Matheus Pichonelli: O outono do patriarca
O cinema brasileiro termina o ano com o sotaque um pouco mais pernambucano. Não por acaso, três das principais produções nacionais de 2012 vieram de Recife.
Por Matheus Pichonelli, Carta Capital
Publicado 24/12/2012 12:49
O Som ao Redor: a velha cidade dá espaço aos grandes empreendimentos. Fotos: Divulgação
A primeira delas foi “A Febre do Rato”, visceral elogio à loucura e à poesia marginal de Cláudio Assis. A segunda foi o lírico e intimista “Era uma Vez Eu, Verônica”, de Marcelo Gomes. O último é “O Som ao Redor”, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho que teve pré-estreia na semana passada, em São Paulo, e foi, para mim, a mais grata surpresa. A estreia nacional está prevista para 4 de janeiro.
Se “Febre” é a poesia e “Verônica”, a psicologia, “O Som” é quase um romance sociológico. Embora menos intenso que os coirmãos, o filme é, dos três, o mais completo. A história é simples: a vida dos moradores de um bairro de classe média da capital pernambucana. É, aparentemente, uma vila igual a todas as vilas de qualquer cidade. Tudo ali é verossímil, a começar pelo som das britadeiras, das crianças na quadra do prédio, das buzinas e dos latidos do cão de uns vizinhos que costumam tirar o sono de uma das personagens. Parece a síntese de qualquer drama urbano atual: as cidades que crescem desordenadas, a relação cada vez mais tênue entre centro e periferia, a especulação imobiliária, a tensão entre vizinhos, as pequenas frestas dos pequenos delitos, como o furto, o tráfico e a extorsão. Mas não só.
O bairro, que parecia se equilibrar entre ordem e desordem, tem a rotina quebrada quando um personagem misterioso, interpretado por Irandhir Santos, bate à porta das casas oferecendo serviço de segurança para toda a rua. Porque já não bastam os sistemas de vigilância permanente, as câmeras de monitoramento e os celulares com filmadoras. É preciso passar a noite em claro e observar cada movimento. É quando a lei, o delito e a segurança paralela começam a se engalfinhar pelo mesmo espaço, um espaço no qual os serviços de primeira ordem são criados à medida que a vida na metrópole ganha complexidade e a segurança habitual se torna obsoleta.
Mas estamos em Recife, lembra o diretor, e a casta de serviços desenvolvida na nova relação de forças – uma elite consolidada e uma periferia que se instala à sua margem – não pode ser facilmente assimilada sem uma mediação histórica: a influência do coronel, assentada sobre a produção da cana de açúcar que, embora decadente, rendeu frutos e se transferiu para o topo da pirâmide urbana. É como se o latifúndio tivesse apenas mudado de endereço. Os velhos fazendeiros de ontem são os proprietários dos quarteirões de hoje. Parecem mortos, mas não estão.
A sobrevida de um velho modelo está encarnada na figura do fazendeiro Francisco, personagem interpretado por W. J. Solha (pai de Verônica no filme de Marcelo Gomes) que vive em uma espécie de minarete do prédio instalado numa rua do qual é dono de quase todos os imóveis. É a ele que os novos guardiões precisam pedir a benção para operar.
Numa das cenas mais simbólicas, Francisco mede de cima a baixo um dos auxiliares da empresa de segurança e repara que o sujeito, negro e de rosto fechado, é cego de um olho. Forjado nos desmando, ele não economiza a galhofa: pergunta como é que um rapaz caolho será capaz de garantir a segurança do bairro. Ouve como resposta: “Se bobear enxergo melhor que o senhor que tem dois olhos”.
“Até aí, Lampião também enxergava e caiu”, responde.
“Mas antes de cair”, contra-argumenta o sujeito, “derrubou muita gente”.
É um dos muitos sinais de que os tempos para o coronel agora são outros. Sinais que se espalham pelo filme quando são captados os resquícios de um estado antigo, de fazendas em ruínas e cidades que se entrelaçam a partir do conflito, com favelas incrustadas bem no centro do bairro nobre. O clima de tranquilidade é uma falácia.
Essa interposição de forças circula o entorno de vidas aparentemente comuns. Sai o conflito pela cerca e entra uma linha tênue entre dominantes e dominados. De um lado, os filhos legítimos do latifúndio – que vão buscar na Europa, caso de um dos personagens, uma sensibilidade social inexistente em seu meio. De outro, os filhos bastardos, que se oferecem a varrer, limpar, cozinhar, servir, vigiar ou trabalhar nas madrugadas dos supermercados abertos para atender uma nova velha classe consumidora.
As bases históricas que moldam as relações de poder numa cidade hoje cosmopolita não são apenas o pano de fundo. São parte de um todo que a câmera de Mendonça Filho não deixa escapar. A Recife do diretor é a mesma de Zizo, poeta marginal interpretado pelo mesmo Irandhir Santos em “A Febre do Rato”, e a mesma de Verônica, a médica recém-formada que de repente se vê adulta e se assusta com o futuro em linha reta. São personagens únicos em uma busca universal pela liberdade maltratada pelas formalidades da grande cidade. Os dilemas da Recife de Mendonça Filho também estão espalhados em qualquer cidade de qualquer país. Não são menos universais. A diferença é que, sobre ela, paira um engenho, decadente, persistente e materializado. Como se o diretor dissesse: estamos em Recife, no Nordeste, no Brasil. Aqui, parece dizer, a história se repete, como tragédia ou farsa. Algo expresso quando, por exemplo, um dos personagens, herdeiro de riquezas e autoproclamado dono da rua, grita para os seguranças invasores: “Tomem cuidado, aqui não é a favela”.
A ordem parece clara, embora invertida. É uma gota de superego histórico a abarcar conflitos pessoais – a esta altura, nem superados nem tão comuns.