Ataque do PIG: Guarani-Kaiowá lutam por direito de resposta
“A escrita, quando você escreve errado, também mata um povo”. Assim afirmaram os professores Guarani-Kaiowá a respeito do que foi publicado na revista Veja, em 4 de novembro, sobre a luta de seu povo pelos seus territórios tradicionais.
Publicado 19/11/2012 15:03
Sob os títulos de “A ilusão de um paraíso” e “Visão medieval de antropólogos deixa índios na penúria” (nas versões impressa e virtual, respectivamente), a reportagem parte de uma visão: I) claramente parcial no que diz respeito à situação sociopolítica e territorial em Mato Grosso do Sul, pois afirma que os indígenas querem construir “uma grande nação guarani” na “zona mais produtiva do agronegócio em Mato Grosso do Sul”; II) deliberadamente distorcida quanto à atuação política dos grupos indígenas supracitados e dos órgãos atuantes na região, desmoralizando os primeiros ao compará-los, ainda que indiretamente, a “massas de manobra” das organizações supostamente manipuladoras e com uma “percepção medieval do mundo”; III) irresponsável e criminosa, por estimular medo, ódio e racismo, como se vê no seguinte trecho: “o resto do Brasil que reze para que os antropólogos não tenham planos de levar os caiovás (sic) para outros estados, pois em pouco tempo todo o território brasileiro poderia ser reclamado pelos tutores dos índios”.
A reportagem, assinada pelos jornalistas Leonardo Coutinho e Kalleo Coura, não perdeu “a oportunidade de apresentar, mais uma vez, a imagem dos Guarani e Kaiowá como seres incapazes, como [se] nós indígenas não fossemos seres humanos pensantes. Fomos considerados como selvagens e truculentos”, conforme escreveu o Conselho da Aty Guasu, a assembleia Guarani e Kaiowá, em nota pública lançada no último dia 5.
O documento repudia “a divulgação e posição racista e discriminante” do texto e reafirma a autonomia organizativa e política Guarani e Kaiowá na luta pela recuperação dos territórios. “A Luta pelas terras tradicionais é exclusivamente nossa. Nós somos protagonistas e autores da luta pelas terras indígenas. [E] nós envolvemos os agentes dos órgãos do Estado Brasileiro, os agentes das ONGs e todos os cidadãos (ãs) do Brasil e de outros países do Mundo”, afirmou a Aty Guasu. Ali também denuncia o tratamento difamatório na reportagem, reiterada na nota da Comissão de Professores Guarani-Kaiowá ao indicar que, propagando o ódio contra os indígenas, “a matéria quer colocar um povo contra outro povo. Quer colocar os não-índios contra os índios. Essa matéria não educa e desmotiva. Ao invés de dar vida, ela traz a morte”.
A conjuntura em que estão inseridos os Kaiowá e Guarani lhes é extremamente desfavorável. Num momento em que se procura gerar uma negociação que busque superar os conflitos entre indígenas e fazendeiros no Mato Grosso do Sul, a revista teima em incendiar os ânimos de seus leitores ruralistas. A matéria carrega em si uma série de falhas na apuração das informações, apresentando fatos falsos ou distorcidos:
1. A reportagem expõe e reforça uma imagem distorcida e estigmatizada dos indígenas como dependentes de órgãos públicos e privados, usuários de drogas e reféns dos interesses de indivíduos ou organizações exógenas às comunidades. Essa imagem estimula o racismo, o ódio e preconceito contra indígenas, problema histórico no Brasil, em geral, e no Mato Grosso do Sul, em particular, podendo intensificar a tensão e a violência já sofrida pelo povo Guarani-Kaiowá;
2. Aciona, também, preconceito contra a sociedade não-indígena, quando afirma que a população apoiadora da causa é manipulada, conforme explicitado na nota da Aty Guasu: a “(…) REVISTA VEJA considera que esses cidadãos (ãs) manifestantes seriam ignorantes e não conheceriam as situações dos Guarani e Kaiowá, os tachando de ignorantes aos cidadãos (ãs) em manifestação”. Há também uma passagem de sexismo sugestivo no texto, citando mulheres que “não perderam a chance de protestar de peito aberto diante das câmeras”;
3. Omite a verdade quando ignora de maneira retumbante os posicionamentos públicos dos indígenas Guarani-Kaiowá organizados em sua assembleia maior, a Aty Guasu;
4. Deturpa de maneira generalizada o conteúdo da carta dos Kaiowá de Pyelito Kue, imputando suas denúncias a organizações exógenas e creditando ao Cimi sua autoria e divulgação. A reportagem, no mínimo, não atentou às datas de divulgação do carta, escrita de próprio punho por lideranças de Pyelito Kue e endereçada à Aty Guasu no dia 9 de novembro. Deturpações como essa são usadas para corroborar a tese de que os Kaiowá são “manipulados” pelo Cimi, pelos antropólogos e pela Funai;
5. Não foram checadas informações e acusações. As organizações citadas no texto, notadamente o Conselho Indigenista Missionário, nunca foram questionadas pela reportagem sobre as informações e acusações;
6. Uso de fonte questionável. O antropólogo citado na matéria, Edward Luz, não é pesquisador dos Guarani e Kaiowá, sequer do Mato Grosso do Sul. É, sim, missionário evangélico, membro do Conselho Consultivo do Instituto Antropos, diretor da Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), vinculada à Missão NovasTribos do Brasil, o braço brasileiro da ONG internacional New Tribes Mission, organização que já foi expulsa ou impedida de entrar em diversas aldeias indígenas pelo órgão indigenista oficial brasileiro, a Fundação Nacional do Índio. É a mesma fonte, também, de outras matérias na revista com o mesmo teor anti-índigena;
7. Houve ma-fé no uso de informações desmentidas há tempos. As informações destacadas no mapa sobre a dita “Nação Guarani” – que revisaria limites territoriais nacionais e internacionais – e a demarcação contínua das terras do sul do Estado do Mato Grosso do Sul já foram desmentidas por indígenas e posteriormente por antropólogos e pela própria Funai, e novamente pelos indígenas durante as agendas de audiências públicas no Congresso Nacional na última semana;
8. Uso de apenas uma linha de entrevista, de maneira descontextualizada, com um único indígena – mesma fonte da matéria anterior sobre os Kaiowá e Guarani – no sentido de sugerir concordância com o texto conclusivo da matéria;
9. Exposição indevida da imagem de crianças indígenas em fotografia utilizada para ilustrar reportagem preconceituosa, com contornos sensacionalistas, ofensivos e que faz juízo de valor depreciativo de sua comunidade;
Dessa forma, o Conselho da Aty Guasu, grande assembléia dos povos Guarani-Kaiowá, em conjunto com as demais organizações signatárias, vem a público denunciar a postura criminosa da revista Veja.
A Aty Guasu Guarani e Kaiowá e a Comissão de Professores Guarani e Kaiowá exigem a investigação rigorosa e punição cabível dos responsáveis, bem como o direito de resposta aos Guarani e Kaiowá na revista Veja. Tais demandas também farão parte de Representação ao Ministério Público Federal para que este, dentro de suas competências constitucionais, tome as medidas necessárias. A imprensa é livre para se posicionar da forma que bem entenda – no entanto, os “fatos” que norteiam a reportagem citada são falsos. Não se trata de uma questão de opinião, e, sim, de irresponsabilidade. Os povos Guarani e Kaiowá já foram vitimados suficientemente por irresponsabilidades.
Dourados, 14 de novembro de 2012
Conselho Aty Guasu (Grande Assembleia do povo Guarani e Kaiowá)
Comissão de Professores Kaiowá e Guarani
Campanha Guarani
Coassinam:
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, MG e ES (APOINME)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET)
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Conselho Federal de Psicologia (CFP)
Conselho Indígenista Missionário (Cimi)
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ)
GT Combate ao Racismo Ambiental
Justiça Global
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Instituto Socioambiental (ISA)
Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)
Inst. Nac. de Ciência e Tec. de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI)
Mestrado Prof. em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Indígenas (CDS/UnB)
Movimento Brasil pelas Florestas
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
OcupaBelém
OcupaSampa
Plataforma Dhesca Brasil
Rede Jubileu Sul Brasil
Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP)
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH)
Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos
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Fonte: CampanhaGuarani.org