O "não" a Pinochet

"No" (não), de Pablo Larraín, filme chileno que encerra com chave de ouro a “trilogia da era Pinochet”, chega aos cinemas brasileiros dia 21 de dezembro, para mostrar o imenso poder da alegria e da ousadia contra uma das mais brutais ditaduras da América Latina.

Larraín, de 36 anos, iniciou seu doloroso retrato da “era Pinochet” com Tony Manero (2008), narrando a história de um chileno obcecado pelo personagem de John Travolta em Embalos de Sábado à Noite. Só que, ao invés de um filme escapista, realizou um drama corajoso e perturbador sobre tempos sombrios. Prosseguiu com filme ainda mais denso e tenso, Post Morten (2010).

Tony Manero se passa no final dos anos de 1970, com a ditadura Pinochet já consolidada. A ação de Post Morten se dá nos momentos que antecipam a queda de Allende (setembro de 1973) e assistem ao triunfo dos militares golpistas. O mesmo ator, Alfredo Castro, que interpretara Raul Peralta, o fã de Tony Manero, aparece, em Post Morten, na pele de Mário Cornejo, um datilógrafo de necrotério.

Indiferente ao que acontece em seu ambiente de trabalho (cada vez mais corpos chegam para serem submetidos a autópsia), ele segue com sua vida medíocre. Até que a dançarina do cabaré Bim Bam Bum, por quem está apaixonado, desaparece em circunstâncias misteriosas.

No se passa em tempos menos sombrios. Seu roteiro foi construído a partir de peça teatral do ficcionista chileno Antonio Skarmeta, autor do livro que deu origem ao filme O Carteiro e o Poeta (1994), protagonizado por Philippe Noiret na pele de Pablo Neruda, o poeta, e por Maximo Troisi, como um apaixonado entregador de cartas.

Ao situar a trama de No no crepúsculo da era Pinochet, Larraín pôde realizar um filme menos sombrio. Em 1988, sob pressão internacional, o general-presidente convocou plebiscito que diria “sim” (ou não) à sua permanência. Tinha plena certeza que triunfaria. Mas não foi o que aconteceu. O plebiscito deu vitória ao No. Ou seja, deu por encerrada a era Pinochet. Para contar esta parte da história do Chile, Larraín assumiu uma ousadia formal espantosa: filmou tudo em U-Matic. E o que significa isto? O mesmo que, em plena era dos computadores, buscar no porão uma velha máquina datilográfica. No momento em que o cinema dispõe de tecnologias avançadíssimas, o cineasta optou por rodar seu filme em suporte televisivo dos anos de 1980, já totalmente superado e esquecido.

Daniel Dreifuss, que produziu o filme em parceria com o chileno Juan de Dios Larraín, justificou, para o Brasil de Fato, as razões estéticas de Larraín. E contou do sucesso internacional de No, que conquistou o prêmio principal da Quinzena de Realizadores, no último Festival de Cannes, e foi exibido em dezenas de outras mostras cinematográficas mundo afora. Daniel é o único filho do cientista político René Dreifuss (1945-2003), uruguaio radicado no Brasil e autor de um clássico da Historiografia Brasileira: o livro 1964 – A Conquista do Estado, lançado em 1981, pela Editora Vozes.

Brasil de Fato:
Por que este projeto do filme dos irmãos Larraín (Pablo e Juan) o interessou tanto?
Daniel Dreifuss:
Porque eu vi que ali estava um projeto maravilhoso, que tinha tudo a ver com a história da minha família. Tanto meu pai, quanto minha mãe, quanto seus amigos eram militantes de esquerda. Fiquei tão entusiasmado com o projeto que avisei a Juan de Diós que só deixaria de buscar dinheiro para viabilizá-lo quando estivesse concluído. De saída, lembrei que este filme era maior que o Chile, que era uma história que interessaria ao mundo inteiro. Interessaria até a quem nunca tivesse ouvido falar em Chile, na América do Sul. Era a história de David contra o gigante Golias. Cinco pessoas, numa casinha modesta, produzindo material audiovisual para enfrentar o aparato da ditadura Pinochet, com sua poderosa máquina de propaganda.

E, afinal, o que é o filme senão a luta pela alegria? O que diziam os anúncios da pequena trupe do No? Com a Canção da Alegria, de Beethoven, ao fundo, eles diziam NO à violência, NO aos abusos, NO à pobreza. Naquela época, 1988, não havia internet, facebook, twitter. O que o pequeno grupo do publicitário René Saavedra (interpretado pelo ator mexicano Gael García Bernal) conseguiu foi contagiar um país com uma mensagem alegre, que apostava na vida e no futuro.

Quando você apresentou No ao público, na noite inaugural da Mostra Internacional de Cinema de SP, você avisou que o filme a ser projetado fôra realizado em U-Matic, um formato superado, que videomakers usavam nos anos de 1980. Como produtor, você não se assustou quando Larraín tomou esta decisão?
Não vou negar que, quando Juan de Diós me ligou contando que Larraín optara por filmar em U-Matic, um suporte erradicado da produção audiovisual há mais de 20 anos, eu fiz uma pausa e respirei fundo. Mas logo me coloquei três questões: o ponto de vista criativo de um filme é de seu autor; ter um filme feito em U-Matic, no momento em que as novas tecnologias tudo permitem, era algo original (do ponto de vista do marketing teríamos um filme sem similar); um produtor deve ser também criativo, ou seja, deve ajudar o realizador em tudo que ele necessitar. Já que faríamos um filme falado em espanhol e de época, que corrêssemos mais um risco filmando em U-Matic.

Nosso filme tem algo a ver com Missing, drama histórico de Costa-Gravras, mas há algo que os diferencia: o filme do realizador greco-francês é muito sério. O nosso é um canto à alegria.

A ousadia estética deu frutos. O filme venceu a Quinzena de Realizadores, em Cannes, causou sensação ao ser exibido em Locarno, em praça pública, para oito mil espectadores, foi escolhido como o melhor pelo júri popular da Mostra SP…

Que fique claro: Pablo Larraín não utilizou o U-Matic para causar estranhamento, nem para ganhar prêmios. Ele optou por este suporte, que nos deu um trabalho infernal e aumentou terrivelmente nossos custos, porque queria obter uniformidade entre os materiais produzidos pelas campanhas do NO (anti-Pinochet) e do SI (pró-Pinochet). O que ele, com toda razão, temia? Que as imagens produzidas com atores para o filme tivessem a tecnologia de hoje, avançadíssima, e as peças das campanhas do NO e do SI parecessem coisas do passado, de um outro tempo. Como a parte com atores foi captada no mesmo suporte dos comerciais das duas campanhas, o público se sente transportado para 1988.

Além de Gael García Bernal (Amores Perros e Diário de Motocicleta), o filme conta com um grande ator latinoamericano, Alfredo Castro, que protagonizou Tony Manero e Post Morten. Desta vez, ele faz o publicitário do SI. Você deu palpites na escolha do elenco?
Não. Gael estava com Larraín desde o início do projeto. Alfredo Castro, grande ator chileno, que conheci no longa Tony Manero, também estava no projeto desde a origem. Um produtor criativo deve respeitar as decisões do diretor, que é o verdadeiro criador do filme. Todo o elenco de No é muito bom. O Alfredo Castro é um ator fantástico. Vem do teatro, é autor e ator, e foi professor do Pablo Larraín. Ele dirige um teatro em Santiago e, recentemente, atuou num longa italiano premiado em Veneza (A Culpa é do Filho, de Danielle Ciprì). Quanto ao Gael, trata-se de um profissional maravilhoso, capaz de enfrentar horas de set sem estrelismo de qualquer espécie.

Como vocês levantaram os recursos que bancaram o custo do filme? Você diz que a opção pelo U-Matic encareceu as filmagens por tratar-se de tecnologia já superada.
Sim, tivemos que procurar no e-bay esquecidas câmaras de U-Matic, câmaras que quebravam à toa, pois eram muito velhas. Nosso orçamento previa gastos entre 3 milhões de dólares e 4 milhões de dólares. Constatei, de saída, que nosso filme tinha um apelo social. Quem, nos EUA, se interessa por este tipo de filme? A Participant Media, por exemplo, que tem o criador do e-bay no seu comando, só se interessa por filmes que possibilitem uma ação social. Este foi o caso de Uma Verdade Inconveniente, com o Al Gore (Oscar de melhor documentário), e de The Cove, sobre a matança de golfinhos. Mesmo caso da ficção Histórias Cruzadas, também indicada a vários Oscar, e do novo filme do Spielberg (sobre Abraham Lincoln). O filme do Al Gore trouxe ao centro do debate a questão do equilíbrio ambiental. Histórias Cruzadas discutiu a questão do negro na sociedade americana. Todos os filmes com os quais a Participant Media se envolve estão ligados à luta por direitos. Tivemos outros parceiros. Nosso filme é uma co-produção Chile, EUA e México, também com aportes franceses.

Fonte: Brasil de Fato