Publicado 29/01/2013 10:49 | Editado 04/03/2020 16:28
Olhar para violência contra jovens,seja por conta de tiroteios com a polícia, seja por conta do tráfico de drogas, humano e de armas, seja por conta da exploração sexual e comercial que insiste em atacar as parcelas mais jovens da população mundial e brasileira, vêm se transformando em cenas cada vez mais corriqueiras. A violência parece que se transformou em vetor de socialização. Não é um simples ato ou uma situação particular; mas é uma forma de socializar-se que, contraditoriamente, associa individualismo exacerbado, consumismo e necessidade de reconhecimento; construído por relações que exaltam uma nova sociabilidade esgarçada, que busca, infinitamente, saciar desejos que não sabem nem ao certo o que são ou que significam, mas que precisam ser satisfeitos, imediatamente.
Parece que estamos olhando para monstros, parece que não nos reconhecemos mais uns nos outros. Os laços comunitários não são capazes de garantir a chamada boa convivência tão cara à vizinhança, ao bloco de pré-carnaval, aos cultos religiosos, às atividades culturais, esportivas e de lazer em geral. Ao mesmo tempo, insistimos em dizer que isso não nos pertence; ao menor sinal de "perigo", desconhecemos o outro e o colocamos num lugar que não é o compartilhado por nós: é um lugar alheio, marginal, invisível até ser reconhecido pelos números de algum tipo de crime ou de uma mera desconfiança.
A sociedade do medo produz mais e mais sensações de medo e insegurança e perde a capacidade de estabelecer as mediações necessárias. Infelizmente, não será, unicamente, o aparelho estatal repressivo com toda sua parafernália de recursos humanos e materiais que farão com que vivamos com maior tranquilidade. Muito pelo contrário, quando não há o mínimo de enraizamento de regulação comunitária e popular (no sentido amplo da palavra), a repressão do estado é irracional, terreno fértil para a violência se revigorar ainda mais.
A vida que construímos é violenta, todos os dias, cotidianamente; mas parece que só acordamos do "sonho-pesadelo", quando temos que enxergar o fato que aconteceu bem pertinho da gente, com gente conhecida, com os garotos que estavam na praça ou que estavam voltando de uma festa. Com o Igor e a Mayara, foliões do bloco Sai na Marra… Meninos, só meninos, vítimas da irracionalidade institucional que contribui com a formação de verdadeiros cenários de guerra. A rua de tão sedutora e palco de uma vertente da vida que se espera coletiva, abriga todos nós… Estão na rua: os garotos, os trabalhadores, os que chamam de "crackeiros", as prostitutas, moradores, transeuntes, estudantes, donas de casa, traficantes, boêmios, policiais, enfim… Todos nós estamos na rua e precisamos vivenciar a rua como espaço de sociabilidade. Fomos nós, na nossa insanidade contemporânea que significamos a rua como o lugar do perigo permanente.
Somos nós, as personagens de uma sociabilidade do lucro e do consumo imediatos. O primeiro como valor supremo; o segundo como fonte mágica de superação das dores, das angústias, do sentimento de não-pertencimento em direção ao prazer, à felicidade a qualquer custo. A sociedade delirante do consumo não aceita limites e dilacera o que for necessário para atingir metas e objetivos. Dessa forma, essa tal "ideologia" do capitalismo de tão entranhada em nossos corpos e vidas, parece não ter um caráter ideológico nenhum nas muitas violências cotidianas. Odiar o outro, negar o outro, destruir o outro são códigos que avançam cada vez mais, fruto das transformações dos laços culturais e afetivos. Talvez o maior perigo que estejamos correndo não seja o da morte eminente, apenas; mas de não conseguirmos mais nos solidarizar e olhar uns para os outros… Disso, sim, eu tenho medo, muito medo.
*Nágyla Drumond é socióloga, professora universitária, Secretária Estadual de Movimentos Sociais do PCdoB/CE, membro da Coordenação Estadual da UBM/CE e preside o Centro Socorro Abreu.
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