Abbas Kiarostami fala de seu novo filme que se passa no Japão

Abbas Kiarostami só faz metade de seus filmes. Com narrativas desestruturadas, sem distinção entre real e ficcional e desprovidas de finais conclusivos, o cineasta induz o espectador a um estado de incerteza, tirando-o da condição de passivo e obrigando-o a completar as entrelinhas de seus enredos.


Lançamento 2012: Um alguém apaixonado/imagens: divulgação

Outrora líder da new wave iraniana e realizador de obras enraizadas em sua terra natal, o diretor, hoje com 72 anos e atualmente proibido de trabalhar no Irã, lança seu segundo filme fora de casa. Depois da Itália, cenário de Cópia Fiel (2010), o Japão é paisagem para suas crípticas histórias em Um Alguém Apaixonado.

Com seus habituais óculos escuros e acompanhado de seu tradutor – Mr. K insiste em responder às perguntas em persa. Confira a entrevista que ele concedeu em um hotel de São Paulo .

Revista Cult: Em Cópia Fiel, ouvimos a frase “não é o objeto que importa, mas sua percepção dele”, e em Close Up (1990), “você deve assisti-lo diversas vezes para entender completamente”. São mensagens que você dá à audiência sobre seus próprios filmes?
Abbas Kiarostami: Acho que ao assistir um filme uma vez você pode conectar-se com ele. Mas, em todo caso, você assiste de novo não porque quer descobrir coisas novas, mas porque quer ver detalhes, nuances.

Revista Cult: Você acredita que seus filmes são restritos a uma audiência mais intelectualizada e elitizada, distante do espectador médio acostumado a blockbusters hollywoodianos?
AK: Não acho. Não gosto de categorizar meus espectadores. Já aconteceu de pessoas elitizadas não terem uma boa ligação com meus filmes e já aconteceu de pessoas incultas acharem meus filmes interessantes. Mas, de todo modo, por experiência posso dizer que meu público está mais em direção à elite.

Dito isso, não me incomodarei se as pessoas assistindo ao meu filme saírem no meio dele. Sei que é possível que algumas pessoas deixem a sala de cinema, mas sei também que alguns podem querer assistir ao filme novamente.

Revista Cult: Depois de Cópia Fiel, diversos críticos disseram que você havia sido “ocidentalizado”. Isso influiu na sua decisão de filmar Como alguém apaixonado no Japão?
AK: Talvez inconscientemente eu tenha tomado essa decisão de fazer um filme mais ao leste do meu país, para balancear essa impressão ocidentalizada. Mas não tendo a escolher desse modo o lugar em que vou fazer meu próximo filme e realmente não penso muito sobre quem pode pensar em mim como sendo ocidentalizado ou não. Vejo para onde a ideia e o assunto do filme me convidam.

Revista Cult: Há algo no Brasil que o inspiraria a fazer um filme?
AK: Não sei, pois não passei tempo o suficiente no Brasil para conhecer a geografia e cultura do país. De todo modo, meu próximo filme será na Itália.

Revista Cult: Pode adiantar de que se trata?
AK: É sobre o julgamento de uma mulher de cerca de 95 anos que matou alguém 70 anos atrás e, agora, o corpo dessa pessoa foi descoberto.

Revista Cult: Você enxerga algo de positivo na revolução iraniana de 1979 para os cineastas do país, no sentido de que restringiu as exibições para filmes feitos somente no Irã?
AK: O que posso dizer é que, para mim, as limitações foram construtivas. Mas isso pode ser diferente para os outros.

Revista Cult: Na época em que o filme A Separação, de seu conterrâneo Asghar Farthadi, venceu o Globo de Ouro no início do ano, você disse que estava esperançoso de que o prêmio ajudaria a cicatrizar a frustração da indústria cinematográfica iraniana. Já podemos ver alguma mudança neste sentido?
AK: Talvez ainda não, mas, naturalmente, com o tempo, definitivamente veremos. Filmes iranianos não passarão despercebidos, o Ocidente prestará atenção em cada filme, e esse será o primeiro fator positivo a suceder.

                                                                                                       "Cópia Fiel" (2010)

Revista Cult: Como você avalia a qualidade do cinema mundial atual?
AK: No avião vindo para São Paulo, assisti a pedaços de diversos filmes e pude sentir que Hollywood está em todos os filmes hoje em dia, é como assistir a um jogo e não um filme, ele não te faz pensar.

Também observei a outras pessoas assistindo filmes durante o vôo e vi que elas começavam com obras clássicas mas ninguém continuou até o fim, todos mudaram para filmes mais recentes, hollywoodianos.

Porém, houve uma pessoa que continuou assistindo o filme clássico até o fim, e fiquei ansioso para ver quem era. Tratava-se de um filme em preto e branco, e queria perguntar à pessoa porque o filme parecia muito bom e eu queria saber qual era.

Então quando levantei e olhei para a pessoa, percebi que ela estava dormindo.

Revista Cult: Seu trabalho é raramente considerado político, focando mais em conceitos imateriais. Você tem a intenção de emitir mensagens políticas por meio de seus filmes?
AK: Se os personagens e a história são bem feitos, não acho que um filme pode ser apolítico. Sempre estará sujeito à política. Por exemplo, em Como alguém apaixonado, que foi feito no Japão, há uma jovem garota que é uma acompanhante trabalhando para pagar sua mensalidade da faculdade. Em todo caso é um assunto voltado à situação pública acontecendo no país. Nenhum filme, se bem feito, fica à parte da situação política que está em seu contexto.

Eu venho de um país em que os poemas são mais famosos do que pistache, caviar ou tapetes. O modo como são ditos é poético, mas não há poemas, no geral, que são bons e ao mesmo tempo apolíticos. Não estou dizendo que filmes que lidam diretamente com questões políticas não são bons ou não deveriam ser feitos, mas eu não os faria.

Temos poemas de cerca de 1000 anos atrás que, quando você os lê, eles te dizem o que está acontecendo agora. Tem um que poderia ser aplicado a essa situação de hoje:

“A noite está escura e sombria e ondas de medo/ e redemoinhos em turbilhão se chocam e rugem/ Como nossa voz monótona chegará aos ouvidos/ Dos viajantes na praia com sua carga de luz? [tradução livre do poema sem título de Hafez].

Isso é muito político, muito social, mas dito de um modo poético, um modo que não está sujeito ao tempo presente.

Revista Cult: Poesia persa e imagens poéticas, particularmente da natureza, também estão amplamente presentes em sua filmografia. O que representam para você?

Eu diria que essas imagens não significam algo de fato, mas, ao mesmo tempo, elas são o ponto de partida para meus filmes. Não consigo me separar da poesia do Irã. Qualquer coisa que pode explicar a situação humana é encorajador.

A natureza também é parte da nossa vida. É verdade que vivo numa cidade moderna e industrializada e tenho que lidar com os acontecimentos do mundo de hoje.

É verdade que o processo de se modernizar e industrializar aconteceu na minha vida, nas sete décadas que já vivi. Mas se eu desviar o olhar do que está acontecendo, quando eu olhar pra trás, estarei conectado à natureza.

Revista Cult: Você é muito conhecido pelo uso de longas cenas dentro de veículos em movimento. Qual o significado metafórico disso?
AK: Talvez devêssemos nos perguntar: “por que não usar o carro?”. Por que ninguém me pergunta “por que a mesa da sala”, “por que no quarto”, “por que no escritório”, sempre me perguntam por que no carro? O carro também é parte da vida, então por que não?

Revista Cult: A maioria dos finais de seus filmes é julgada irrelevante e irrespondível por você, mas sua audiência sempre se perguntará sobre eles. Algum dia se chegará numa resposta?

Como diretor não acho que há um final definitivo para nenhum filme, mesmo com a morte do protagonista, porque a história de vida desses personagens começou antes que o nosso filme começasse e vai continuar depois que o filme acaba. Nós só escolhemos o momento que pensamos ser certo para terminar o filme.

O final de Como alguém apaixonado incomodou muita gente, porque eles julgam o final como não sendo um final. Mas se aquele não é um final, não sei o que o seria. Isso vale para todos os meus filmes: nenhum deles tem um final definitivo, porque finais definitivos não são realistas.

Na foto, o clássico Gosto de Cereja" (1997)

Revista Cult: Tirando-se da posição de diretor, como espectador, você tem uma opinião sobre o final de Gosto de Cereja?

Eu gostaria de pensar que o protagonista viveu.

Mas, mesmo que ela tenha morrido, a vida continua. Você vê que soldados aparecem em marcha e sentam debaixo das árvores e a vida continua. Então o que eu gostaria de pensar é que o que importa não é a morte de uma pessoa mas a continuidade da vida. É nesse tom que eu gostaria de terminar o filme.

Como estávamos falando de poetas e poesia, há um famoso poeta no Irã chamado Omar Khayyám e, por toda a sua vida, ele tentou enfatizar que, numa escala geral das coisas, nós somos muito pequenos. Depois que tivermos ido embora, a vida continuará e o mundo continuará. Com sorte, se percebermos isso, nos tornaremos menos egoístas.

Fonte: Revista Cult