A lição popular que a Venezuela segue dando
Indubitavelmente, no atual marco político e independente latino-americano, a Venezuela de Hugo Chávez reacendeu a chama bolivariana no continente, no caminho da unidade pela qual tanto lutou Simón Bolívar. Em meio a um cerco midiático, segue dando exemplo de como se manter erguida contra a hegemonia injusta e opressora. O educador e analista político nicaraguense, Ricardo Zúniga, da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina, fala sobre a importante repercussão para o mundo.
Publicado 02/02/2013 11:56
Chávez foi eleito legitimamente pelo povo em outubro passado, mas não compareceu à cerimônia de posse, pois permanece em Cuba, onde se recupera de procedimentos cirúrgicos relacionados a um câncer. Mais uma vez, a guerra midiática se acirrou e uma foto plantada pelo jornal El País, na qual um paciente é registrado entubado, serviu de motivos para mais alardes sobre a saúde do presidente.
Mesmo com as manobras orquestradas pela oposição, a Suprema Corte decidiu que, por direito, Chávez poderia ter sua posse adiada. E assim está sendo.
Adital: A Venezuela sempre protagonizou o que se pode chamar de guerra midiática com relação a vários assuntos envolvendo o presidente Hugo Chávez. Mas parece que com os episódios atuais isso ficou mais acirrado e evidente. O que estaria por trás de todo esse cerco midiático?
Ricardo Zúniga: O processo bolivariano da Venezuela, liderado por Hugo Chávez, desde seu início, teve uma forte repercussão na grande mídia nacional e internacional. As razões são múltiplas: o fato de o projeto político da Venezuela ser portador de uma nova alternativa para as maiorias empobrecidas da Venezuela e ter manifestado fortemente interesse pela integração e unidade dos povos latino-americanos em continuidade com os ideais de Bolívar. Depois do fracassado golpe de estado de abril 2002, a grande mídia que representa e defende os interesses do capital, sustenta mais fortemente uma posição política coincidente com o chamado ‘Consenso de Washington’, que nunca foi consensuado com os governos nem com os povos da América Latina. Esta clara contradição política explica a parcialidade e negatividade com que são apresentadas as notícias sobre o processo bolivariano.
São bem conhecidas as incidências do golpe de abril 2002, o sequestro do presidente e retenção na base militar de Orchila, as pressões para que renunciasse, a apresentação na mídia de uma falsa carta de renúncia, as manobras das grandes corporações midiáticas para respaldar o golpe. No entanto, as forças populares unidas ao setor das forças armadas leais ao legítimo governo liberavam ao presidente e revertiam o golpe. A mídia pretendeu ignorar os fatos e se limitou a transmitir música para entreter e distrair. Desta forma, se negaram a informar, em quanto foi possível, sobre o admirável retorno de Chávez ao Palácio de Miraflores na madrugada do 13 de abril.
Durante o tratamento do câncer e convalescência do presidente Chávez, a partir de sua primeira cirurgia em junho de 2011, frequentemente a grande mídia projetou a ideia de que o presidente estaria afetado por um mal irreversível que provocaria sua morte, em termos de horas ou poucos dias. Ainda que fosse real que na primeira etapa de sua enfermidade (junho 2011 a fevereiro 2011) a informação oferecida foi sucinta, a partir de sua cirurgia do 11 de dezembro 2011, os comunicados oficias informaram de forma frequente sobre o estado geral do presidente. Falavam da lenta recuperação do paciente, também de suas complicações. Mas não entravam em detalhes. Os comunicados não tinham porque satisfazer a curiosidade mórbida de quem procurou mostrar o cadáver a qualquer custo. Mas o que alguns meios corporativos parecem procurar são detalhes e imagens humilhantes para o presidente; isto parece se confirmar com a foto publicada no jornal El País, no dia 23 de janeiro, em sua edição impressa e no sítio web, de um homem entubado e em aparente estado terminal, afirmando ser Hugo Chávez e comentando se tratar da realidade que o governo venezuelano quer ocultar. Pela observação de internautas experientes se comprovou que a foto, já tinha sido publicada no You Tube em 2008, e correspondia a uma pessoa parecida a Chávez. O El País, uma vez denunciada a manobra, se viu obrigado a retirar de seu sítio web e pedir desculpas.
A publicação do jornal El País é simbólica, está refletindo uma total falta de ética e de respeito aos leitores e a expectativa dos proprietários do grupo midiático Prisa e dos que desejam terminar com o processo bolivariano. Apostam que a morte de Chávez seria um golpe irrecuperável para o mesmo. Ante a ausência da imagem que confirme sua expectativa de apresentar o moribundo, fabricaram irresponsavelmente essa vulgar falsificação.
O que está por trás deste cerco midiático, é que ante a debilidade de partidos e organizações da oposição na Venezuela, e em vários países da América Latina, como Equador, Bolívia, Nicarágua, a grande mídia Pró Consenso de Washington se constitui em partido de oposição, e não procura informar sobre o que acontece, mas destruir ao inimigo, atacar aos governos de signo popular. Neste sentido são muito eloquentes reiterados depoimentos do presidente Rafael Correa de Equador.
Em síntese, trata-se de uma guerra aberta aos governos e movimentos populares e sociais que representam a construção de caminhos viáveis alternativos ao sistema de dominação neoliberal, sustentado pelos grupos capitalistas especuladores que se articulam em torno as grandes potências da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e seus aliados. Assim como os setores dessa aliança têm impulsionado guerras de destruição do Iraque, Líbia, de modo semelhante lançam a guerra midiática contra o governo da Venezuela e todos os avanços da Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América [Alba], ao considera-lhe um mau exemplo. O mais grave é que esta guerra não parece ter limites éticos, enquanto a mídia do grande capital faz este trabalho, noutra frente, grupos da chamada inteligência planejam ações como o assassinato de líderes políticos como o presidente Rafael Correa
Adital: Por outro lado, esta mídia corporativa provocou uma resposta por parte dos governos e de suas populações, que também se remodelou e se fortaleceu. Pode comentar sobre isso?
RZ: Devemos acrescentar, que pelo fato de mentir e manobrar aberta e frequentemente alguns meios corporativos estão perdendo influência e credibilidade, é o caso da própria Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina e México.
No México, a grande mídia se envolveu diretamente na fabricação da candidatura de Enrique Peña Nieto. Conseguiram ganhar nas eleições presidenciais de 2011, mas tiveram que usar de procedimentos ilegais, como compra de votos, e a resposta tem gerado o fortalecimento do movimento juvenil #132 que sustenta com forte adesão dos jovens universitários e outros setores populares à ilegitimidade do novo governo.
Outro fator decisivo a favor das causas populares é o crescimento de sítios, boletins de notícias e blogs que defendem a alteridade, outro mundo possível e vão conquistando influência, audiência e credibilidade. Neste sentido o posicionamento da Adital é representativo e alentador. O fato de ter mais de 2, 5 milhões de acesos mensais é um logro muito significativo.
Em resumo, ante a fraqueza política dos partidos que representam o grande capital, a mídia corporativa assume cada vez com maior clareza uma função de oposição partidária, que defende abertamente os interesses de seus proprietários, tentando apresentá-los como os interesses de toda a nação.
Na Venezuela o processo bolivariano está conseguindo construir redes de comunicação alternativa, e conquistando gradativamente audiência. É significativo que o programa dominical "Aló, Presidente” (diálogo do presidente, equipes de governo com o povo organizado) alcançou altíssimos níveis de audiência, superando aos domingos a programação mais assistida da TV Comercial. Estes avanços foram possíveis porque Chávez e a direção política do país não temeram enfrentar as corporações midiáticas, e coerentemente se vem criando tanto a nível federal, como estadual uma rede de estações de TV e rádios comunitárias e populares, que estão informando sobre a vida do povo e suas organizações. Completando os esforços das redes nacionais, se desenvolve no âmbito continental a TeleSUL, produto da uma aliança dos países da Alba, mais a Argentina e Uruguai.
Mas ainda a grande mídia continua sendo hegemônica em audiência geral, porém há crescimento claro da informação sobre os logros da revolução.
Adital: Na conjuntura política latino-americana, o que significa mais uma vitória de Hugo Chávez em eleições presidenciais na Venezuela?
RZ: Em meio de uma confrontação de projetos de nação e de modelos de integração latino-americana a vitória de Chávez significa a continuidade do projeto bolivariano, que tem como uma expressão característica a consolidação de uma comunidade de nações na Alba, baseada na solidariedade, complementaridade e intercâmbio justo. Também implica um forte respaldo a processos de integração mais abrangentes: Celac, Unasul, e Mercosul, como espaços de afirmação da unidade e protagonismos latino-americanos.
Uma das contribuições mais importantes da Alba é que representa uma alternativa viável de integração latino-americana pensada simultaneamente em função dos projetos nacionais com a priorização das necessidades básicas das maiorias, e da autodeterminação da América Latina numa perspectiva realmente popular, solidária, anti-neoliberal, anti-imperialista e pós-capitalista. Ainda vivendo no metabolismo do capital, porém a perspectiva é ir construindo caminhos pós-capitalistas, no fortalecimento das economias comunitárias, da autossuficiência alimentaria, cuidado com o equilíbrio ecológico, da garantia do abastecimento energético aos países da America Latina.
Um aspecto marcante da cooperação exercida na Alba é que permite que pequenos povos empobrecidos de America Central e Caribe tenham acesso a creditos para seu desenvolvimento nacional, sem passar pelas condicionantes do FMI e do Banco Mundial. Isto introduz uma diferença fundamental no continente.
Um elemento importantíssimo da continuidade da vitória chavista é o firme apoio ao povo cubano com projetos estratégicos para garantir e fortalecer o funcionamento sustentável da economia cubana.
Na presente cojuntura da enfermidade de Chávez, a direção política está trabalhando pelo fortalecimento de uma equipe do governo unido e fiel à inspiração do líder, na construção e defesa coletiva da revolução bolivariana. Ante uma previsível presença diminuída do presidente no território e, inclusive, ante uma ausência definitiva, se está dando um salto de qualidade com um funcionamento mais coletivo da direção e ênfase na participação popular a todos os níveis.
Adital: Há muitas manifestações populares e de solidariedade pela saúde do presidente venezuelano, que desde dezembro está em Cuba. O fato de não estar presente em sua posse acirrou os ânimos da oposição. Como o senhor vê a força da oposição neste momento?
RZ: Efetivamente as manifestações populares em solidariedade com o presidente Chávez e a revolução bolivariana têm sido impressionantes, em diversas partes do mundo, inclusive em alguns países muçulmanos. Na América Latina, do México ao Chile e Argentina, assembleias de pessoas de boa vontade sentem Chávez como alguém próprio, e reconhecem sua grande contribuição à transformação da Venezuela e à integração e unidade latino-americana.
Ante a impossibilidade do presidente reeleito, de tomar posse na data indicada pela constituição, grupos de oposição pretenderam interpretar a ausência do ritual da posse, como um rompimento da ordem constitucional, o que resulta falso, já que a própria Constituição Nacional prevê em situações de força maior, por eventos ‘sobrevindos’ que o presidente pode tomar posse posteriormente ante a Corte Suprema de Justiça.
A oposição também divulgou que havia enfrentamentos no interior da equipe superior de governo, especialmente entre o vice-presidente [Nicolás] Maduro, e o presidente da Assembleia Legislativa. Na realidade, a equipe do governo está trabalhando de maneira harmoniosa, cumprindo cada um suas próprias funções legalmente estabelecidas.
O problema é político, não jurídico. Chávez e seu partido triunfaram nas eleições por uma inquestionável maioria. O fato de não comparecer à cerimônia de posse, não invalida a vontade popular. A Corte Suprema da Justiça tem considerado que o presidente reeleito exerce seu mandato com a equipe de governo que ele confirmou, no marco legal, depois de ser releito. Também estabeleceu que o ritual da posse pudesse se efetuar posteriormente, quando tenha condições apropriadas de saúde.
A oposição na Venezuela mostrou uma força considerável nas recentes eleições de 7 outubro nas que seu candidato presidencial, Enrique Capriles, contou com mais do 44% dos votos. Mas na presente cojuntura tem certo enfraquecimento. Já nas eleições para governadores (16/12/12), o PSUV, o partido de Chávez, se impôs em 20 dos 23 estados que conformam a federação. Além disso, por defender um projeto neocolonial, que beneficia as grandes corporações transnacionais, na medida em que se aprofunde num debate político sério e criterioso, e aumente a consciência política dos empobrecidos, é previsível uma maior fortaleza do chavismo.
Por outra parte, neste momento, a oposição está dividida enquanto à estratégia a seguir. Uma parte pretende desconhecer a legitimidade do atual governo, já o grupo de Capriles, numa atitude mais lúcida, aceita o veredito da Corte de Justiça. Eles estão conscientes que, em caso de uma desaparição física do presidente, se houvesse que convocar novas eleições em curto prazo, seguramente o triunfo seria novamente do chavismo. Finalmente também estão ativos os setores extremistas e criminosos. Órgãos de inteligência venezuelana denunciaram ter descoberto planos para assassinar ao vice-presidente Maduro e ao presidente do poder legislativo Diosdado Cabello.
A debilidade estratégica da oposição é que dificilmente pode apresentar um projeto credível, que supere a proposta bolivariana que vem mostrando consistência, consequência e ganhando crescente credibilidade por mais de 12 anos, e por outra parte, sua dependência das orientações e ajuda da política externa dos Estados Unidos.
Adital: Populista para uns e popular para outros. Em que pontos o governo e presidente Hugo Chávez se diferencia de outros líderes da América Latina? Até que ponto pode-se dizer que ele redesenhou um novo olhar voltado para os países latino-americanos, sobretudo partindo dos países ditos desenvolvidos, considerados grandes potências econômicas e políticas?
RZ: Penso que o conjunto das políticas sociais implementadas na Venezuela são autenticamente populares. Tem sido estratégicas e duradouras, em modo algum são ações oportunistas visando eleições. São ações tendentes a erradicar a miséria, a atingir um desenvolvimento econômico sustentável. Trata-se de pagar a histórica dívida social acumulada em décadas por uma estrutura econômico-social, que manteve na miséria a mais da metade da população, em meio de um mar de riquezas acumuladas por classes dominantes parasitárias e "vende-pátria”.
O projeto bolivariano trabalha coerentemente contra a desigualdade, a pobreza, a marginalidade social, não apenas na Venezuela. Essa luta é visível nos países da Alba e em outros países empobrecidos em nossa América, basta assinalar a exemplar ajuda que a Venezuela, em conjunto com Cuba, oferece ao povo haitiano. Muito maior em termos proporcionais à dos países do G-8, com métodos coerentes e visando à restituição a esse povo dos recursos naturais historicamente saqueados e empobrecidos por dívidas injustas. Mas principalmente visando a restituição de sua dignidade.
Com certeza o processo bolivariano tem contribuído substantivamente para criar nos povos latino-americanos um novo olhar, que supera as visões coloniais e neocoloniais, para instaurar uma atitude de povos que resgatam desde sua história, sua dignidade para construir um projeto próprio que atenda às necessidades e interesses de suas grandes maiorias. É muito difícil falar em diferença de Chávez com outros líderes latino-americanos. Mas posso apontar uma: Chávez e sua equipe próxima têm uma profunda vocação bolivariana o que significa, entre outras coisas, uma atitude de profunda disponibilidade a partilhar os grandes recursos naturais da Venezuela e de saber pensar em função da grande pátria latino-americana.
Fonte: Adital
(entrevista com título original "Chavismo, guerra midiática e a lição popular que a Venezuela segue dando", publicada em duas partes, foi compilada e editada por redação Vermelho)