A influência da imprensa no julgamento do mensalão
Em 2 de agosto de 2012 começou o julgamento do maior caso criminal dos últimos tempos, conhecido como mensalão. E ainda está longe do fim. Trata-se da Ação Penal 470, instaurada perante o Supremo Tribunal Federal para apurar possíveis crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, praticados inclusive por funcionários públicos e políticos.
Por Fábio Martins de Andrade, no Consultor Jurídico
Publicado 12/10/2012 21:06
Obviamente um caso desse porte requer cuidadosa cobertura pelos órgãos da mídia, tanto pela enorme importância política e jurídica, como também pela repercussão social — e até comoção — que causa.
Soaria leviano e até ingênuo sustentar, por exemplo, que um processo de impeachment devesse ocorrer longe dos holofotes da mídia. E ainda pior, soaria como um verdadeiro retrocesso no processo democrático brasileiro, no sentido de escamotear a transparência tão dura e paulatinamente conquistada ao longo dos últimos anos.
De igual modo, um esquema de corrupção que foi revelado com tintas fortes pela mídia e que originou a maior Ação Penal em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal também é notícia, por óbvio. De um lado, sustentar o escamoteamento da referida transparência, a essa altura dos acontecimentos, significaria deletério retrocesso no processo democrático que tem transcorrido com naturalidade e normalidade. De outro, qualquer tipo de limitação junto aos órgãos da mídia soaria como um ato de censura (em alguma medida), o que seria inadmissível nos dias de hoje, especialmente depois de declarada inconstitucional e malfadada Lei de Imprensa (do tempo do regime militar).
Diante disso, chegamos a nossa primeira conclusão: a transparência no julgamento do mensalão é desejável e revela um auspicioso estágio do nosso processo democrático, no qual questões graves são resolvidas dentro do ambiente de normalidade institucional e — principalmente — em continuidade constitucional.
Contudo, já se disse no passado que a liberdade de imprensa não pode se confundir com libertinagem. De fato, junto com um grande poder (de influência e de formar a opinião da população brasileira) vem também uma enorme responsabilidade (de bem prestar o serviço público de veicular e circular a informação de modo correto, imparcial e isento). No centro dessa gangorra está a principal característica da empresa jornalística: trata-se de uma empresa que, como qualquer empresa, visa a obtenção de lucro. No caso de sua atividade, a sua mercadoria é a notícia.
Isso poderia não afetar a vida das pessoas se os índices de analfabetismo e escolaridade no Brasil já estivessem equalizados com os índices dos países desenvolvidos. Todavia, essa não é a nossa realidade hoje. Ainda estamos longe de alcançar esse objetivo, apesar do esforço crescente dos governantes nesse sentido.
Com uma população sensível e relativamente manipulável, em razão da baixa escolaridade, e com o enorme poder que os órgãos da mídia concentram em suas mãos, torna-se muito importante a coerência da linha editorial do jornal, isto é, na busca pela notícia será mais ou menos tendenciosa, parcial, imparcial, isenta e objetiva, na exata proporção que a sua linha editorial for conhecida e francamente aberta.
Como o jornalismo é desenvolvido por jornalistas, seres humanos falíveis como todos, nessa atividade também há certos excessos. Um excesso que macula a atividade do bom jornalismo diz respeito ao sensacionalismo, que é estimulado e desejável para a obtenção de lucro. O sensacionalismo aqui referido não é aquele da imprensa marrom. É aquele exercido diariamente pelos órgãos da mídia na divulgação de notícias com maior ou menor relevância e com maior parcialidade do que se gostaria (quando se pensa em um serviço de jornalismo de qualidade).
Diante disso, é possível chegar a uma segunda conclusão: os órgãos da mídia se sujeitam a uma agenda que é diretamente pautada por interesses que nem sempre são claramente explicitados na mercadoria com que trabalha, ou seja, a notícia pode vir carimbada com a linha editorial do veículo e pode se submeter a uma maior ou menor quantidade de sensacionalismo, com o objetivo de incrementar o lucro da empresa jornalística.
O Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição, é formado por pessoas escolhidas seguindo determinado rito, também falíveis como seres humanos que são influenciáveis em maior ou menor medida pelos órgãos da mídia, a variar de acordo com as posições adotadas sobre os diferentes assuntos jurídicos que lhes são submetidos rotineiramente a julgamento (e até pelo distinto nível de erudição em muitos casos).
Do relator, ministro Joaquim Barbosa, já disse um advogado em um dos primeiros dias do julgamento, que ele estaria se agarrando na oportunidade que tem para deixar um legado de sua passagem pela Suprema Corte, razão pela qual vinha se preparando para o momento com dedicação quase exclusiva. Por ter-se manifestado, o advogado quase teve que responder uma representação que seria movida pelo referido ministro, segundo notícias e informações circuladas na ocasião.
O ministro Ricardo Lewandowski, excelente e sério magistrado que também ocupa cadeira na Suprema Corte, em outra oportunidade de tal processo chegou a afirmar — ao menos segundo as notícias veiculadas na época — que o julgamento teria ocorrido com enorme pressão (“com a faca no pescoço”, salvo engano). Refiro-me ao episódio em que trechos de conversas da intranet de alguns ministros foram divulgados quando a Corte analisava o recebimento da denúncia no Caso Mensalão.
O mesmo ministro Ricardo Lewandowski tem servido no Plenário como um contraponto necessário e mais sereno contra a acusação indiscriminada promovida pelo ministro Joaquim Barbosa, com a adoção integral dos elementos trazidos na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal.
Ora, nessa situação é claro que o pano de fundo de cada um dos ministros vem explicar as posições adotadas. De um lado, o ministro Joaquim Barbosa, originário do Ministério Público Federal, obviamente sente-se confortável quando lida com uma peça acusatória. De outro lado, o ministro Ricardo Lewandowski, advogado militante que se tornou magistrado pelo quinto constitucional, por óbvio busca verificar se os direitos e garantias estão sendo assegurados ou violados, se as provas são legítimas, se as provas são suficientes ou não e até se há ou não irregularidade nos autos.
É curioso notar o embate que tem sido travado entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Cuidando-se de relator e revisor do caso, geralmente sintetizam as posições de um lado e de outro quanto aos argumentos tanto para acusar e condenar, como também para defender e absolver.
Até aqui tudo ainda estaria bem. Mas, a realidade é que há enorme pressão dos órgãos da mídia no sentido da condenação (por causa do maior apelo sensacionalista que nele vem embutido), que é colocada diante da opinião pública (ou publicada) como favas contadas. E se não houvesse condenação, então estaria instituída a impunidade!
Onde essa pressão dos órgãos da mídia pode ser sentida? Ela poderá ser verificada quando da publicação do acórdão, que juntará todos os votos que estão sendo prolatados desde agosto e terminarão nos próximos meses. Indicações explícitas ou referências implícitas sobre clamor popular, indignação social, repercussão social, notícias e referências novelescas podem sinalizar para uma maior ou menor influência dos órgãos da mídia no Caso do Mensalão.
E qual é o problema de tal influência? Ora, se ela for devidamente neutralizada durante o julgamento, de modo que não contribua decisivamente para o resultado final, então certamente os direitos e garantias individuais de cada um dos acusados, de modo particular, e de todos (de maneira geral), estarão respeitados e a decisão será legítima. Caso contrário, se a pressão dos órgãos da mídia levar a uma flexibilização ou distorção (maior ou menor, pouco importa) das regras processuais e dos antecedentes jurisprudenciais relacionados ao processo penal em tema de lavagem de dinheiro e corrupção, então a decisão será ilegítima.
E qual é o problema de uma decisão da Suprema Corte ilegítima? Ora, o problema é que o último bastião de defesa e proteção dos direitos e garantias individuais estará sucumbindo às pressões externas ao julgamento, ao arrepio das provas carreadas aos autos, às regras processuais aplicáveis e aos antecedentes jurisprudenciais.
Ao invés de estabelecer a pacificação social e a segurança jurídica ao ordenamento nacional, decisão de tal jaez instaura a maior litigiosidade entre os órgãos de persecução penal e os acusados e cria maior insegurança jurídica no ambiente institucional.
Diante disso, chegamos à terceira conclusão: a decisão da Suprema Corte será mais ou menos legítima na medida em que tiver neutralizado ou sucumbido à pressão dos órgãos da mídia durante o julgamento. Isso pode ser acompanhado durante as sessões que estão sendo realizadas desde agosto, mas ficará evidenciado quando da publicação do acórdão.
Por fim, vale lembrar as principais conclusões desse breve estudo: 1) a transparência no julgamento do mensalão é desejável e revela um auspicioso estágio do nosso processo democrático, no qual questões graves são resolvidas dentro do ambiente de normalidade institucional e — principalmente — em continuidade constitucional; 2) os órgãos da mídia se sujeitam a uma agenda que é diretamente pautada por interesses que nem sempre são claramente explicitados na mercadoria com que trabalha, ou seja, a notícia pode vir carimbada com a linha editorial do veículo e pode se submeter a uma maior ou menor quantidade de sensacionalismo, com o objetivo de incrementar o lucro da empresa jornalística; e 3) a decisão da Suprema Corte será mais ou menos legítima na medida em que tiver neutralizado ou sucumbido à pressão dos órgãos da mídia durante o julgamento.
Muitas outras conclusões poderiam ser agregadas a esse breve estudo. Confiamos ao leitor a criatividade para levantar outras conclusões cabíveis sobre esses temas e outros afins relacionados à influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro.
Fábio Martins de Andrade é advogado, doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.