EUA: Como a guerra do Iraque foi vendida para os americanos
O jornal Washington Post continua a permitir que ex-membros do governo Bush, inclusive o ex-presidente George W. Bush, distorçam a informação sobre os EUA terem declarado guerra ao Iraque em 2003, atribuindo à CIA a decisão de usar força militar.
Por Melvin A. Goodman*, no Consortium News
Publicado 07/02/2013 16:05
Na sessão “Outlook” do dia 3 de fevereiro (“Still Fighting over a flawed case for war”/ Ainda defendendo uma guerra indefensável), o Post cita memórias de seis decisores chaves, que ainda não reconhecem, mesmo dez anos depois, que a Guerra do Iraque foi decisão preparada por longa sequência de mentiras e dissimulações.
Jamais se discutiu a fundo sobre se a Casa Branca distorceu informações de inteligência que recebeu sobre o Iraque, ou se a CIA forneceu inteligência falhada à Casa Branca. A verdade é que os dois lados, a Casa Branca e a CIA participaram da distorção de informações e os dois lados montaram uma narrativa construída de mentiras, a qual foi impingida ao Congresso e ao povo dos EUA.
O artigo do Post elabora em torno da ira do secretário de Estado, Colin Powell contra funcionários da CIA que não o teriam informado de que seu discurso à ONU, em fevereiro de 2003, incluía afirmativas sem qualquer confirmação; e contra si próprio, por não ter “farejado” a fragilidade dos argumentos que a inteligência da CIA reunira a favor da declaração de guerra [Powell, em seu livro It Worked for Me: In Life and Leadership].
O que Powell não diz é que o diretor do Gabinete de Inteligência e Pesquisa do Departamento de Estado esforçou-se o máximo possível para impedir que o Secretário de Estado, ao construir o discurso que faria à ONU, apostasse todas as suas fichas na inteligência que a CIA lhe encaminhara; que ele trabalhara durante quatro dias e noites nos escritórios da CIA, para elaborar um discurso à ONU; e que alertou Powell sobre os “informes” inventados reunidos na National Intelligence Estimate de outubro de 2002 (que Powell usou para fundamentar seu discurso).
De fato, Powell não deu qualquer atenção às várias fontes confiáveis que a CIA citava e que negavam qualquer presença de armas de destruição em massa nos arsenais do Iraque; e ignorou o que lhe dizia o ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Hans Blix, que lhe disse que “Jamais antes nação alguma confiou 100% na própria inteligência, trabalhando com 0% de informação”.
O ex-diretor da CIA, George Tenet, reconhece que “informação viciada” chegou, sim, ao texto do discurso de Powell, porque a CIA teve de perder tempo demais “fazendo a faxina, para excluir o lixo que havia no texto que a Casa Branca redigiu” para o discurso do secretário de Estado à ONU. [At the Center of the Storm: the CIA During America’s Time of Crisis, livro de Tenet].
A minuta da Casa Branca foi preparada por Lewis “Scooter” Libby e Steve Hadley; o secretário Powell leu e disse: “Isso, eu não leio. É só lixo”. Na CIA, ninguém perdeu tempo com “remendar” o tolo rascunho que Libby apresentou.
O ex-vice-presidente Dick Cheney foi fator decisivo que levou Powell a rejeitar a minuta da Casa Branca preparada por Libby e Hadley; principalmente porque omitia a informação sobre laços entre Saddam Hussein e o terrorismo, que incluíam “acusações que resistirão ao teste do tempo”. [In My Time: A Personal and Political Memoir, livro de Cheney].
A fonte primária da inteligência que associava o Iraque ao treinamento para a al-Qaeda, para uso de armas biológicas e químicas, foi um empresário que fabricava essas armas, fonte da Agência de Inteligência de Defesa, e informação já existente um ano antes do discurso de Powell. Outra fonte foi prisioneiro que os EUA entregaram aos egípcios para ser interrogado sob tortura; forneceu a informação em fevereiro de 2004, sete anos antes de Cheney escrever suas memórias.
O “Outlook” que o Post publica essa semana ainda omite a ordem que o secretário de Defesa Donald Rumsfeld deu aos comandantes militares várias horas antes dos ataques de 11/9, para que “avaliassem se havia [informação de inteligência] suficientemente confiável para atacar SH [Saddam Hussein] ao mesmo tempo (não só OBL [Osama bin Laden])”.[Known and Unknown: A Memoir, livro de Rumsfeld].
Um assessor militar concedeu que era “difícil construir argumento forte”, mas o Pentágono “meteu tudo num pacote só [orig. sweep it all up]. Coisas que tinham e coisas que nada tinham a ver com o caso”. (Faz lembrar o que disse Tenet, diretor da CIA, ao presidente Bush: que reunir informes para oferecer ao povo dos EUA a favor da guerra seria “uma enterrada” [orig. slam dunk” – jogada de basquete, na qual o atacante chega sozinho à cesta e consegue “enterrar” a bola, sem marcação que o atrapalhe]).
O Post limita-se a citar Rumsfeld, que diz sempre “Eu não menti. A verdade, muito menos dramática, é que erramos”.
Assim também o presidente Bush diz, em seu livro Decision Points, que o discurso de Powell “refletiu o julgamento bem informado e bem pensado das nossas agências de inteligência, em casa e por todo o mundo” – o que também ajuda a denegrir o quadro do trabalho real que as agências fizeram e que Washington distorceu e desfez.
Além dessas vozes, também a então conselheira do secretário nacional de Defesa, Condoleezza Rice, argumenta que a CIA acreditava que Saddam Hussein teria reconstruído sua capacidade para usar armas químicas e biológicas e, inclusive, a capacidade nuclear do Iraque – embora toda a comunidade de inteligência tenha dito repetidamente ao governo Bush que os iraquianos estavam a anos de distância de poderem desenvolver alguma arma nuclear. [No Higher Honor: A Memoir of My Years in Washington, livro de Rice].
A única fonte de informação que confirmava a existência de laboratórios biológicos móveis era um agente conhecido pelo codinome “Curveball,” o qual, na verdade, negociava informação com os alemães, para tentar receber a cidadania alemã. Os alemães alertaram a CIA contra qualquer informação que lhes chegasse de Curveball; mas ninguém deu qualquer importância aos avisos dos alemães.
David Kay, chefe do Grupo de Acompanhamento do Iraque [orig. Iraq Survey Group], disse a Tenet que Curveball mentia e que não havia laboratórios móveis no Iraque, nem qualquer arma ilícita. O único resultado é que foi posto “de castigo” numa sala sem janelas, sem telefone e sem qualquer tipo de comunicação.
Todas essas memórias de ex-funcionários do governo Bush culpam os serviços de inteligência pela decisão de ir à guerra no Iraque. Mas os discursos dos próprios personagens políticos, inclusive do presidente e do vice-presidente, confirmam que estavam decididos a seguir adiante, atropelando qualquer informe que os desaconselhasse a prosseguir com os planos já existentes para criar um estado de “guerra permanente” contra o terrorismo.
Todas as falas oficiais, que foram evidentemente revistas e aprovadas dentro da Casa Branca, tanto quanto pela comunidade de inteligência, são excelentes provas de que o governo Bush operou como elo indispensável para levar informação falsa ao Congresso, ao povo dos EUA e à comunidade internacional.
O jornal Washington Post, hoje, já poderia usar memórias já registradas em livro e nos próprios arquivos, para denunciar um presidente que servia de fachada a um processo de segurança nacional já marcado por decisões sem qualquer consistência ou coerência, um processo disfuncional de segurança nacional minado internamente por tensões entre o Pentágono e o Departamento de Estado e uma CIA também já viciada por interesses político-eleitorais-empresariais.
Mas, não! Em vez disso, o Post usou aquelas memórias para “informar” que teria havido alguma espécie de disputa de vida ou morte, em torno da guerra, entre o presidente e seus principais assessores-decisores políticos.
Quase uma década depois de iniciada essa inconcebível Guerra do Iraque, o povo dos EUA merece, afinal, receber melhor informação sobre o quanto foi organizadamente engambelado por seus principais representantes eleitos e pela imprensa-empresa a qual, parece, nunca muda.
Melvin A. Goodman* é ex-analista da CIA; é pesquisador sênior no Centro de Política Internacional e professor adjunto da Johns Hopkins University. Seu livro mais recente é National Insecurity: The Cost of American Militarism [Insegurança Nacional: o custo do militarismo dos EUA] (City Lights Publisher, fev. 2013).
Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu