Milton, Darcy e Graciliano: paixão pelo Brasil
O final deste mês reluz com o aniversário de três ícones da cultura brasileira: os 70 anos de Milton Nascimento, os 90 de Darcy Ribeiro e os 120 de Graciliano Ramos. O que há de comum entre um músico, um cientista social e um romancista?
Por José Carlos Ruy
Publicado 26/10/2012 19:33
Onde encontrar a semelhança entre dois ilustres aniversariantes desta sexta-feira, 26 de outubro? O antropólogo Darcy Ribeiro completaria 90 anos de idade no mesmo dia em que o músico Milton Nascimento faz 70, e na véspera em que outro totem da cultura nacional, Graciliano Ramos, emplacaria 120 anos de idade (em 27 de outubro).
Graciliano, por Portinari
A lembrança do velho Graça, o escritor comunista gigante que escreveu Vidas Secas, São Bernardo, Angústia, Memória do Cárcere etc. está registrada no magnífico texto com que Urariano Mota comparece a esta edição. Mas acho que Graciliano – segundo a lenda avesso à poesia e à música -, compreenderia o desafio de entender como um antropólogo e um músico andam juntos, na mesma rota que ele, como escritor, percorreu – a paixão pelo Brasil e pelos brasileiros, o esforço para compreender suas contradições, desafios e esperanças.
Fazer deste lugar um bom país
Este registro está, na música de Milton Nascimento, em canções como Nos Bailes da Vida, ou Notícias do Brasil (ambas do álbum Caçador de Mim, de 1981), onde ele canta a busca do “caminho / que vai dar no sol”, pela “estrada de terra na boleia de caminhão” onde, com “a roupa encharcada e a alma / repleta de chão / todo artista tem de ir aonde o povo está” (Nos Bailes da Vida).
Milton Nascimento
Ou lembra a notícia trazida pelo “vento que soprava lá no litoral”, vinda do Maranhão, de Fortaleza, Recife, Natal, ouvida em Belém, Manaus, João Pessoa, Teresina e Aracaju e que “lá do norte foi descendo pro Brasil Central”, chegando “em Minas” e batendo “bem lá no sul!”, mesmo sem ter dado “no rádio, no jornal ou na televisão”. Notícia que era uma afirmação, um protesto e um programa: “Aqui vive um povo que merece mais respeito! / Sabe, belo é o povo como é belo todo amor”, cujo “destino é um dia se juntar”. “tudo quanto é belo será sempre de espantar”, diz a canção. “Aqui vive um povo que cultiva a qualidade, / ser mais sábio que quem o quer governar!” O tom de denúncia prossegue numa afirmação nacional mais ampla do que a limitada percepção das elites conseguem alcançar. “A novidade é que o Brasil não é só litoral! / É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.”, com uma promessa: “Tem gente boa espalhada por esse Brasil, / que vai fazer desse lugar um bom país!”
Milton Nascimento, e o parceiro Fernando Brandt, expunham um programa, premonitório para aquele já longínquo 1981 quando a crise da ditadura militar se aprofundava e o povo passava a tomar a história nas mãos no início da rota que levaria pelo menos mais duas décadas para ganhar poder político e começar a mexer com as estruturas do país. Era um programa claro, que toca os brasileiros e constrange a elite colonizada: “Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, / não vai fazer desse lugar um bom país!”
70 anos de idade e mais de 50 de carreira (aos 13 anos já cantava em festas e bailes, e sua primeira gravação, a canção, Barulho de trem, é de 1962) fizeram de Milton Nascimento uma das estrelas mais brilhantes do céu cultural do Brasil, que ganhou reconhecimento nacional desde a explosão de Travessia (também com Fernando Brant) no Festival Internacional da Canção de 1967.
Logo depois, em Belo Horizonte (onde fora estudar economa) ligou-se aos irmãos Marilton, Lô e Márcio Borges, grupo ao qual juntaram-se depois Tavinho Moura, Flavio Venturini, Beto Guedes, Fernando Brant, Toninho Horta. Seus encontros ocorriam na esquina das Ruas Divinópolis com Paraisópolis, em Belo Horizonte, onde se ouviu pela primeira vez clássicos como São Vicente, Cravo e Canela, Para Lennon e McCartney, ou Nada será como antes. “Clube” esse imortalizado em 1972 com o lançamento do álbum Clube da Esquina, que fincava, ao lado da bossa nova, da canção de protesto e do tropicalismo, uma criativa e inovador abandeira engajada na música brasileira.
Engajamento não só diretamente político, como mostrou Coração de Estudante (1983, com Wagner Tiso), que foi um hino informal da campanha pelas Diretas Já, em 1984: “Quero falar de uma coisa / Adivinha onde ela anda / Deve estar dentro do peito / Ou caminha pelo ar / Pode estar aqui do lado / Bem mais perto que pensamos”.
Foi também um engajamento social, presente em Maria Maria (1978, com Fernando Brant) uma candente afirmação da luta pela igualdade da mulher e da luta antirracista: “Maria, Maria / É / um dom, uma certa magia / Uma força que nos alerta / Uma mulher que merece Viver e amar / Como outra qualquer / Do planeta”. Cuja luta é “a dose mais forte e lenta / De uma gente que rí / Quando deve chorar / E não vive, apenas aguenta”.
O escritor argelino Frantz Fanon, um clássico da denuncia do racismo, escreveu certa vez que o racismo sinalizado pela cor da pele não permitia ao negro fugir dele, ou disfarçar sua condição, forçando-o à luta pela afirmação da igualdade e pelo fim da iníqua opressão que ele significa. “Maria Maria” deu uma expressão poética a esta constatação: é preciso ter força, raça, gana para enfrentá-lo. É “preciso ter manha / É preciso ter graça / É preciso ter sonho sempre / Quem traz na pele essa marca / Possui a estranha mania / De ter fé na vida”.
Política, ciência, razões éticas e patriotismo
A música de Milton Nascimento é um registro artístico de questões que, nos escritos de Darcy Ribeiro, tiveram uma expressão científica. Eles representam uma visão renovada da história brasileira, ligada a um esforço militante para entender nosso país.
Darcy Ribeiro
Como os melhores estudiosos de sua geração, Darcy Ribeiro parte também do desafio de compreender o subdesenvolvimento e, unindo teoria e prática, produzir obras teóricas para a intervenção política.
No prefácio a Os brasileiros ele indaga, "essencialmente, por que uma nação tão populosa – a maior de todas as latinas e a segunda do Ocidente – e das mais ricas em recursos naturais, permanece subdesenvolvida e só é capaz de promover uma prosperidade de minorias, não generalizável ao grosso da população".
Ao mesmo tempo, reconhece a "impotência do reformismo e a fragilidade das instituições políticas chamadas a defender os interesses nacionais e populares, em face do poderio dos interesses patronais e da alienação do patriciado político e militar que sempre governaram o Brasil". "O que me interessa", escreve, "é contribuir para que se instrumente o brasileiro comum com um discurso mais realista e mais convincente sobre o Brasil, a fim de mostrá-lo e capacitá-lo a atuar de forma mais urgente e mais eficaz na transformação da nossa sociedade", opção que reafirmou em um de seus últimos livros, O povo brasileiro, de 1995: "Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo". Este "é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo". Não há ainda, denuncia, uma compreensão clara "da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias" (ver trecho da introdução em https://dev.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=197396&id_secao=11).
Esta compreensão clara, Darcy Ribeiro a procurou em outras obras, como Os índios e a civilização (1970), um relato humanamente comovente e crú da extrema violência do massacre e extermínio das populações autoctónes. Ou em trabalhos como Os brasileiros (1ª edição: 1972, com o título Teoria do Brasil), ou As Américas e a civilização (1970), onde as habilidades de historiador e antropólogo se juntam para produzir uma descrição geral da evolução social não só do Brasil mas também dos demais países latino-americanos.
Darcy Ribeiro, mais radical que muitos de seus companheiros de geração, foi um democrata solidamente apoiado no marxismo e apaixonado pelo povo de sua terra.
Uma de suas obsessões, pode-se dizer, foi a busca de um programa de desenvolvimento nacional autônomo e autossustentado, ligado às necessidades dos brasileiros, aos quais, aliás, esbanja simpatia, como deixa claro em O povo brasileiro, livro em que, fugindo dos maneirismos antropológicos tradicionais e do academicismo, tem no centro de sua análise a ação contraditória, sofrida, muitas vezes cruel, de europeus dominantes que reduziram ao trabalho forçado as populações autóctones ou africanos sequestrados em sua terra. Para ele, é a análise da luta do povo brasileiro que revela a natureza íntima do processo histórico em nosso país, com seus dois traços marcantes, o classista e o racial. Assim, se a estrutura de classes "desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos", ao mesmo tempo ela unifica e articula, do lado de baixo, "como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras", como escreveu em O Povo Brasileiro.
A confiança no povo, em sua capacidade de enfrentar e superar os graves desafios que a história lhe coloca, dá o tom otimista da obra de Darcy Ribeiro, e marca O povo brasileiro, ao lado da denúncia reiterada do descaso das elites pelo povo e pela nação. Como outros autores, ele pensa que a reordenação social do país poderia ser feita "sem convulsão social, por via de um reformismo democrático". Mas, conhecendo o caráter da elite brasileira, e ao contrário daqueles que temem a revolução, ele pensa também que essa mudança pacífica "é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas velhas leis" (O Povo Brasileiro).
“Todo artista tem de ir aonde o povo está”, cantou Milton Nascimento; todo cientista precisa fazer o mesmo caminho, ensinou Darcy Ribeiro. Graciliano teria gostado: é a mesma estrada que ele percorreu nas obras clássicas que legou.