Enio Squeff: SP, o desafio entre a civilização e a barbárie

Há esperanças? Sem dúvida e o secretário de Cultura, Juca Ferreira, parece ter agido bem com a nomeação de John Neschling para a Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo. Mas há uma cultura de autodestruição em São Paulo. Ou a cidade mexe nisso daqui por diante – ou será o Deus nos acuda de sempre.

Por Enio Squeff

A nomeação do maestro John Neschling para dirigir a Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo ensaia ser o primeiro sintoma positivo da gestão da cultura na administração de Fernando Haddad, que se iniciou no dia 1º de janeiro. Quase ninguém se lembra de que Gilberto Kassab foi eleito, também por ter proibido a exibição de painéis de anúncios nas vias públicas e de ter imposto nas lojas de São Paulo uma diminuição significativa nos letreiros que as identificavam. E degradavam o meio urbano. O programa recebeu o nome promocional de "Cidade Limpa", mas, na verdade, parece ter tido pouco a ver a limpeza pública; o que se lia, sub-repticiamente, no lema, era antes a possibilidade de que São Paulo fosse não tão feia – menos poluída visualmente – um conceito que muitos ambientalistas tacanhos resistem em adotar, mas que tem a ver com um desejo recôndito dos paulistanos – aquele de ter uma cidade minimamente bonita – se é que isso seja possível como mínimo. Enfim, Kassab foi re-eleito: ele mesmo nunca deve ter sabido muito bem o que a sua propaganda queria dizer.

O maestro John Neschling, aparentemente, não tem nada a ver com isso. É um organizador proficiente e um músico de imensa categoria. Foi ele quem fez da Osesp – Orquestra Sinfônica do Estado – um dos grandes equipamentos culturais da América Latina. Repisar que "nunca antes na história desse país" houve uma orquestra tão bem preparada para enfrentar qualquer obra do repertório sinfônico e operístico, parece apenas uma tautologia. Sob este aspecto, a bela casa de óperas de São Paulo, tende a contribuir para a cultura exclusivamente com a sua música. Mas não só: o prédio do Municipal é um oásis em meio à balbúrdia desordenada, também arquitetônica de seu entorno. É neste ponto que o teatro tem a ver com a cidade.

São Paulo, a cada ano, parece deixar claro não mais ter de ficar à mercê da feiúra incontinente, como corolário da sua riqueza. E aí a idéia do secretário Juca Ferreira, da Cultura, começa a ter sentido para todos- ou não ter sentido senão para os apreciadores de música : reverter a tendência de a cidade se conformar com os espigões horrorosos a tomar conta do casario de algumas regiões não pode ser um sentimento frustrado apenas dos urbanistas e dos arquitetos. O que se quer dizer é que a inclusão do embelezamento da cidade parece ter de fazer parte, compulsoriamente, também do repertório da secretaria de Cultura. Assim como já se disse ser a guerra importante demais para ficar nas mãos só de generais, a estética de uma cidade não se afigura assunto só de engenheiros, de urbanistas e de arquitetos que, em geral (até por dever de ofício) cumprem rigorosamente apenas o diktat do mercado.

Nesse ponto São Paulo surpreende pelo paradoxo. Historiadores da arte como Giulio Argan ou Arnold Hauser, insistem que o que fez a beleza das cidades da Renascença – mas não só delas – nunca foi somente o bom gosto de seus dirigentes. Pelo contrário, por detrás da beleza de Florença, houve também os Médici – banqueiros que despenderam fortunas, não para verem a formosura de outras paragens (como fazem empresários atuais paulistanos, que "adoram" Nova YorK,), mas para a terem ao passo de seus palácios, na rua da esquina do outro lado do rio. Haussmann, que concebeu a Paris que hoje se conhece, teve atrás de si os especuladores imobiliários de sempre. Auguste Renoir, pintor impressionista, ficou tão revoltado com as mudanças operadas por Haussmannn – principalmente com a destruição da cidade medieval que ainda restava, com seus cortiços, mas indiscutivelmente com os belos resquício de outra época, – que chegou a afirmar serem os arquitetos "os maiores inimigos do homem". Era uma consideração injusta: Paris tornou-se a grande capital européia, não a despeito dos tais "maiores inimigos do homem", mas precisamente pela sua ação.

É que, na época, não por acaso na história, tanto os arquitetos quanto os urbanistas, mas fundamentalmente os políticos, parecem ter seguido pari passu a riqueza de Paris e da França. Não degradaram Paris a seu talante, muito antes pelo contrário. E assim com a Roma antiga – e moderna. E com Londres e Berlim atuais.

Nos romances de Émile Zola as paisagens dantescas das usinas a fenderem os horizontes com sua luminosidade feérica e infernal, nunca justificaram – ou explicaram – a magnificência e a beleza de Paris como um todo. Ainda que a degradação seja quase um sucedâneo natural da industrialização – e isso Zola demonstrou à saciedade – não foi em Paris que o pragmatismo capitalista atingiu seu ápice – mas nas suas periferias . Em São Paulo, pelo contrário, tudo se fez à imagem e semelhança das fábricas da Moca, e de outros bairros; tudo parece ter seguido à lógica da destruição em nome do lucro.

É um fato conhecido e estudado pelos especialistas, a começar pelos tais "inimigos dos homens " – mas muito pouco entranhado como preocupação cultural. Desde que o "empreendendorismo" (êta palavra feia!) assumiu para si a tarefa de governar a cidade, aos gestores da Cultura restou assistirem ao cerco de prédios horrendos, como à bela construção de Ramos de Azevedo. É significativo, ou antes, altamente instrutivo que as preocupações de Mário de Andrade, o ilustre predecessor de Juca Ferreira, tenha se feito não como protesto ativo da política de destruição da paulicéia, mas como poema na deterioração do Tietê – um dia um belo caudal em que as pessoas ainda se banhavam no começo do século XX- e que se transformou num rio "olioso"( foi essa a grafia da época usada pelo poeta). Ou seja, enquanto os homens de negócios destruíam a cidade, tornando-a feia e poluindo o ambiente de seus próprios filhos e netos, restava aos artistas fazerem da saudades "dos velhos tempos", o único mote permitido a seu protesto.

Parece, enfim, ter agido muito bem o sr. Juca Ferreira ao iniciar seu mandato, com a nomeação John Neschling para gerir a parte artística do Teatro Municipal de São Paulo. A se fazerem as coisas consoante a batuta altamente competente do regente, talvez sobre boa música até mesmo para a sofrida população da periferia. Por outra: não é de se duvidar que a grande música vá para além da Sala São Paulo. Mas se o prefeito Haddad e seus secretários pensarem ser de exclusiva competência da prefeitura minorar consideravelmente os sofrimentos da sua população com saudáveis e inadiáveis providências na área da saúde, do transporte e da educação, sem mexerem na sistemática cultural de auto-destruição da cidade – repetirão os erros de sempre.

Parece exemplar, para essa cultura da feiúra, a propósito, que São Paulo acenda velas para dois de seus mais execráveis prefeitos – Prestes Maia e Faria Lima. O primeiro preferiu rasgar avenidas, para o transporte individual, em vez de começar, já em seu tempo, a construir o metrô (como se fez em Buenos Aires). O segundo, sem maiores preocupações em canalizar o Tietê e o Pinheiros ( o que implicaria a proteção de suas águas), construiu marginais como avenidas perimetrais da cidade. Ambos, afinal, foram exemplarmente castigados em sua memória pelo futuro; São Paulo é uma das cidades mais poluídas do mundo graças prncipalmente a Prestes Maia. E os rios paulistanos, ao contrário dos áulicos da ditadura que premiaram Faria Lima com o nome de uma de suas mais importantes avenidas, anualmente demonstram que o ex-prefeito estava totalmente errado ao fazer as marginais da forma com que foram construídas: os caudais, sem darem a menor bola ao prestígio do brigadeiro da avenida, inundam constantemente as pistas construídas durante a ditadura militar. E envergonham os paulistanos ao exibirem suas águas podres, à saída do aeroporto de Guarulhos. São ambos os prefeitos, à esquerda e à direita, saudados como autênticos promotores do progresso.

Não parece ter sido à toa, diga-se em tempo, que Prestes Maia tenha corrido Mário de Andrade da prefeitura. Tratava-se de se livrar de um intelectual, um homem de idéias, nada preocupado com negócios; e isso sempre esteve em segundo lugar no governo da cidade. Expulsá-lo do Departamento de Cultura era tudo o que se esperava de um dos mentores do tal empreendendorismo, como meta exclusiva da governança da paulicéia.

Há esperanças? Sem dúvida e o secretário de Cultura não parece ter começado mal. Mas há uma cultura de autodestruição em São Paulo. Ou a cidade mexe nisso daqui por diante – ou será o Deus nos acuda de sempre.

*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

Fonte: Carta Maior