A saúde do Sistema Único
Apesar de resultar do processo democratizante dos anos 1980, o SUS, consagrado na Constituição Federal, não consegue concretizar seu projeto inicial: o de fornecer assistência de saúde universal e eficiente a todos os brasileiros. Segundo livro de técnico do Ipea, fortes interesses privados prejudicariam desempenho do setor público, que padece de falta de recursos por parte do Estado.
Publicado 11/03/2013 12:48 | Editado 04/09/2020 18:34
Foto: Revista do Ipea – Felipe Pilotto
O título embute uma saudável provocação: SUS: o desafio de ser único (Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2012), livro do economista e Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea Carlos Octávio Ocké-Reis. Doutor em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós doutor pela Universidade de Yale, Ocké-Reis mostra não ser possível falar em “desenvolvimento humano”, “democracia” e “igualdade de oportunidades”, sem que haja garantia efetiva de saúde pública e universal no país. O Sistema Único de Saúde não conseguiu, até agora, ser o que anuncia e promete. Não é único e não garante atendimento médico e hospitalar às dezenas de milhões de brasileiras e brasileiros pobres que dele necessitam.
O SUS exibe inúmeras conquistas no campo da saúde pública, a começar pelas vitoriosas campanhas nacionais de vacinação e por êxitos de alcance mundial na batalha contra a Aids. Ocké-Reis assinala que:
O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde e o segundo em todo o mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, em número de transplantes de órgãos. Presta assistência à saúde para milhões de pessoas, a qual vai desde assistência básica até tratamentos que envolvem complexidade tecnológica média e alta, bem como serviços de emergência. Além disso, conta com excelente programa de vacinação, reconhecido internacionalmente. Realiza também pesquisa em diversas áreas da ciência, inclusive com células-tronco.
Contudo, fortes interesses privados podem minar o Sistema. O autor sintetiza esse quadro na apresentação da obra:
“No Brasil, a luta política por melhores condições de saúde e de assistência médica em todos os níveis de atenção é vital. Exige uma consciência profunda acerca da determinação social das doenças, das desigualdades de acesso aos serviços de saúde, do barbarismo da violência urbana e da tragédia cotidiana dos acidentes de trabalho e de trânsito. Esse quadro desafia o Estado a transformar a realidade epidemiológica e as instituições de saúde, visando à melhoria do bem-estar da população brasileira”.
Significado histórico
Ocké-Reis ressalta que a defesa do Sistema vai muito além da área da saúde: “Sem projeto estratégico para fortalecer o SUS, uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas, passa a fazer parte do ideário de setores economicistas no Estado e na sociedade. (…) O subfinanciamento do SUS e a captura da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revelam uma opção, consciente ou não, pelo crescimento e pela autorregulação do mercado de planos, valorando positivamente o subsistema privado, a estratificação de clientela e a não unicidade do SUS”.
A existência de um vasto mercado de “planos de saúde” estimula e acelera um cenário em que a União e os entes federados deixam de financiar adequadamente o SUS, ao passo que agentes privados beneficiam-se de recursos públicos para o setor.
O lançamento da obra, em novembro, coincidiu com o anúncio da aquisição da Amil, até então o maior grupo nacional do setor de planos de saúde, pela multinacional norte-americana UnitedHealth. A compra, no valor de R$ 10 bilhões, fere a Constituição Federal (CF). Em seu artigo 199, a Carta é clara: “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no país, salvo nos casos previstos em lei”. Em 1998, o artigo foi regulamentado pela Lei nº 9.656. Nenhum dispositivo autorizou a presença de capital externo no setor.
Apesar disso, a transação foi avalizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, ao que parece, ignorada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Mais do que listar e denunciar com competência acadêmica as principais mazelas da área, SUS: o desafio de ser único apresenta propostas para superar o quadro atual de subfinanciamento, privatização, desmantelamento parcial e deterioração da saúde pública. Controvertidas, elas têm a virtude de contribuir para que o debate sobre o SUS seja recolocado na agenda acadêmica e política nacional.
Ato em Salvador, em 2009, com a presença, dentre outros, de Francisco Batista, presidente do Conselho Nacional de Sáude (CNS), e do secretário de saúde da Bahia, Jorge Solla/ foto: Ivan Baldivieso Agecom
Diagnóstico da crise
No capítulo “Dilemas para a constituição do Sistema Único de Saúde”, Ocké-Reis examina algumas contradições:
“Para começar, constata-se existência de sistemas público e privado paralelos. Apesar de a Constituição designar que a assistência à saúde é direito social e que os recursos devem ser alocados com base na necessidade de utilização e não pela capacidade de pagamento, parte dos cidadãos pode ser coberta por planos privados de saúde e, ao mesmo tempo, utilizar os serviços do SUS, resultando na dupla cobertura para aqueles que podem pagar ou podem ser financiados pelos empregadores: trabalhadores de média e alta rendas, executivos e funcionários públicos.”
Mais à frente, ele destaca que: “Os planos de saúde foram patrocinados pelo padrão de financiamento público (isenções fiscais) desde 1968, seguindo, nesse aspecto, o modelo liberal dos Estados Unidos, o qual se fundamenta em subsídios e em benefícios do empregador”.
Trata-se, segundo ele, de uma “americanização perversa” do sistema. Em suas palavras, isso a remete à prática de “lobby no Congresso Nacional sobre questões-chave da assistência à saúde, evitando a ampla negociação entre as partes interessadas para fortalecer o sistema público”.
Nesse contexto, assinala Ocké-Reis, um aspecto preocupante é que, “uma vez que os trabalhadores do polo dinâmico da economia estão cobertos pelo mercado de planos de saúde”, “seus representantes políticos não apoiam o SUS no Congresso como seria necessário”. Essa é uma questão-chave. Basta ver que embora a Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central brasileira, inclua a defesa do SUS, assim como a da Previdência Social, entre suas bandeiras históricas, diversos dos sindicatos a ela vinculados contratam planos privados para seus filiados.
Conquista da cidadania
Paulo Capel Narvai, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, reforça os argumentos do pesquisador. “O diagnóstico é correto. O SUS é, efetivamente, uma notável conquista da cidadania brasileira que, já nos estertores da Guerra Fria, conseguiu sepultar um sistema público dual, construído ao longo do século 20, no qual conviviam instituições vinculadas aos setores de saúde e de previdência em nível nacional, com superposição de atribuições e graves conflitos de competências em todos os níveis de governo”, explica.
“O SUS derivou, politicamente, da campanha das ‘Diretas Já’ para a Presidência da República, cujo impulso renovador, democrático, popular, produziu efeitos importantíssimos sobre o Congresso constituinte. Apenas essa força, originada da organização popular e dos atos públicos que levaram milhões de brasileiros às ruas e praças do país, explica que um punhado de deputados e senadores (em torno de cem) tenha conseguido obter votos majoritariamente favoráveis ao SUS, num Congresso constituinte de 559 membros.”
Na interpretação de Narvai, a “esmagadora maioria desses constituintes não queria o SUS, pois não queriam nem ouvir falar de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil”, nisso consistindo “a principal contradição do período do nascimento do SUS”, o qual, com toda a sua generosidade, “emergiu num contexto internacional marcado pelo fim da União Soviética, queda do Muro de Berlim e pela avalanche neoliberal que varreu o mundo, produzindo efeitos devastadores sobre os sistemas de proteção social universais, que incluíam o direito à saúde”. Assim, o SUS, tal como delineado na CF, jamais se efetivou, conclui o professor da USP.
“Prevaleceram, nos anos que se seguiram à sua aprovação, as forças políticas que não tinham compromisso com sua efetivação. Todos os governos federais desde então deram sua contribuição para sepultar o ‘SUS constitucional’, começando com o governo Collor, que se recusou a descentralizar o sistema, manietando Estados e municípios, centralizando decisões e impondo um tremendo subfinanciamento cujos efeitos se fazem sentir até hoje. Nem Lula, nem Dilma conseguiram reverter esse cenário. Não obstante o avanço de várias políticas sociais na última década, o financiamento do SUS, como proporção do PIB, segue inferior a muitos países da América Latina, como Argentina, Chile e México.”
Há uma lacuna na obra. SUS: o desafio de ser único menciona apenas en passant as organizações sociais (OSs) que hoje são parte ativa do processo de privatização do SUS. Também não aborda a ação de fundações privadas ditas “de apoio” e “filantrópicas” (as quais credenciam-se como OS), que cobram “taxa de gestão” sobre as verbas SUS e implantaram a “segunda porta” – a cessão de determinada porcentagem de leitos e serviços a pacientes de planos privados – em alguns dos hospitais públicos mais importantes do país.
Agência mais forte
Uma das principais propostas de Ocké-Reis diz respeito à ANS, instituída pela lei 9.961/2000 com a finalidade de “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país” (artigo 3°). Ele propõe “redefinir os marcos administrativos de gestão da ANS e o modelo regulatório vigente, com o intuito de afirmar e valorizar o preceito normativo da agência reguladora no tocante ao interesse público”.
Ao questionar a validade de uma gestão “pautada pelo pragmatismo, contingenciada pelos conflitos do cotidiano e cingida por um olhar microeconômico”, o autor pretende que o leitor reflita “sobre a necessidade de tornar a ANS capaz de organizar o mercado na perspectiva do interesse público, o que acabaria por justificar e legitimar sua existência no contexto do sistema de saúde brasileiro”. Tal projeto “deve prever mudanças na Constituição de modo a alterar o modelo regulatório visando à integração dos sistemas público e privado de saúde”. Para isso, seria necessário alterar o artigo 199 da CF e o artigo 21 da Lei 8.080 (“a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”).
Estado capturado
Há enormes dificuldades pela frente, pondera o professor Narvai. “O Estado brasileiro está capturado pelos interesses que querem acumular e reproduzir capital no setor saúde”. Em suas palavras, esses interesses fazem valer sua vontade nos três poderes da República. No Legislativo, dois em cada três deputados tiveram parte de suas campanhas eleitorais financiadas por empresas que operam no mercado de planos de saúde. Assim, pode não ser necessário alterar a Constituição quanto ao que dispõe sobre saúde. Por outro lado, a proibição do financiamento privado de campanhas eleitorais faria um bem enorme à saúde dos brasileiros.
Mais que isso, sublinha ele: “Respeitar os conselhos de saúde e as deliberações das conferências de saúde sobre ‘planos de saúde’ parece-me de importância estratégica para viabilizar o controle público da atuação dessas empresas. Sem isso, dificilmente a ANS será capaz de ‘organizar o mercado na perspectiva do interesse público’, conforme proposto. Em todo caso, a ANS teria de ter seus dirigentes nomeados a partir de listas construídas democraticamente, de modo transparente e sob controle público, com participação do Conselho Nacional de Saúde”.
Sonia Fleury, professora titular da Fundação Getulio Vargas e uma das principais lideranças da reforma sanitária no Brasil, faz uma ponderação ao livro: “Ele parte da ideia de se criar um único sistema. Sou contra isso, o ‘Sistema Nacional de Saúde’, para juntar o público e o privado. Carlos Octávio [Ocké-Reis] e eu temos o mesmo objetivo, a defesa do SUS, mas penso que essa é uma estratégica politicamente equivocada. Se formos rever a Constituição, vamos perder”. Ela afirma que o setor privado, “que não tem para onde se expandir mais”, advoga a mesma proposta, que a seu ver implica enormes perigos: “O SUS se transformaria num financiador de OSs, PPP (parcerias público-privadas) ou numa articulação mais definida com os planos de saúde”. A professora da FGV defende um movimento inverso: “Maior transparência, maior controle, maior fiscalização. Tornar mais clara a separação entre os sistemas”.
Renúncia fiscal
Desde as primeiras páginas do livro, o autor combate a falta de recursos para o Sistema e a renúncia fiscal que favorece as operadoras de planos de saúde e outros agentes particulares. Ele enfatiza que “a expansão do setor privado se realizou mediante o patrocínio de incentivos governamentais, dentre os quais a renúncia de arrecadação fiscal, tendo como contrapartida o subfinanciamento e o sucateamento dos serviços públicos de saúde”.
A renúncia fiscal nos moldes atuais vigora desde 1991 (ano base 1990), sem qualquer limite para a dedução dos gastos das famílias no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Situação semelhante ocorre entre os empregadores, no Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ). “O incentivo econômico subjacente à renúncia acabou por favorecer a expansão da oferta hospitalar privada e, principalmente, o crescimento do mercado de planos de saúde”. O objetivo de Ocké- Reis, tanto quanto recuperar recursos para o Tesouro, é acabar com o estímulo fiscal às adesões da classe média aos planos de saúde.
A magnitude dos recursos envolvidos nas isenções “salta aos olhos dos analistas de políticas de saúde”, lembra o autor, que estimou a renúncia fiscal em saúde, no ano de 2006, em R$ 12,5 bilhões (montante que englobava IRPF, IRPJ, medicamentos e filantropia).
A professora Sonia Fleury vai mais longe. “O absurdo maior é a Desvinculação dos Recursos da União (DRU)”, emenda constitucional que faculta ao governo a livre realocação de 20% do orçamento de todas as áreas para o pagamento das dívidas financeiras. “Esta é, a meu ver, a luta prioritária, mais fácil de ganhar do que querer acabar com as isenções da classe média”.
A professora destaca, como um novo e preocupante fator de subtração de verbas, as desonerações que a administração federal vem promovendo: “Afetam IPI, Cofins e vão afetar profundamente a área da saúde”. Para ela, as isenções fiscais apontadas por Ocké-Reis estão se generalizando pela área industrial. “Tentamos, por meio da Lei da Transparência, inquirir o Ministério da Fazenda sobre o impacto das desonerações, mas não obtivemos resposta”, relata. “Defendo a completa extinção da renúncia fiscal, sem gradualismos de qualquer tipo.
Recepção do pronto-socorro do Hospital Regional do Gama, em Brasília/ foto: Marcelo Casal Jr.
Tecnocracia e modelo
Entre as medidas apontadas pelo autor encontra-se a criação de operadoras-modelo, as benchmarks, que poderiam servir como “um farol para ancorar as ações da ANS quanto à regulação de preços, à cobertura, à qualidade da atenção médica” etc., e assim “contribuir para superar a cultura tecnocrática mais ou menos presente nas ações da ANS e para integrar o mercado ao SUS, resistindo à captura dos oligopólios privados”. A exemplo das anteriores, esta proposta parece abrir uma polêmica conceitual e política.
“O Estado tem que dizer o que não pode – em matéria de cobertura dos planos, por exemplo – mas não estabelecer qual o melhor modelo. Não é função da regulação fazer isso. A função da regulação é coercitiva, é dizer o que é proibido, impedir as más práticas”, argumenta a professora Sonia. Pela mesma razão, ela não vê com bons olhos a criação de um “plano de saúde cogestionário entre servidores públicos federais e governo federal, contando com a participação das instituições públicas”. Ela finaliza dizendo que “O SUS chegou a um ponto tão ruim que os planos sabem que a classe média não tem para onde correr. Veja o que aconteceu no Chile: a melhoria do setor público levou gente da classe média a desistir dos planos. Isso mudará o mercado, e a regulação é para fiscalizar o mercado”.
Fonte: Revista do Ipea – Desafios do Desenvolvimento