Victor Álvarez: Transformar a estrutura econômica venezuelana
Ao final de 2012, e em meio à crise prolongada que afetou as economias dos Estados Unidos, Grécia, Espanha, Portugal, Itália e outros países da União Europeia, a Venezuela apresentou uma aceleração em seu ritmo de crescimento econômico, uma redução significativa do desemprego e uma taxa de inflação abaixo do objetivo inicialmente planejado.
Por Victor Álvarez*, em Opera Mundi
Publicado 28/01/2013 11:03
De fato, em 2012 a economia cresceu 5,5%; a inflação de 20,1% – ainda que continue sendo muito alta – fechou abaixo da meta estimada em 22%; e o desemprego esteve abaixo de 8%.
Para 2013, espera-se que a dinâmica desencadeada por esses resultados mantenha o atual ritmo de expansão econômica, que oferece o clima de serenidade necessário para revisar a política econômica, uma vez que não se trata apenas de reativar e fazer crescer a economia capitalista que ainda predomina na Venezuela, mas de transformá-la.
A transformação produtiva formulada na Venezuela tem dois eixos-chave. 1) A criação de novas relações de poder por meio do desenvolvimento de formas inovadoras de propriedade social, popular e comunal. 2) A transformação do capitalismo rentista e importador em uma nova economia socialista diversificada, capaz de produzir os bens destinados a satisfazer as necessidades essenciais da população, substituir importações e diversificar a oferta exportadora para reduzir a dependência da renda petroleira.
O mito do desenvolvimento
A ideia de alcançar o desenvolvimento continua sendo uma grande aspiração na maioria dos países da periferia que competem por atrair investimentos estrangeiros. Associam o desenvolvimento à conquista de objetivos de modernidade, bem-estar e progresso, a partir da transformação da produção campesina e artesanal em uma grande produção em série, acelerando o crescimento urbano como propulsor do mercado interno. Mas o balanço indica que, geralmente, um impetuoso ritmo de crescimento econômico vem acompanhado da emissão de gases com efeito estufa; de resíduos líquidos que são lançados nos rios, lagos e mares; e da acumulação de resíduos sólidos que acabam se tornando uma bomba relógio. Isso causa o aquecimento global e um dano irreparável à biodiversidade, além de ter como sequela milhares de vítimas devido às secas, desertificação, tempestades e inundações, assim como a expulsão de milhares de trabalhadores rurais de suas terras, agora destinadas a fins mais rentáveis, como a produção de biocombustíveis, o que explica o brutal encarecimento dos alimentos básicos, assim como sua escassez, monopólio e especulação.
Na verdade, esse desenvolvimento limita-se ao crescimento do PIB e à melhoria dos indicadores sobre investimentos, consumo, exportações, reservas internacionais etc., sem chegar a cumprir a promessa de melhorar a qualidade de vida, o bem-estar e a felicidade de todos os cidadãos. Essa noção economicista do desenvolvimento deve ser questionada, uma vez que está ligada a uma crescente exploração dos trabalhadores e à devastação da natureza.
O desenvolvimento não pode ser um fim quantitativo, mas sim um processo cada vez mais qualitativo que transcenda a satisfação das necessidades materiais da população e inclua a satisfação de suas necessidades intelectuais, emocionais e espirituais. Na Venezuela, diante do esgotamento do modelo capitalista-rentista-desenvolvimentista, faz-se necessário elaborar novas alternativas que permitam harmonizar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano integral e a proteção da biodiversidade.
Superar o modelo extrativista-rentista
O extrativismo é um modelo de acumulação baseado na obtenção de uma renda por exploração de recursos naturais e energéticos. Leva à dependência por parte dos países ricos em matérias-primas mas pobres em tecnologias, que se limitam a vender tais recursos em vez de transformá-los industrialmente. É um modelo devastador do meio ambiente, uma vez que esgota as jazidas ou as extrai em um ritmo superior à taxa de reposição.
Trata-se de um modelo de enclave, com uma atividade ilhada do resto da economia e pouco impacto sobre o desenvolvimento endógeno. Coexistem sistemas de alta e baixa produtividade, baixa densidade de empresas industriais a cada mil habitantes, pouca diversificação e integração industrial.
A Venezuela é um país com forte viés extrativista e, por isso, depende da captação de renda, e não do esforço produtivo, para satisfazer suas necessidades. A abundância de divisas tende a sobrevalorizar a moeda nacional. Assim, torna-se mais rentável importar do que produzir. Os produtores se transformam em importadores e deslocam a produção nacional: importam porque não produzem e não produzem porque importam. A má atribuição dos fatores produtivos distorce a dinâmica da economia. O comércio importador, ao prover os bens que são requeridos para satisfazer as necessidades da população, tende a ter mais importância que a agricultura e a indústria, que são setores nos quais está a soberania produtiva de qualquer país.
Nesse contexto, a recente confirmação da existência das maiores reservas petrolíferas do mundo sob o subsolo venezuelano contribui para criar uma ilusão de riqueza e prosperidade. É certo que se mantém a vulnerabilidade produtiva e fiscal por conta da alta dependência da receita rentista. A crise explode a cada vez que os preços do petróleo desabam – não entra a mesma quantidade de dividas e se impõe a obrigação de desvalorizar, gerando assim inflação, desemprego, pobreza e exclusão.
O que fazer com a renda do petróleo?
Desde que apareceu o petróleo na Venezuela, tem sido muito mais fácil devorar a renda comprando do resto do mundo o que bem podíamos estar gerando internamente com nosso próprio esforço produtivo. A alternativa ao rentismo passa por uma profunda mudança cultural. É preciso mudar a mentalidade rentista, que procura captar a maior renda possível para consumi-la, por uma nova cultura de investimento e de trabalho. Mas esse investimento não pode ser apenas em infraestrutura. Também é fundamental o investimento social e o investimento em ciência e tecnologia. Todos são imprescindíveis para poder transformar os recursos naturais que agora exportamos sem maior valor agregado em uma crescente produção industrial que permita substituir importações e diversificar a oferta exportadora para gerar novas fontes de divisas que nos façam menos dependentes da renda do petróleo.
Para transformar o capitalismo rentista em um novo modelo produtivo socialista, é fundamental ter cada vez mais claros os destinos que serão dados à torrencial receita rentista que a Venezuela recebe por conta da exploração petroleira. O investimento em infraestrutura é necessário, mas não suficiente. Se queremos acabar com esses flagelos sociais, uma porcentagem crescente da renda petroleira deve ser investida socialmente para garantir o direito de todos(as) os(as) venezuelanos(as) ao trabalho, alimentação, educação, saúde, moradia, ciência, tecnologia, cultura, esporte etc. E, é claro, outra porcentagem significativa deve ser investida em distintos fundos de compensação econômica, desenvolvimento nacional e patrimonial que minimizem o impacto negativo do comportamento errático que os preços do petróleo tiveram ao longo da história.
Rumo à industrialização socialista
A manufatura tem um grande efeito multiplicador sobre os demais setores da economia. “Aguas arriba” [no sentido oposto ao fluxo] demanda matérias-primas à agricultura, pesca, florestas, mineração etc. Corrente acima [no sentido a favor do fluxo] oferece bens intermediários e insumos industriais para o desenvolvimento de outros setores. Além disso, demanda serviços de apoio, água, eletricidade, telecomunicações, financiamento, infraestrutura, redes de distribuição e comercialização. Quando a indústria cresce, toda a economia cresce.
O governo venezuelano pode combinar diferentes incentivos alfandegários, fiscais, financeiros, cambiários, compras governamentais, fornecimento de matérias-primas, assistência técnica etc., até elevar a atual densidade industrial de 0,25 a 1 estabelecimento industrial a cada mil habitantes e conseguir que a porcentagem da manufatura no PIB suba dos atuais 14,3% para 20%, alcançando, assim, a condição de país industrializado.
Entendemos a industrialização socialista formulada para a Venezuela como um processo que irá substituir a industrialização baseada na exploração do trabalho alheio, no uso intensivo de matérias-primas e energia, na devastação do meio-ambiente e nos desequilíbrios territoriais por um novo tipo de industrialização baseado em diferentes formas de propriedade social, na aplicação de novos princípios para a justa remuneração do trabalho e no investimento social dos excedentes, no uso da informação e conhecimentos científicos e tecnológicos, na preservação do meio-ambiente e no desenvolvimento harmônico das regiões.
Nesse sentido, é necessário um balanço crítico do processo de industrialização nas condições do capitalismo rentista venezuelano. Questionamos a substituição ineficiente de importações, que condenou os trabalhadores a adquirir produtos de qualidade inferior e preços superiores aos importados, mas também condenamos a abertura neoliberal, que submeteu os produtores locais a uma feroz concorrência com as importações oriundas das principais potencias industrializadas. Como alternativa entre essas duas opções extremas, formula-se a necessidade de reivindicar políticas industriais e tecnológicas para aprofundar a reativação, reconversão e reindustrialização do aparato produtivo, como condição básica para alcançar a plena soberania econômica.
Para impulsionar a industrialização socialista, é necessária uma intervenção eficiente do Estado para orientar um processo que não pode ser deixado à mercê das forças cegas do mercado. A industrialização socialista deve se apoiar em um Estado nas mãos dos trabalhadores e da comunidade, sem mediações burocráticas de nenhum tipo. Só assim será possível impulsionar um novo tipo de desenvolvimento industrial, capaz de assegurar uma crescente produção dos bens para satisfazer as necessidades básicas da sociedade e gerar uma oferta exportadora de qualidade e bons preços, permitindo nossa inserção soberana na economia mundial.
O ano de 2012 foi de crescimento do PIB. Mas não basta manter a reativação da atividade produtiva. No que tange ao desenvolvimento do perfil socialista da Revolução Bolivariana, de agora em diante é preciso impulsionar a transformação estrutural da economia venezuelana. Isso exige uma profunda revisão e retificação da política econômica. Trata-se de planejar uma nova estratégia econômica, que reimpulsione e transforme a dinâmica da economia interna, a fim de alcançar os objetivos do empoderamento popular sobre os processos de produção, distribuição e comercialização dos bens e serviços para satisfazer suas necessidades básicas e essenciais. Esse é o caminho para superar a vulnerabilidade da economia rentista e alcançar uma verdadeira soberania produtiva.
Reativar ou transformar a economia?
A recuperação do PIB anunciada pelo BCV no ano de 2012 é uma ocasião propícia para revisar a política econômica. Acelerar a transição ao socialismo, mais do que reativar a atual economia predominantemente capitalista. É preciso transformá-la em uma nova economia socialista nas mãos dos trabalhadores diretos e da comunidade organizada. Nesse sentido, as medidas que o Governo Bolivariano tome de agora em diante deverão ir mais além de manter um simples crescimento econômico para formular, fundamentalmente, a transformação do capitalismo rentista venezuelano em um novo modelo produtivo socialista.
Recordemos que, no período de auge econômico anterior à última recessão, enquanto o PIB estava crescendo, cada vez que o BCV publicada seu informe, comemorávamos o acerto da política econômica e a fortaleza da economia venezuelana. Mas nunca reparamos na natureza e na qualidade desse crescimento, razão pela qual se manteve a inércia de outorgar os incentivos públicos sem aplicar qualquer princípio de reciprocidade dos beneficiários.
Mas quando nos damos conta de que, graças a esses generosos incentivos, o que mais estava crescendo era a economia capitalista e que a estrutura do PIB estava se tornando de má qualidade – com um crescente peso do comércio importador e dos serviços financeiros especulativos e de alto risco –, então começamos a comemorar a queda PIB, argumentando que o que está caindo é a economia capitalista, sem fazer nada para reativá-la. A lição foi clara: apostar no desaparecimento da economia capitalista sem antes ter criado a nova economia socialista é o atalho perfeito para ficarmos presos em um círculo vicioso de queda da produção, escassez, acumulação, especulação, inflação, desemprego e crescente mal-estar social.
Portanto, a reativação da economia é um processo que deve estar sintonizado com sua transformação estrutural. Mas não será a mão invisível do mercado a que guiará esse processo destinado a substituir a velha ordem, exploradora do ser humano e devastador da natureza, por uma nova ordem capaz de erradicar as causas estruturais do desemprego, da pobreza e da exclusão social. É necessário o planejamento e execução de uma sábia e oportuna estratégia de reativação e transformação estrutural da economia venezuelana, que impulsione a substituição do capitalismo rentista por um novo modelo produtivo socialista de ampla e crescente inclusão social, sob controle dos trabalhadores diretos e da comunidade organizada. Aprofundar a transformação da estrutura econômica venezuelana – e não apenas reativá-la – é o novo desafio que a Revolução Bolivariana tem pela frente.
* Victor Álvarez é economista, ex-vice-ministro da Indústria da Venezuela e pesquisador do Centro Internacional Miranda (CIM). Artigo publicado em seu blog.