Violência doméstica: histórias de sofrimento  e dor

O caso de estupro sofrido por uma trabalhadora de enfermagem, quando três homens invadiram sua residência e a violentaram, sob mando do ex-marido, chocou a opinião pública paranaense. A mídia deu amplo destaque ao fato, ocorrido em novembro de 2012, mas divulgado apenas agora.

O caso deixou exposta a falta de condições de denúncia para crimes como este. A enfermeira não conseguiu fazer a denúncia na Delegacia da Mulher, tendo uma resposta apenas na Delegacia de Furtos e Roubos. Antes disso ainda teve que passar por um distrito policial local.

O caso abre o debate para uma série de dados sistematizados sobre o grande número de casos de violência de gênero e violência sexual contra a mulher. O estado do Paraná é o terceiro estado do país com maior incidência de atos de violência. São 6,3 homicídios a cada 100 mil mulheres. O estado do Espírito Santo, com taxa de 9,4 homicídios em cada 100 mil mulheres, mais que duplica a média nacional e quase quadruplica a taxa do Piauí, o estado que apresenta o menor índice do país. Os dados fazem parte do Mapa da Violência contra a Mulher, levantado pelo Instituto Sangari.

Ainda assim, o debate é marcado pela parcialidade e sensacionalismo midiático. Quando, na direção oposta, especialistas na questão de gênero e luta das mulheres apontam que a opressão histórica e a cultura patriarcal arraigadas na sociedade fazem do continente latino-americano local de inúmeras violações. Heliana Hemetério dos Santos, integrante da Rede de Mulheres Negras (PR) defende que, de modo geral, no caso brasileiro, não é possível descartar os elementos culturais e históricos para análise de tal situação. Acredita que a violência doméstica e o machismo partem de uma educação que não condena tais práticas. “É uma tradição em nossa cultura, na qual bater na mulher nunca foi vergonhoso. O Estado brasileiro anda de mãos dadas com esta concepção”, denuncia.

A violência, de acordo com a militante, também é elevada entre a população feminina negra. “Houve aumento da violência no caso da mulher negra? Não. Na realidade, nós sempre estivemos no topo das estatísticas. Sempre as mais violentadas dentro e fora de casa, numa situação histórica e permanente”, denuncia.

Os números comprovam uma realidade violenta, não desvelada por completo. Os casos conhecidos como “femicídio”, de acordo com informações do Instituto Sangari, não são devidamente registrados. Ou estão encobertos sob a forma de outras ocorrências. O femicídio “é um termo político que caracteriza o homicídio de mulheres pelo fato de serem mulheres, baseado numa discriminação de gênero, em meio a formas de dominação, exercício de poder e controle sobre elas”, explica Jackeline Florêncio, secretária executiva da Plataforma Dhesca Brasil e integrante do coletivo das Promotoras Legais Populares de Curitiba. “O femicídio tem sido subnotificado. Não são anotadas devidamente as circunstâncias da morte violenta da mulher quando essa se dá no âmbito das relações de homens e mulheres sob a perspectiva de gênero. Hoje não podemos fazer uma estimativa de quantos femicídios são cometidos contra as mulheres”, reconhece texto de Maria Amélia Teles, em uma publicação das Promotoras Legais Populares de São Paulo.

Números

A realidade nacional, comparada a outros países, também é preocupante. O Mapa da Violência contra a Mulher, elaborado pelo Instituto Sangari, aponta que o Brasil é o sétimo país no mundo em número de homicídios de mulheres. Entre 1980 e 2010, foram assassinadas 92 mil mulheres no Brasil, sendo que quase metade dos assassinatos (41%) ocorreu na sua residência. De acordo ainda com o Instituto Sangari, de 1997 a 2007, 41532 mulheres morreram vítimas de homicídios.

“O Estado brasileiro tem sido ineficiente no dever de devida diligência e na aplicação de políticas e medidas destinadas a prevenir, punir e erradicar esse tipo de violência”, critica Jackeline Florêncio.

Especialistas no tema criticam a construção social que destina a mulher ao âmbito do espaço privado, ao passo que o espaço público seria uma construção destinada aos homens. Entre os homens, só 14,7% homicídios aconteceram na residência ou habitação. Já entre as mulheres, essa proporção eleva-se para 40%, de acordo com o mesmo Mapa de Violência.

“A violência está de mãos dadas com o poder patriarcal, com a educação machista. O racismo e a violência contra a mulher são estruturantes. Precisamos de formação para termos as respostas de fato que precisamos”, comenta Heliana.

Em 1994, na cidade de Belém do Pará, foi firmada a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. O princípio da convenção definia que a violência contra a mulher se dava como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Anos antes, em 1979, a Convenção sobre Eliminação de toda forma de discriminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU, é um dos primeiros marcos de condenação a estas práticas.

Essas medidas responderam, à época, pelas reivindicações dos movimentos de mulheres. Responderam, de outro lado, pela pressão de organismos como o Banco Mundial, que enxerga a inserção das mulheres com maior velocidade no mundo do trabalho uma condição de lucratividade na ótica neoliberal. “Houve uma luta muito intensa do movimento feminista e de mulheres das Américas para caracterizar e definir formalmente a violência numa região (principalmente a América Latina) tão encharcada pelo sangue feminino”, descreve Jackeline Florêncio.

Na América Latina, a situação está presente em vários países. Segundo o Mapa da Violência 2012, o Brasil, sétimo país com maior incidência de homicídios, perde apenas países como El Salvador, Trinidad e Tobago, Guatemala, Colômbia e Belize. “Na Colômbia, paramilitares, guerrilha e exército otimizam estupros como arma de guerra, no saque às comunidades”, afirma Jackeline Florêncio. Na América Central, México e Guatemala, os índices de femicídio estão entre os mais altos do planeta.

O Mapa da Violência aponta ainda que o Brasil perde para países da América Latina, como a Argentina, em 35º, o Uruguai, em 38º, e o México, em 42º. A lista é liderada pela Austrália, seguida de países europeus como a Noruega, Suécia, Finlândia, Holanda e Alemanha, além da Nova Zelândia e o Canadá. Os EUA ficam na 30ª posição no que se refere a este tipo de abuso.

Bandeiras de luta

Há uma série de lutas encampadas melo movimento de mulheres para prevenir a condição atual de violência e opressão. Uma grande lacuna se refere à falta de condição de denúncia e atendimento à mulher vítima de agressão. Heliana Hemetério dos Santos enumera a falta de delegacias da mulher, com estrutura para atendimento, viaturas e profissionais. As delegacias abrem apenas durante horário comercial, e os juizados não são instalados. Afirma também que é importante as secretarias de Educação estaduais adotarem uma política de discussão de gênero no interior das escolas. Outra pauta é a luta por casas de abrigo para mulheres vítimas de violência, algo estipulado por Lei.

Fonte: Brasil de Fato

(foto: Marcelo Casal / Agência Brasil)