Luciano Martins Costa: O Brasil precisa de mãos limpas
A observação cotidiana da imprensa, ao longo de alguns anos, pode provocar alucinações. Esse fenômeno pode ser causado pela exposição contínua a frações da realidade selecionadas de maneira a produzir opiniões simplistas e interpretações lineares para problemas complexos.
Por Luciano Martins Costa, Observatório da Imprensa
Publicado 15/11/2012 17:33
Deve haver por aí algum estudo sobre o efeito da fragmentação da informação no surgimento da esquizofrenia, por exemplo, o que serviria para dar algum fundamento à percepção de que a leitura crítica de jornais pode fazer mal à saúde mental.
Vejamos, por exemplo, o caso da Folha de S. Paulo, edição de quinta-feira (15/11): o debate promovido pelo próprio jornal com especialistas em criminalidade concluiu que as principais causas da recente onda de violência no estado de São Paulo são falta de inteligência e integração entre as polícias, erros da cúpula da segurança pública e falhas da legislação. No entanto, o jornal puxa as manchetes para a questão da histórica deficiência do sistema prisional, procurando fechar o foco nos baixos investimentos do atual governo federal em construção de penitenciárias.
Sem armas
A questão dos presídios foi levantada pelo próprio ministro da Justiça, ao afirmar, em declaração polêmica, que preferiria morrer a ter que cumprir pena em uma prisão brasileira.
Diz-se o mesmo, e até pior, das prisões turcas, mas não se tem notícia de que a Turquia tenha passado por ondas de crimes ou que a população daquele país esteja submetida a um ambiente de alto risco, como acontece com os habitantes de São Paulo e outras cidades do Brasil.
A declaração do ministro, reforçada na quinta-feira com a afirmação, da mesma autoria, de que o terror nas prisões estimula a violência, merecia um pouco mais de, digamos, inteligência da imprensa.
Desviar o assunto principal para a questão da execução orçamentária e forçar o leitor a acreditar que a pena de prisão é a única, ou a melhor solução para a questão da criminalidade, é reduzir o problema.
A menos que se esteja aqui sob um surto alucinatório, o reducionismo é uma maneira tosca de amenizar as responsabilidades do governo paulista sobre o surto de violência que acontece no estado: indiretamente, mas sem sutileza, a Folha está dizendo que a guerra entre o PCC e a Polícia Militar é provocada pela falta de presídios.
Ora, observe-se outra notícia, sobre o assassinato do agente da corregedoria da Polícia Militar Edgar Lavado: a vítima estava investigando a denúncia de que um grupo de PMs havia vendido a representantes do crime organizado uma lista interna com nomes, endereços e telefones de uma centena de integrantes da corporação. Ou seja, o agente executado estava apurando o fato de que policiais corruptos colaboram com os criminosos nos assassinatos de seus próprios colegas.
A Folha comenta que o comando da Polícia Militar não informou por que o agente assassinado não andava armado. Nem precisava, porque até os azulejos dos banheiros das redações dos jornais sabem que os agentes das corregedorias são obrigados a uma rotina discreta, e eventualmente nem mesmo seus familiares conhecem suas atividades. No caso de Edgar Lavado, seus vizinhos nem sabiam que ele era um policial.
Vigiar e punir
A imprensa informa que os suspeitos desse crime são integrantes do grupo conhecido como PCC, mas não é preciso muito raciocínio para se concluir que os beneficiários são os policiais que vinham sendo investigados pelo agente da corregedoria. Ou seja, estamos diante de uma crise que não pode ser misturada com a questão dos presídios, que precisa ser equacionada dentro de um quadro mais complexo, incluindo uma reforma da legislação penal.
Muitos especialistas defendem alternativas para a pena de prisão. O livro intitulado Vigiar e punir, do filósofo francês Michel Foucault, tem inspirado muitas teses sobre o resultado contraproducente das penas de prisão, que no caso do Brasil são uma reprodução dos sistemas de supliciamento na Europa do século 18.
A Folha de S. Paulo tem em sua direção alguns intelectuais de boa reputação e não é de se esperar que concordem com escolhas editoriais que desviam do objeto principal um tema tão importante para o bem-estar da sociedade.
O caso da violência em território paulista, que já começa a vazar para outros estados, não pode ser reduzido a um problema político, como tentam fazer certos protagonistas e como, de maneira grotesca, a Folha tenta na edição de quinta-feira (15).
O quadro geral da criminalidade no Brasil se cruza com a corrupção, que afeta a polícia e o Judiciário, e está a merecer uma Operação Mãos Limpas.