Luís Fernando Veríssimo, um analista do Brasil

Ele tem, pode-se dizer, a escrita no DNA (ele é filho de outro grande escritor brasileiro, Érico Veríssimo). Mas foi com um estilo mais despojado, menos formal, que se tornou unanimidade nacional consagrada depois do lançamento de O analista de Bagé, em 1981, um desses clássicos instantâneos cuja primeira edição esgotou-se em dois dias.

Luís Fernando Veríssimo

Luís Fernando Veríssimo, autor de alguns dos personagens mais populares da crônica brasileira (como Ed Mort, a Velhinha de Taubaté, As Cobras, a Família Brasil, e o próprio freudiano da fronteira), que tem 76 anos de idade (e é um desses casos em que dizer “não parece” não é lugar comum, mas a expressão da verdade), adoeceu gravemente, e inesperadamente, na semana passada.

Vermelho torce por sua recuperação plena e rápida e, em sua homenagem, transcreve duas crônicas daquele livro que, com mais de trinta anos, não perde o vigor e a força dos primeiros dias de seu lançamento (José Carlos Ruy).

Duas crônicas de Veríssimo

O Analista de Bagé

Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

– Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.

– O senhor que que eu deite logo no divã?

– Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente
estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.

– Certo, certo. Eu…

– Aceita um mate?

– Um quê? Ah, não. Obrigado.

– Pos desembucha.

– Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?

– Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.

– Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe.

– Outro…

– Outro?

– Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.

– E o senhor acha…

– Eu acho uma pôca vergonha…

– Mas…

– Vai te meter na zona e deixa a velha em paz, tchê!

*

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.

– Quem gosta de aglomerado é mosca em bicheira…

Mas acabou concordando.

– Se abanquem. Se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! Qual é o causo?

– Bem – disse o homem – é que nós tivemos um desentendimento…

– Mas tu também é um bagual. Tu não sabes que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?

– Eu não meti a espora. Não é, meu bem?

– Não fala comigo!

– Mas essa aí está mais nervosa que gato em dia de faxina.

– Ela tem um problema de carência afetiva…

– Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.

– Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extra-conjugais e…

– Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?

– Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?

– Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?

– O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.

– Mas isso tá ficando mais enrolado que linguiça de venda. Te deita no pelego.

– Eu?

– Ela. Tu espera na salinha.

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Defenestração

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.

Hermenêutica deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.

– Os hermeneutas estão chegando!

– Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada.

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.

– Alo…

– O que é que você quer dizer com isso?

Traquinagem devia ser uma peça mecânica.

-Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.

Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.

A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:

– Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:

– Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.

Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurélio que não me deixa mentir.

“Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.

Ato de atirar alguém ou algo pela janela?

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.

– Les defenetrations. Devem ser proibidas.

– Sim, monsieur le Ministre.

– São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

– Sim, monsieur le Ministre.

– Com prédios de três ou quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira um crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.

– E esta minha vontade de atirar alguém ou algo pela janela,. doutor…

– Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçadas e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.

– Querida…

– Mmmm?

– Há uma coisa que eu preciso lhe dizer…

– Fala, amor.

– Sou um defenestrador.

E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:

– Estou disposta a experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:

– Fui defenestrado…

Alguém comenta:

– Coitado! E depois ainda atiraram ele pela janela!

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

Do livro O Analista de Bagé. Porto Alegre, L&PM Editores, 1982