Nicolelis desenvolve “sexto” sentido em animais

Nenhum mamífero, inclusive o ser humano, enxerga a luz infravermelha. O nosso olho não tem receptores para esse comprimento de ondas. Mas interagimos com ela toda vez que trocamos o canal da televisão, por exemplo. Quando o botão do controle remoto é apertado, um fecho de luz infravermelha sai daí, vai para um detector dessa luz na TV e muda o canal. Só répteis têm a capacidade de vê-la.

Miguel Nicolelis - Manoel Marques/Revista Brasileiros

Pois um grupo de pesquisadores liderados pelo neurocientista e professor Miguel Nicolelis, do Laboratório de Neuroengenharia da Duke University (EUA) e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (Brasil), conseguiu a proeza de fazer com que ratos, portanto mamíferos, aprendessem a perceber essa fonte de luz.

A descoberta ocupa cinco páginas da edição de 12 de fevereiro da revista eletrônica Nature Communications. Neste domingo 17 de fevereiro, em Boston, Estados Unidos, Nicolelis falará sobre a pesquisa na reunião da Sociedade Americana para o Avanço da Ciência, entidade responsável pela publicação da revista Science.

“Nós implantamos uma neuroprótese com detector de luz infravermelha na área do cérebro que processa a informação tátil”, explica Nicolelis. “Esse sensor detectava a presença e intensidade de luz infravermelha no ambiente e a traduzia em sinais elétricos, que eram entregues no córtex cerebral. E o cérebro, de alguma maneira que ainda não sabemos como, fez com que o animal começasse a entender, encontrar e buscar essa fonte de luz como se ele pudesse ‘tocá-la’, ganhando um ‘sexto’ sentido.”

Pela primeira na história, a interface cérebro-máquina acrescentou um novo sentido em animais adultos. Confira.

As principais etapas do estudo experimental

Só que, para adquirir a habilidade demonstrada no vídeo, seis ratos passaram por um processo de aprendizagem. Simplificadamente, foi assim:

* Primeiro, os pesquisadores treinaram cada animal a se movimentar em direção a uma fonte de luz ativa, visível, onde ficava um compartimento que lhe oferecia água como recompensa.

* Depois, no cérebro de cada um, implantaram microeletrodos capazes de registrar tanto a atividade elétrica dos neurônios quanto estimular o tecido com pequenas correntes. Os implantes foram na região cortical, que processa a informação tátil gerada pelo estímulo mecânico dos bigodes faciais desses roedores.

* Um sensor de luz infravermelha, fixado ao osso frontal de cada animal, foi conectado aos microeletrodos. Programou-se o sistema de forma que um conjunto de impulsos elétricos fosse entregue ao córtex do rato toda vez que o sensor identificava uma fonte de luz infravermelha. Quanto mais o animal se aproximava dela mais aumentava a frequência dos impulsos elétricos.

*Aí, colocaram os animais na câmara de testes com três fontes de luz infravermelha que podiam ser ligadas aleatoriamente. Gradualmente as luzes visíveis foram sendo substituídas pelas infravermelhas.

* De início, quando a luz infravermelha era ligada, os animais tendiam a procurar os locais de recompensa e acariciar os próprios rostos, como se estivessem recebendo um estímulo tátil prazeroso. Isso indicou que os ratos inicialmente interpretaram os sinais elétricos como se fossem provenientes dos seus bigodes.

* Mas, ao longo de cerca de um mês, eles foram aprendendo a associar o sinal elétrico no cérebro com a fonte de luz infravermelha. Toda vez que uma fonte de infravermelho aparecia no ambiente em que estavam vivendo esse sinal era traduzido em sinal elétrico que estimulava os neurônios do córtex tátil.

* Desse ponto em diante, começaram a procurar ativamente o sinal de luz infravermelha, movimentando a cabeça para os lados, como se fosse um radar, para se orientarem na direção da fonte.

Resultado final: os ratos alcançaram uma pontuação quase perfeita no rastreamento e identificação da localização correta da fonte de luz infravermelha, usando o seu córtex da área tátil como detector de uma luz que até então fora invisível para eles. Pela primeira vez se demonstrou que uma nova fonte de informação sensorial pode ser processada por uma região cortical especializada em outro sentido, sem prejudicar a função original desta área do cérebro.

“Com esse paradigma nós comprovamos que é possível criar um ‘sexto’ sentido. Fazer com que animais percebam um estímulo que nunca experimentaram na vida e de uma forma muito peculiar”, empolga-se Nicolelis. “Conseguimos transformar um estímulo luminoso em uma forma de percepção tátil. Isso nunca tinha sido feito. Achava-se que o córtex da área tátil só servia para perceber o tato.”

“Nós criamos uma fórmula de dialogar com o cérebro que permitiu ao animal continuar processando o estímulo tátil, como sempre fez, só que agora ele ganhou um ‘sexto’ sentido”, prossegue Nicolelis. “Isso mostra que é possível aumentar a capacidade perceptual dos mamíferos, expandir os nossos sentidos. O nosso cérebro é capaz de fazer outras coisas além daquelas que a gente nasce com a capacidade de fazer.”

O “nós” a que Nicolelis se refere são ele próprio e os colegas Eric Thomson e Rafael Carra. Thomson assim como Nicolelis é também pesquisador do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (RN). Carra é estudante da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador visitante do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke. A pesquisa foi patrocinada pelo Instituto Nacional de Saúde (INH), dos Estados Unidos.

Maleabilidade do cérebro e aplicação no futuro

Os resultados suportam uma teoria que Nicolelis defende há anos. A de que o cérebro é maleável o suficiente para aprender e se adaptar a qualquer contexto em que ele é colocado.

“Até hoje, todos os trabalhos de interface cérebro-máquina eram no sentido de reparar uma função perdida, como a visão, a motricidade”, diz Nicolelis. “Mas essa pesquisa nos sugere que podemos ir além. O modelo utilizado pode nos ensinar coisas muito importantes sobre o funcionamento do cérebro, inclusive como a nossa habilidade neurológica pode ser expandida no futuro.

E a aplicabilidade desse modelo em seres humanos?

No futuro, pode ter claramente papel na reabilitação médica. Pode-se tirar vantagem de tecidos que sobreviveram a lesões.

Explico. Agora é possível imaginar que uma pessoa que ficou cega ou tem uma lesão no córtex visual pode futuramente ter implantada uma prótese que devolva a visão usando outro tecido cerebral.

A expansão de habilidades sensoriais, demonstrada pelo implante da prótese que conferiu aos ratos a possibilidade inédita de perceber luz infravermelha, poderá melhorar também a velocidade e a precisão dos exoesqueletos. Ou seja, das neuropróteses motoras como as que estão sendo desenvolvidas pelo projeto Andar de Novo [www.walkagainproject.org], para restaurar a mobilidade de pacientes severamente paralisados por acidentes.

“Essa pesquisa corrobora a ideia do exoesqueleto de corpo inteiro que estamos desenvolvendo funcionar”, diz Nicolelis, que é coordenador do projeto. “A nossa ideia é treinar o cérebro de pacientes, para incorporarem o exoesqueleto como se fosse um novo corpo deles.”

O Projeto Andar de Novo contará com um subsídio de aproximadamente R$ 34 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos – Finep, para permitir o desenvolvimento do primeiro exoesqueleto de corpo inteiro. A primeira demonstração desta tecnologia está prevista para acontecer no jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014.

Apagão científico do grupo nicolelis?!

Talvez nem todos saibam, mas Nicolelis foi o primeiro cientista no mundo a demonstrar uma interface cérebro-máquina nos anos 1990.

Foi ele também que criou o termo interface cérebro-máquina. A primeira publicação desse nome na literatura científica é de 1999, num trabalho dele.

Uma área que está crescendo tremendamente. Em 2012, pelo segundo ano consecutivo, foi eleita pela MIT Technology Review como uma das áreas de maior contribuição.

Em 2012, foi selecionada pela Science como uma das dez mais importantes. O trabalho de Nicolelis foi citado nessa lista.

A lista da Science saiu pouco depois de o Estadão dizer que o Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN) sofria um “apagão científico”.

O que não é verdade. Em reportagem publicada pelo Viomundo em 18 de dezembro, nós mostramos que o seu grupo publicou 25 trabalhos em 18 meses.

E vem mais por aí.

O trabalho publicado nessa semana pela Nature Communications é o primeiro de uma série de quatro aprovados e outros engatilhados.

Nas próximas semanas sairá mais um. Será capa de uma das melhores revistas americanas. Ele mostrará claramente a qualidade do trabalho que está sendo feito no Instituto Internacional de Neurociência de Natal.