Nuremberg: O nazismo no banco dos réus

Não obstante algumas insuficiências do veredicto – nomeadamente as três absolvições – o Processo de Nuremberg (1945-1946) foi um acontecimento histórico positivo. Relembrar esse processo e os crimes monstruosos que condenou é tanto mais necessário quando prosseguem e se alargam campanhas de falsificação da história e de branqueamento do fascismo.

Por Miguel Urbano Rodrigues  

Julgamento de Nuremberg

Quando o imperialismo volta a utilizar processos semelhantes de genocídio em massa. Quando forças de extrema-direita e fascistas reforçam a influência eleitoral e em vários casos ascendem ao poder ou participam nele.

Na Europa, as campanhas de branqueamento do fascismo ganharam amplitude nos últimos anos. Em livros, na televisão e em mesas redondas, historiadores, politólogos e sociólogos esforçam-se por negar, em Portugal, na Espanha, na Hungria, na Roménia que Salazar, Franco, Horthy e Antonesco tenham sido ditadores e qualificam os seus regimes de «autoritários”, afirmando que praticaram politicas musculadas. A própria ação das polícias políticas é minimizada. Os fascismos ibéricos, nomeadamente, teriam sido uma invenção dos comunistas.

Na Itália os políticos de direita vão mais longe. Partidos neofascistas têm exercido o poder e Mussolini é apresentado por destacados intelectuais como um estadista progressista, autor de uma obra revolucionária.

Assim se tenta apagar a memória em agressão à História.

Reli há dias um livro que adquiri na União Soviética e que então me lançou em profunda meditação sobre a «elite nazi» responsável pela tragédia da II Guerra Mundial: O Processo de Nuremberg, de Arkadi Poltorak, o juiz que foi chefe do secretariado soviético do Tribunal Internacional que julgou os grandes criminosos de guerra nazis naquela cidade alemã.*

Foram 22 os militares e civis então julgados. Onze, entre os quais Goering, Keitel, Jodl, Ribbentrop, Rosenberg, Streicher, Kaltenbrunner, Seyss Inquart, Sauckel, Frank e Frick foram condenados à morte e enforcados.**

 

Rudolf Hess foi condenado a cumprir prisão perpétua.

 

Os almirantes Raeder e Doenits, e Albert Speer, Schirach e Neurath, condenados em penas pesadas, foram mais tarde amnistiados e faleceram em liberdade.

 

Hitler, Goebbels, Himmler suicidaram-se nos últimos dias da guerra para escapar ao castigo. Ley suicidou-se no carcere nas vésperas da audiência. Bormann, foragido, foi também condenado à morte.

 

Schacht, Von Papen, Fritzsche foram absolvidos apesar da oposição dos magistrados soviéticos.

 

Durante a audiência, que durou 250 dias, o tribunal examinou os originais de mais de 3000 documentos, interrogou 200 testemunhas e recebeu 300 000 depoimentos sob juramento. Muitas das provas eram documentos confiscados pelos exércitos aliados nos estados-maiores alemães, em repartições públicas, e esconderijos em minas de sal, paredes falsas e subterrâneos. Os advogados de defesa defenderam os réus sem restrições, como então nos tribunais ocidentais.

 

O Procurador-Geral americano, Robert Jackson, justificou o Tribunal Internacional com estas palavras: «O que confere tanta importância a esta audiência é o facto de estes réus representarem influências nefastas que, muito tempo depois de os seus corpos se terem desfeito em pó, ainda inquietarão o mundo. Eles são o símbolo vivo do ódio racial, do reino do terror, da arrogância e da crueldade, da vontade de poder, são os símbolos de um nacionalismo e de um militarismo selvagens, de intrigas da vontade de poder, são os símbolos de um nacionalismo e de um militarismo selvagens, de intrigas e preparativos para uma guerra, no decurso da qual gerações inteiras foram na Europa transplantadas, em que homens foram exterminados, lares destruídos e toda a economia levada ao depauperamento.»

 

Roman Rudenko, o Procurador-Geral soviético, sublinhou na caracterização do Processo que era a primeira vez Historia da Humanidade que eram julgados criminosos que se tinham apossado de um Estado para fazerem dele instrumento de monstruosos crimes.

 

No veredicto emitido, o Tribunal Internacional recordou que «os campos de concentração se haviam tornado lugares de extermínio organizado e metódico», lembrando que os assassinos se compraziam em requintes de crueldade. Submetiam com frequência prisioneiros a torturas monstruosas, incluindo «diferentes experiências sobre a reação a grandes altitudes, ao tempo de vida na água gelada, ao efeito de balas envenenadas e a certas doenças contagiosas»

 

Numa inesquecível visita a Auschwitz em 1981 tive a oportunidade de ver abajures de pele humana, margarina e sabonetes confecionados com gordura humana, e maquinas que transformavam ossos humanos em adubos.

 

O livro de Poltorak chama a atenção para uma realidade esquecida: os magnatas da indústria e da finança do III Reich, Krupp, Voegler, Lowenfeld, Schroeder, Tyssen, Schnitzler contribuíram ativamente para a subida de Hitler ao poder, apoiaram as suas guerras de agressão, alguns colaboraram na estratégia da «solução final» cujo desfecho foram as camaras de gás e os formos crematórios. Só um deles, Gustav Krupp, compareceu em Nuremberg como réu, mas adoeceu e não foi ali julgado. Os americanos acabaram, aliás, por devolver à família Krupp as suas fabulosas indústrias que durante a guerra tinham ganho milhões utilizando o trabalho escravo nas fábricas de armamento.

 

No prefácio ao livro de Poltorak, o procurador soviético, L. Smirnov, presidente do Supremo Tribunal da URSS, cita os planos de Hitler para eliminar milhões de eslavos. A referência é oportuna. O genocídio dos judeus, amplamente conhecido, é justamente condenado pela humanidade.

 

Mas quantos americanos e europeus leram algo sobre o «plano de despovoamento» de que Hitler se orgulhava? Poucos.

 

Em conversa com Raushning, um familiar seu, o Führer, apos a invasão da URSS, explicou-lhe “a técnica do despovoamento”. O objetivo era exterminar 30 milhões de russos e polacos, «seres de raças inferiores que se multiplicam como larvas» e abrir os territórios ocupados do Leste à colonização alemã.

 

Lágrimas por Nuremberg
 

Transcorridos 66 anos sobre o veredicto de Nuremberg, os dirigentes das grandes potências ocidentais e influentes media internacionais evitam o tema. Tornou-se incómodo.

 

A Alemanha é atualmente o motor da Comunidade Europeia. Sucessivos governos da CDU e do SPD amnistiaram criminosos de guerra nazis. Dezenas de milhares nunca foram presos e julgados e muitos ocuparam altos cargos na Administração, no Exercito, na Policia, inclusive nos tribunais da Republica Federal. Alguns marechais da Wehrmacht envelheceram rodeados de respeito e admiração.

 

Na Grã- Bretanha e nos Estados Unidos as críticas a Nuremberg não se fizeram aliás esperar.

 

Lord Hankey, diplomata prestigiado, definiu o Processo como «perigoso precedente para o futuro”. O jornalista Belgion Montgomery, comentando a audiência, escreveu: «se um simples mortal tivesse caído da lua em Nuremberg …havia de pensar que estava no reino do absurdo total».

 

Influentes jornais ocidentais, sobretudo nos EUA, não esconderam ao longo do Processo a sua simpatia por alguns dos réus.

 

Os Estados Unidos promoveram a saída clandestina para o seu país de centenas de ex-nazis acusados de crimes graves, incluindo cientistas e militares que desempenharam funções importantes em universidades e na própria Administração.

 

Em Nuremberg, ao longo da audiência, alguns dos mais destacados nazis, inicialmente arrogantes, mudaram de atitude. Goering, Keitel, Jodl, Doenitz, na esperança de salvarem a pele atribuíram a maioria dos crimes de que eram acusados a outros réus, sobretudo a Himmler, a Kaltenbrunner e Bormann. Os aristocratas, Von Papen e Neurath, e o banqueiro Schacht, criticaram Hitler e as SS, elogiaram com frequência os EUA e não dirigiam sequer a palavra ao SS Kaltenbrunner.

 

Não obstante algumas insuficiências do veredicto – nomeadamente as três absolvições – o Processo de Nuremberg foi um acontecimento histórico positivo. Conforme salienta Arkadi Poltorak no seu livro, «o perigo que ameaçara a humanidade uniu no seio do Tribunal Internacional, como nos campos de batalha, homens de diferentes países e continentes, representantes de diferentes sistemas sociais».

 

As nuvens da guerra fria já se formavam, entretanto, no horizonte. Foi durante o julgamento que Churchill pronunciou o famoso discurso de Fulton, impregnado de anticomunismo.

 

Mas era então inimaginável que, transcorridas menos de sete décadas, o capitalismo se implantaria na Rússia, após a desagregação da União Soviética, e que crimes monstruosos contra a humanidade voltariam a ser cometidos, desta vez pelas potências que, aliadas à URSS, tinham combatido e derrotado o Reich hitleriano.

 

O imperialismo contemporâneo empenha-se em apagar da Historia a memória do fascismo.

 

Dai a atualidade permanente do belo livro de Arkadi Poltorak sobre o Processo de Nuremberg.

 

(*) O Processo de Nuremberg, Arkadi Poltorak, Edições Progresso, Moscou, 1989

(**) Durante o Processo de Nuremberg foram julgados somente 22 grandes criminosos de guerra. Posteriormente as quatro potências aliadas – Reino Unido, EUA, URSS e França – e os tribunais alemães julgaram dezenas de civis e militares nazis. As penas foram na maioria dos casos suaves.

Fonte: Rede Democrática