis, à esquerda.
e) ‘Um novo acordo político’: nesse interregno em que o velho nada tem a inovar, mas o novo se mostra desprovido de liderança consistente, Peña Nieto transita com desenvoltura mórbida. Empurra uma a uma as reformas regressivas na goela de uma sociedade exausta, cujo sistema político desmoralizado lhe deu carta branca para agir.
Em que direção?
A reforma trabalhista mexicana flexibiliza direitos, legaliza contratos temporários, barateia demissões.
A da energia tem abrangência pomposa, mas objetivo específico: privatizar a Pemex, a Petrobras mexicana. Tudo em nome da pátria –a exemplo do nacionalismo tardio de Aécio.
O idioma dominante é a língua dos acionistas. Bolsas e bolsos estão sequiosos por um desmonte que reduza investimentos e engorde a rubrica dos lucros nos balancetes; loteie reservas de petróleo; gere mais sobras a serem distribuídas.
Os pregões borbulham em sinal de gratidão. A mídia 'especializada' urbi et orbi sanciona a receita e com ela açoita os governantes infiéis.
O México se oferece como a meca da restauração neoliberal.
Já tivemos paradigmas em melhor situação.
Cerca de 2/3 dos 2.500 municípios mexicanos estão dominados por gangues sanguinárias do circuito drogas/crimes.
É a herança mais ilustrativa de décadas de governantes e políticas das quais Peña Nieto é um protagonista agressivo, mas equipado com sorriso 24 horas e cabelos impecavelmente lustrados à mousse.
O golpe mais flamejante desse manequim do neoliberalismo recosturado reúne ingredientes ao gosto dos savonarolas .
A prisão de uma liderança sindical corrupta, decana do professorado mexicano, franqueou-lhe os atabaques da mídia para sapatear sobre as organizações dos trabalhadores. Leia-se: afastar a influência sindical e dos movimentos populares na formulação das políticas setoriais.
A desfrutável sofreguidão com que protagonistas desse mesmo enredo se oferecem à mídia e à plutocracia no caso brasileiro não deve levar a erros de avaliação.
A temporada de caça à Dilma, insista-se, não reflete apenas apetites menores.
As respostas às arremetidas conservadoras terão pouca eficácia se ficarem restritas a aspectos do caráter de seus portadores.
Um ciclo econômico envia sinais de exaustão.
O novo que pede para nascer dificilmente vingará se depender exclusivamente da compreensão dos mercados e da grandeza patriótica dos investidores privados.
Cortejado, o dinheiro graúdo inaugurou a temporada do 'vamos ver quem dá mais'.
A campanha conservadora instalou seu pé de palanque ostensivo no noticiário econômico.
Dia sim, dia não, ele aciona o bordão: o capital privado "não sente mais segurança" para investir no país , tantas são as medidas do governo (a maioria, diga-se, de incentivo ao próprio).
Pesquisas divulgadas nesta 3ª feira mostram recorde de aprovação ao governo. A leitura do aparato conservador será apertar ainda mais as turquesas.
Não cabe ilusão, eles vão radicalizar.
Cozinha-se o governo Dilma, por enquanto, no banho-maria do desgaste capcioso.
Ademais dos esforços para atrair investidores aos projetos prioritários, o governo e seu lastro de forças progressistas só renovarão a confiança da sociedade na sua liderança em 2014 se, de fato, se mostrarem capazes de exercê-la.
O dinheiro de que o país necessita para investir existe. Fundos de investimentos estocam mais de R$ 500 bilhões, para citar uma das gavetas do cofre forte.
A poupança deve servir à sociedade.
Cabe ao Estado induzir a migração do dinheiro ocioso em investimento produtivo, o que requer uma estratégia firme, ancorada no indispensável lastro político. (Leia nesta pág. a reportagem 'Os ultramultimilionários')
Se hesitar ou se acanhar, se renunciar, enfim, ao papel indutor, deixará aberto o espaço para aqueles que deveriam ser conduzidos conduzirem. E escolherem um porta-voz.
Diferentes versões de ‘Capriles Nietos’ já se posicionam sorridentes na gondola pré-eleitoral. Ofertam-se à degustação de um 'Brasil melhor'
É só escolher e colocar no carrinho.
* Saul Leblon é jornalista