Samuel Sergio Salinas: O verso e o reverso do mensalão
Não é comum, pelo contrário, é inusitada, a oportunidade de ver e ouvir na mídia o relato orquestrado de um golpe político, anunciado com data, pano de fundo e artistas escolhidos a dedo para representar a grande tragicomédia batizada de mensalão.
Por Samuel Sergio Salinas*
Publicado 03/01/2013 13:51
Tudo estava pronto para o êxito dos autores e o desfecho em ritmo de gran finale, com a virtude sobrepondo-se ao vício, num momento de glória do intérprete-mor, em diapasão com o obscuro e retraído coautor do entrecho que se desmanchou em sons e ruídos dissonantes.
O desenlace, epílogo monumental da conspiração enunciada, ingressaria na execução de um clímax que iria saldar todos os débitos do monstro corrupção, bem simbolizado por coadjuvantes da ousada iniciativa de enfrentar a ditabranda dos reis e rainhas do grande cenário pátrio, em passado ainda recente.
O medo de sempre esteve nos bastidores onde se tramavam os momentos subsequentes do sonhado epílogo e impediu que o espetáculo redundasse em drama da democracia, renitente em beneficiar com votos os que propõem mudar o mundo. Dos atores em cena, os que não se fiavam da democracia, o pior seria um bálsamo a suavizar as duras feridas das eleições, mas o alvo era bem maior, a pátria estremeceria com a prisão dos “criminosos”, o destino estaria traçado para o momento em que a desordem desbaratasse o progresso. Não houve, porém, como avançar, ante a maneira desassombrada dos que se opuseram a cassações de mandatos, símbolo do que realmente se pretende cassar os votos.
O mensalão desdobrou-se em dois momentos. O primeiro, a elaboração do percurso jurídico da empreitada processual-criminal. Para tanto se uniram os supremos que buscavam ampliar o cenário com os mais lúgubres terrores da mais rotunda desmoralização do Congresso por seus pares, reles vendedores de seus mandatos, acoitados no templo da virtude onde só um deles mereceria louvor pelo repúdio dos vendilhões.
O Legislativo era o refúgio dos subversivos, assim denominados em fala franca pelo ministro Celso de Mello, palavra dita numa rememoração dos epítetos de vinte e cinco anos de destruição de mais de uma geração de brasileiros. Desnecessário apurar, a velha ordem ressurgia, num espasmo de linguagem. Desnecessário ouvir, comparar, basta apontar o dedo para que todos saibam de onde surge o feio mal dos tártaros pululantes. O desplante é a política e os políticos, é desta estampa que se busca limpar as estribarias. Pereça a política e salva-se o bem do País com os puros.
Mortifica-se a razão, ora, a razão… O que ontem era a ratio jurídica, esculpida em ouro e prata na amada Constituição, hoje é reles, vil marafona, homiziando o mal que brotou do voto, mas pela espada, de corte adusto, deve ser expungido do mundo dos vivos nas masmorras de onde nunca deveria ter saído.
O voto justiceiro de Celso de Mello, juiz mais antigo, de quem deveria brotar o vigor do que disse na sua ainda jovem carreira, imolou-se no altar da mais atroz das incoerências jurídicas, altar onde a ironia rivaliza com a moralidade. Se duas são as razões da lei maior, ora optando por uma, ora por outra, a razão decai em indignidade, sem falar na incerteza. O fundamento da lei é a razão, uma só a impor-se. Se duas são criadas, uma delas é falsa. Vamos a Kant, pois um filósofo deste quilate merece servir à causa de que razão, moral e liberdade caminham juntas, ou se desfazem na poeira do caminho. É o imperativo categórico, muito conhecido, mas nem sempre cultivado: “Obra de tal modo que la máxima de tu voluntad puede valer siempre al mismo tempo como principio de una legislación universal.” A aporia é catastrófica, ao duplicar a vontade entre o ser ou não ser da vida jurídica, devota da moral e da inteireza, que não compreende, nem aceita, a dobrez de convicções díspares e contrapostas, muito menos as admite nos tribunais ou fora deles.
No mensalão houve crimes que receberam sentença, e uma traição que ficou impune.
Preparou-se, durante anos, o desenrolar dos acontecimentos. Os atores, o momento, a jurisprudência de última hora, um julgamento estereotipado no modelo de Nuremberg, a mudança, também de última hora, de um voto decisivo que, na sua brutal incoerência, petrificou o tribunal, que ouviu mudo e quedo um dos discursos mais tristes da história judiciária brasileira.
Os indícios, lamentavelmente robustos, de que os propósitos não eram somente condenar, mas ferir a democracia, que não é feita de juízos e juízes inquisitoriais, ainda estão pendentes, embora desgastados pelo tempo e a incoerência. O Supremo Tribunal, ressaltadas as exceções e votos conhecidos, de senhoras e cavalheiros, ofereceu um espetáculo que desmerece o que mais se pede nesses casos, a serenidade para o bem julgar. Os acusados sofreram as maiores verrinas, que somaram aos delitos as penas da infâmia. Não há, não havia razão deste acréscimo verbal, a não ser como forma de buscar nas invectivas o que não se encontrava nos autos.
*Samuel Sergio Salinas é procurador de Justiça aposentado do estado de São Paulo, sociólogo, escritor e jornalista, autor de diversos livros. Foi um dos fundadores do Ministério Público Democrático do Estado de São Paulo.