Alberto Villas: Isto não é uma crônica
É talvez um lamento, um choro, um desgosto, uma raiva, um grito parado no ar. Um desassossego, uma angústia que não desgruda do peito nunca. Vou explicar direitinho.
Por Alberto Villas*
Publicado 01/03/2013 17:21
A primeira vez que ouvi Gilberto Gil cantando Não chore mais, bem naquele pedacinho em que ele fala em “amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais” eu estava longe daqui, mais precisamente a dez mil quilômetros da grama do aterro, onde hipócritas disfarçados rondavam ao redor. Estava na casa de Michele porque Michele tinha um toca-fitas onde poderíamos ouvir aquela fita Basf 60 com a embalagem alaranjada e preta – me lembro bem agora – que chegou do Brasil pelo correio, correio que andava tão arisco.
Tomávamos vinho e comíamos coração de alcachofra no vinagrete quando o toca-fitas começou a rodar. Essa música nunca mais me saiu da cabeça e ainda hoje ouço sempre que posso numa versão em CD bem diferente daquela fita que às vezes patinava no toca-fitas de Michele naquele apartamento minúsculo no 20ème, em Paris.
Hoje resolvi ouvir de novo e sempre que ouço me lembro de Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenório Jr, aquele que no dia 18 de março de 1976, uma quinta-feira, se apresentou ao piano acompanhando Vinicius de Moraes e Toquinho no Teatro Gran Rex de Buenos Aires debaixo de nuvens que anunciavam anos de chumbo.
Depois do show, Tenório Jr voltou ao Hotel Normandie, bem ali na rua Rodriguez Peña e deixou um bilhete colado na porta do quarto escrito assim: “Vou comprar cigarro e um remédio”.
E nunca mais voltou.
Nunca mais foi visto, sumiu do mapa como centenas de pessoas que naquela Argentina de 1976 desapareceram assim pra nunca mais. Tenorinho – era assim que os mais íntimos chamavam Tenório Jr – tinha 35 anos e deixou pra trás três filhos, uma mulher grávida de oito meses e uma obra solo pequena, apenas um disco de vinil chamado Embalo, gravado em março de 1964, aquele março.
Fico assim amargurado porque os anos vão passando, já são quase quarenta e nada de Tenorinho. Claro que ninguém mais tem esperança de vê-lo dedilhando o seu piano, tocando “Fim de Semana em Eldorado”, “Carnaval sem assunto”, “Estou nessa agora” ou “Inútil Paisagem”. Dez anos depois de seu desaparecimento, Cláudio Vallejos, ex-integrante do serviço secreto da Marinha Argentina fez uma revelação: Tenorinho, que tinha uma barba enorme e uns óculos de muitos graus, uma isca de polícia naqueles tempos sombrios, havia sido abordado na rua à noite depois que o show acabou. Ele sabia com detalhes que o pianista carioca das Laranjeiras tinha sido sequestrado, torturado e morto por forças de uma ditadura que se anunciava.
Foi assim que o grupo Tortura Nunca Mais fechou o seu relatório sobre o nosso Tenorinho: Francisco Tenório Cerqueira Junior, brasileiro, passaporte número 197803, sequestrado, torturado e morto na Argentina em 1976. Era o Tenorinho que poucos no Brasil de hoje sabem quem foi, aquele que participou do disco Vagamente de Wanda Sá, onde ela canta “To Say Goodbye” ou melhor, pra dizer adeus.
Hoje só me resta ficar aqui nessa tarde de temporais em São Paulo ouvindo seu piano, sua bossa jazz, seu swing perdido no tempo e no espaço. São amarguras que teimam em não nos deixar. Acaba um disco, coloco outro. Um Vitor Jara, por exemplo, cantando “Mi vida/ mi mamá me mandó un dia ti qui ti ti”. Mas essa é outra história.
Para ouvir a música “Não Chore Mais” clique aqui.
* Alberto Villas é jornalista e tem vários contos premiados.
**Artigo publicado originalmente na Carta Capital.