Saul Leblon: A caça aos passaportes e o macartismo à brasileira
O ministro Joaquim Barbosa determinou aos 25 réus condenados no processo do chamado 'mensalão' que entreguem seus passaportes no prazo de 24 horas — além de inclui-los na lista de 'procurados' da PF. A alegada medida 'cautelar' está prevista em lei para determinados casos, como informou Carta Maior em reportagem de Najla Passos.
Por Saul Leblon*, no sítio Carta Maior
Publicado 09/11/2012 10:47
Neste, porém, a decisão vem contaminada de um ingrediente que orientou todo o julgamento da Ação Penal 470 e lubrificou a parceria desfrutável entre a toga e a mídia.
Trata-se da afronta ao princípio básico da presunção da inocência, esquartejado em nome de uma panaceia complacente denominada 'domínio de fato'. Ou, 'o que eu acho que aconteceu doravante será a lei'.
A caça aos passaportes sem que se tenha esboçado qualquer disposição de fuga (apenas um dos 25 réus ausentou-se do país antes do seu julgamento e, ao contrário, retornou a ele antes de ser condenado) adiciona a essa espiral um acicate político.
Trata-se de uma aguilhoada nos réus que formam o núcleo dirigente do PT, com o objetivo explícito de joga-los contra a opinião pública, justamente por manifestarem críticas à natureza do processo.
A represália é admitida explicitamente. Segundo o relator Joaquim Barbosa, os réus estariam “afrontando” a corte ao questionar suas decisões.
O revide inusitado vem adicionar mais uma demão à fosforescente tintura política de um processo, desde o seu início ordenado por heterodoxias sublinhadas pelo revisor Ricardo Lewandowski.
O propósito de provocar a execração pública com a caça aos passaportes, remete a um método que se notabilizou em um dos mais sombrios episódios da democracia norte-americana: o macartismo.
O movimento da caça aos comunistas no EUA, nos anos 50, embebia-se de um contexto de violência gerado pela guerra fria, mas aperfeiçoaria suas próprias turquesas nessa habilidade manipuladora.
O senador republicano Joseph Raymond McCarthy, seu líder, tornou-se um virtuose na arte letal de condenar suspeitos, liderando uma habilidosa engrenagem de manipulação da opinião pública, coagida pelo medo a aplaudir linchamentos antes de se informar.
Joseph McCarthy teve uma vida cheia de dificuldades até se tornar a grande vedete da mídia conservadora, cujo endosso foi decisivo para se tornar a estrela mais reluzente da Guerra Fria.
Sem a mídia, os excessos e ilegalidades dos seus métodos não teriam atingido um ponto de convulsão coletiva, forte o suficiente para promover a baldeação do pânico em endosso à epidemia de delatar, perseguir, acuar e condenar — independente das provas e muitas vezes contra elas.
McCarthy nasceu no estado do Wisconsin, no seio de uma família muito pobre da área rural. Estudou num estábulo improvisado em sala de aula. Sua infância foi de trabalhador braçal em granjas.
Quando pode mudou-se para a cidade, fazendo bicos de toda sorte para sobreviver. No ambiente de salve-se quem puder produzido pelo colapso de 29, era um desesperado nadando sozinho para não se afogar no desespero da Nação.
Sem submergir, recuperou o tempo perdido em um curso de madureza que lhe adiantou quatro anos em um. Tornou-se advogado em 1936. Três anos depois, lutando sempre para não afundar, foi aprovado em um concurso como juiz; ingressou no Partido Republicano que o conduziria ao Senado, em 1946.
Ascendeu de forma aplicada e disciplinada, disposto a não regredir jamais à condição de origem. Aproveitando-se das relações partidárias aproximou-se do chefe do FBI, Herbert Hoover, pegando carona na causa anti-comunista que identificou como uma oportunidade em ascensão.
O resto é sabido.
Em dueto carnal com a mídia extremista, passou a liderar o Comitê de Atividades Anti-Americanas no Congresso. Desse promontório incontestável no ambiente polarizado da época, disparou sem parar a guilhotina anti-comunista.
Tornou-se um simulacro de Robespierre da ordem capitalista ameaçada pelo urso vermelho. Pelo menos era assim que vendia seu peixe exclamativo.
O arsenal do terror atingia todo o ambiente da sociedade. Mas foi sobretudo nos meio artístico e intelectual que o garrote vil implantou a asfixia das suspeição generalizada, em cujo caldeirão fervia o ácido corrosivo das perseguições, a coação insuportável não raro deflagradora de episódios deprimentes de delações.
As provas eram um adereço secundário no espetáculo em que se locupletavam jornais e oportunistas de toda sorte.
Nem era necessário levar os suspeitos aos tribunais. O método da saturação combinava denúncias com a execração pública automática. Num ambiente de suspeição generalizada o efeito era eficaz e destrutivo.
A condenação antecipada encarcerava os denunciados numa lista negra que conduzia a uma prisão moral feita de alijamento social, político e profissional. Frequentemente levava a um isolamento pior que as grades da penitenciária.
A ruptura da identidade levava a uma morte em vida. Algus preferiram o suicídio ao martírio zumbi.
MacCarthy morreu em maio de 1958, desmoralizado por um jornalista conservador, mas sofisticado e corajoso, que resolveu afrontar seus métodos e arguir casos concretos de arbitrariedade.
Edward Murrow, cujo embate político com McCarthy inspirou o filme 'Boa Noite e Boa Sorte', tinha um programa na internet de então, a TV em fraldas.
No seu See it now, ele colhia provas de casos concretos de injustiça e esgrimia argumentos sólidos contra o denuncismo macartista. Não recuou ao ser colocado na lista negra e trincou blindagem do caçador de comunista, a ponto de levá-lo a ser admoestado pelo Senado.
Em um confronto decisivo, Murrow emparedou o consenso em torno de McCarthy: 'Se todos aqueles que se opõem ou criticam seus métodos são comunistas – e se isso for verdade – então, senador MacCarthy, este país está coalhado de comunistas!'
O Brasil não é os EUA da guerra fria, nem está submetido a comandos de caça aos comunistas, como já esteve sob a ditadura militar contra a qual alguns dos principais réus da Ação Penal 470 lutaram, com risco de vida.
Certa sofreguidão condenatória, porém, ecoada de instâncias e autoridades que deveriam primar pela isenção e o apego às provas e, sobretudo, as sinergias entre a lógica da execração pública e o dispositivo midiático conservador –que populariza o excesso como virtude– bafejam ares de um macartismo à brasileira nos dias que correm.
Foi o que disse com argúcia o jornalista, professor e escritor Bernardo Kucinski, autor do premiado 'K', a angustiante romaria de um pai em busca da filha nos labirintos da ditadura militar brasileira:
O mesmo viés se insinua com relação à mídia progressista. A publicidade federal quando dirigida a ela é catalogada pelo macartismo brasileiro como suspeita e ilegítima. Dá-se a isso ares de grave denúncia. Quando é destinada à mídia conservadora , trata-se como norma.
O governo erra ao se render a esse ardil. Deveria, ao contrário, definir políticas explícitas de apoio e incentivo aos veículos que ampliam a pluralidade de visões da sociedade brasileira sobre ela mesma. Sufocar economicamente e segregar politicamente a imprensa alternativa é abrir espaço ao macartismo à brasileira".
* Saul Leblon é jornalista