Mulheres: “Cada direito é fruto de uma luta”

No dia 15 de dezembro de 2012, 60 mulheres do meio popular, de universidades, de movimentos sociais e organizações sindicais concluíram o primeiro curso do Projeto de Promotoras Legais Populares (PLPs), realizado na cidade de Curitiba (PR).

Por Camilla Hoshino*, no Brasil de Fato

Promotoras legais - Joka Madruga

Batizada com o nome de Maria Amélia Teles, em homenagem à militante feminista que lutou contra a ditadura militar no Brasil e que está à frente do projeto das PLPs desde seu início, a primeira turma celebrou a formatura com discursos, homenagens, poemas e palavras de ordem.

“Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede”, gritavam as mulheres presentes no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). As palavras simbólicas tinham o intuito de reafirmar um dos principais papeis das mulheres feministas: lutar por igualdade.

Foram cinco meses de curso, 20 encontros, totalizando 40 horas de estudos. Mais de 10 organizações apoiaram o projeto, entre sindicatos, órgãos públicos e entidades da sociedade civil. O curso capacitou mulheres debatendo temas como gênero, sexualidade, Lei Maria da Penha, mídia, violência, saúde e poder. Todos eles a partir de uma perspectiva da educação popular feminista. Com a colaboração de aproximadamente 30 facilitadoras, 60 histórias de vida se uniram para combater o machismo e a violência.

Segundo o Mapa da Violência 2012, publicado no mês de abril pelo Instituto Sangari, 4,4 mulheres morreram em homicídios a cada 100 mil habitantes, o que deixa o Brasil entre os sete países do mundo com maior taxa de homicídios femininos, ficando atrás apenas de El Salvador,Trinidad e Tobago, Guatemala, Rússia, Colômbia e Belize. Dentro do país, um dos piores números se encontra no Paraná. Com 6,3 homicídios a cada 100 mil mulheres, o estado está em 3º no ranking nacional.

Paula Cozero, coordenadora do projeto em Curitiba, trouxe essas informações durante a cerimônia de formatura, mas deixou claro que o objetivo de dar visibilidade à situação não é vitimizar as mulheres, mas colocá-las como protagonistas das lutas sociais. “Cada direito é fruto de uma luta”, relembrou a advogada e mestranda da UFPR. E é a luta por direitos sociais, econômicos e políticos para as mulheres que as Promotoras Legais Populares iniciam no momento da sua formatura.

Colocando-se como resposta a uma realidade de violência, a formação de Promotoras Legais Populares representa uma tentativa de descentralizar as forças que atuam na defesa e no cumprimento do direito. O principal objetivo do curso é empoderar as mulheres para que reconheçam as situações de violência, os seus direitos e ferramentas legais de acesso à cidadania e combate à discriminação e violência de gênero. Além de ressaltar a intenção do projeto, Paula também deu ênfase à importância de trazer para o meio popular um debate que permaneceu enclausurado durante muito tempo na academia.

Para a formatura das PLPs, o 3º andar do prédio histórico da UFPR foi decorado com um varal contendo a foto de cada uma das integrantes da turma Maria Amélia Teles. O rosto de 60 mulheres contrastou com os inúmeros retratos de homens juristas distribuídos pelos corredores da faculdade. No mês em que a UFPR comemora seu centenário, celebrar a capacitação de dezenas de mulheres em torno da luta feminista representa um marco e também um convite a uma transição mais profunda desse cenário acadêmico destoante. Essa é a opinião da integrante da Articulação Popular e Sindical de Mulheres Negras-SP, Magali Mendes, convidada pelas coordenadoras do curso para a formatura das PLPs em Curitiba.

Durante a cerimônia, Magali criticou, fazendo alusão às bandeiras dos movimentos sociais presentes no salão nobre no momento da cerimônia, os espaços centralizadores de poder da sociedade. “É preciso ocupar, resistir e construir dentro de espaços como a universidade pública, dominada historicamente por homens, brancos, pertencentes a uma elite”, disse.

No Brasil, a realidade dentro das universidades públicas faz parte de um palco político mais amplo, em que a mulher se encontra sub-representada, apesar de ser maioria da população. Atualmente, as mulheres não chegam a 20% nos cargos de maior nível hierárquico no parlamento, nos governos municipais e estaduais, nas secretarias do primeiro escalão do poder executivo, no judiciário, nos sindicatos e nem nas reitorias.

Em 2010, nas eleições gerais, as mulheres ficaram com 12,9% das cadeiras nas Assembleias Legislativas, com 8,5% das vagas na Câmara dos Deputados, com 9,8% no Senado e 7,4% nas câmaras municipais. Mas o fenômeno não é apenas nacional. No mundo, apenas 35 países (19%) contam com mulheres no Parlamento, enquanto que outras 152 nações (81%) não têm sequer uma mulher em seus Parlamentos, de acordo com a União Interparlamentar (IPU).

Os dados do Relatório 2009/2010 do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero ainda mostram que, no setor privado, num total de 89.075 empresas as mulheres ocupavam apenas 21,4%dos cargos de chefia.

Magali Mendes, Promotora Legal Popular desde 1994, ano em que se formou no 1º curso realizado em São Paulo, explica a urgência do projeto que vem sendo construído e multiplicado pelo país. “O Brasil é um país continental, onde a pobreza é feminina, tendo cara, cor e sexo. A intenção dos cursos é capacitar cada vez mais mulheres para que percebam que a as leis podem e devem estar a nosso serviço”, diz.

Histórico

A história das Promotoras Legais Populares teve início na América Latina por meio da organização Flora Tristan, localizada no Peru. Em 1992, O Comitê Latino Americano e Caribenho em Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem), trouxe para o Brasil seminários a fim de discutir a implementação do curso no país. O desenvolvimento do projeto foi viabilizado com a contribuição inicial da União de Mulheres de São Paulo e do Grupo Themis, organização de direitos humanos atuante em assessoria jurídica, do Rio Grande do Sul.

A primeira experiência desenvolvida no Brasil aconteceu em 1992, em Porto Alegre (RS), e em 1994 o projeto foi levado para São Paulo. Além de estar presente em diversos estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e mais recentemente no Paraná, em Curitiba e Londrina, o Projeto de Promotoras Legais Populares também é uma prática em outros países da América Latina, como Chile e Argentina.

Assim como nos outros locais, a partir da formatura, a luta das Promotoras Legais Populares se torna permanente, buscando superar as situações de discriminação e desigualdade identificadas no cotidiano. “Tornar-se uma Promotora Legal Popular é assumir a responsabilidade de lutar constantemente pela justiça, pela igualdade das mulheres e pela transformação da sociedade, é assumir uma responsabilidade com as mulheres que estão lá fora”, enfatiza Magali, que terminou sua fala na formatura criticando a forma como a sociedade desqualifica o feminismo e o papel das mulheres na promoção e exercício da cidadania.

Multiplicando a luta

Para que o conhecimento construído durante o curso possa ser compartilhado no dia a dia do trabalho, das lutas sociais ou das organizações das quais fazem parte, o primeiro passo é o despertar da própria consciência das mulheres que integram o projeto e do reconhecimento como Promotora Legal Popular. Oengredi Mendes Maio dos Santos, assistente social, procurou o curso para que servisse de suporte e subsídio ao seu trabalho com catadoras de papel, na maioria mulheres que sofrem violência domiciliar. “Uma surpresa grande foi compreender porque eu estava naquele curso enquanto mulher. Além dos motivos que já tinha para o trabalho, em acreditar em uma sociedade diferente, foi importante para transformar a minha própria vida”, confessa.

Assim como Oengredi, a colega de turma Olga Ferreira de Souza Silva, cabeleireira e moradora da região metropolitana de Curitiba, deseja contribuir para que todas as mulheres avancem. “Agora estamos muito mais preparadas para instruir outras mulheres, pois conhecemos os direitos, os serviços e as políticas públicas a nosso favor”. Para Olga, uma das lideranças comunitárias de sua região, se tornar uma Promotora Legal Popular significa “contribuir para que outras mulheres possam sair do casulo e ser livres”, já que 6 em cada 10 brasileiros conhecem alguma mulher que já sofreu violência doméstica.

A Central de Atendimento à Mulher, por meio do Ligue 180, mostra a dimensão da violência doméstica sofrida pelas brasileiras. Em apuração realizada no primeiro semestre de 2012 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), contatou-se que quase 60% dos relatos recebidos eram de violência diária contra a mulher, totalizando 19.171 casos. A violência semanal marca 21% dos registros, um total de 6.856 denúncias.

“O Direito tem sido um instrumento que estrutura e mantém um sistema injusto, desigual. As PLPs fazem uma enorme diferença quando buscam construir um Direito, com uma abordagem feminista, transformadora, que defenda todos os setores explorados da sociedade […] Lembremos neste momento que a cada 24 segundos uma mulher é espancada e que a cada duas horas uma mulher é assassinada pela violência sexista, no Brasil”, relata Maria Amélia Teles, em sua mensagem encaminha às PLPs, especialmente para o momento da formatura.

Grata pela homenagem feita pela turma, que carrega seu nome no início de uma construção histórica em Curitiba, Amelinha, como assina em sua mensagem, termina sua carta fazendo um apelo às Promotoras Legais Populares do Paraná: “Espero que em Curitiba também seja realizado o movimento do abraço solidário ás vitimas de violência de gênero como forma de cobrar das autoridades e do poder público, as políticas públicas eficientes para enfrentar a violência. Só para informar em São Paulo, já realizamos o 3º Abraço Solidário. Amigas, obrigada por tudo. Sucesso na vida e sejam, onde estiverem, uma promotora legal popular […] Beijos, Amelinha”.

Organizado apenas por mulheres e para mulheres, os cursos se tornaram um espaço importante para que as Promotoras Legais Populares se construam e se fortaleçam coletivamente. “Além de mais fortes, juntas, nós nos libertamos”, encerrou a oradora da turma, Lucilene Aparecida Soares, após a entrega dos diplomas.