A guerra comercial dos EUA contra o Brasil
A carta grosseira do representante do Comércio Exterior dos EUA, Ron Kirk, ao ministro Antonio Patriota faz ameaças ao Brasil e confirma a guerra cambial em andamento
Por José Carlos Ruy
Publicado 23/09/2012 14:40
Há uma guerra comercial dos Estados Unidos contra o Brasil, e ela ficou explícita na quinta-feira (20), quando o representante do Comércio Exterior do governo dos Estados Unidos, Ron Kirk, enviou uma carta, grosseira e ameaçadora, ao ministro das Relações Exteriores Antonio Patriota, reclamando das medidas que o governo brasileiro adotou para proteger a economia (a indústria, sobretudo) contra as manobras dos EUA e dos países ricos para desvalorizar suas moedas e, indiretamente, favorecer suas próprias exportações.
Nas últimas décadas os EUA e os países ricos adotaram práticas econômicas (como a manipulação do valor de suas moedas e variações no câmbio e nas taxas de juros) cujo resultado foi “exportar”, para os países da periferia do mundo capitalista, seus próprios problemas estruturais, espalhando a crise econômica e prejudicando severamente o desenvolvimento dos países chamados emergentes.
Isso mudou e o Brasil, hoje, não aceita mais as imposições e a arrogância dos representantes de Washington, das quais a carta enviada por Ron Kirk é o exemplo mais recente.
A carta é uma resposta às medidas recentemente adotadas por Brasília, de elevar em setembro as tarifas de importação, de 12% para 25%, de uma lista de 100 produtos industrializados, e de anunciar a preparação de outra lista para outubro. Mesmo assim a nova tarifa média é bastante inferior ao teto de 35 % estipulado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Na carta, o governo dos EUA pede ao Brasil que volte atrás nessa decisão, que considera como "protecionista". Ron Kirk argumentou que as medidas "vão contra os esforços mútuos" de liberalizar o comércio no âmbito mundial, "erodem" as negociações comerciais multilaterais e prejudicariam "significativamente" as exportações dos EUA em áreas "cruciais" da sua pauta de exportações. "Os aumentos de tarifa significativamente restringem o comércio a partir dos níveis atuais e claramente representam medidas protecionistas", escreveu.
E ameaçou: "historicamente, tais ações frequentemente levaram os parceiros comerciais a responder na mesma moeda, o que amplificaria o impacto negativo [das medidas]." E enfatizou: "Escrevo para dizer em termos fortes e claros que os Estados Unidos estão preocupados com os aumentos de tarifas definidos e propostos no Brasil e no Mercosul".
Descontentamento de um lado, descontentamento de outro. O governo brasileiro manifestou já na quinta-feira (20) sua reação à descortesia estadunidense. Sua resposta, pública, foi uma reafirmação clara da soberania brasileira e de repúdio contra a arrogância. A carta, disse, Tovar Nunes, porta-voz do Itamarati, é "injustificável" e "inaceitável". "Não gostamos nem do conteúdo nem da forma. Consideramos injustificadas as críticas, não têm fundamento". Essa “forma de comunicação não é aceitável, não ajuda e não reflete” o “bom relacionamento" entre os dois países.
Em Londres, participando do seminário High-Growth Markets Summit 2012 (Encontro de Cúpula dos Mercados de Alto Crescimento 2012) da revista The Economist, o Ministro da Fazenda, Guido Mantega respondeu à impertinência no mesmo tom, classificando a crítica estadunidense como “absurda”. Ele lembrou que as barreira alfandegárias adotadas pelo Brasil são muito menores se comparadas aos EUA, Alemanha e Reino Unido. “O Brasil está no final da fila”, disse.
Usando dados da Global Trade Alert, mostrou que, além de medidas diretas de protecionismo, os EUA praticam o chamado “quantitative easing”. Ou seja, a maciça injeção de dólares na economia pelo banco central dos EUA (o FED), que é “uma forma indireta de protecionismo, porque desvaloriza a moeda local, reduz o valor do dólar, e um dos objetivos disso é poder aumentar as exportações norte-americanas”, acusou o ministro brasileiro.
Na contra mão das pretensões manifestadas por Ron Kirk, Mantega lembrou os recursos de que o governo brasileiro dispõe diante da terceira rodada do “quantitative easing” recentemente anunciada pelos EUA, e que o Japão também disse que vai praticar – o FED anunciou recentemente uma terceira rodada de afrouxamento monetário prometendo comprar 40 bilhões de dólares por mês em títulos hipotecários, ação cujo resultado pode ser uma redução ainda maior nas taxas de juros, com o objetivo de relançar a economia. Um dos resultados desse afrouxamento é a enxurrada de dólares no mercado mundial, desvalorizando a moeda dos EUA.
O Brasil não vai permitir a valorização do real, disse Mantega. Contra a enxurrada de dólares promovida pelo FED e pelos bancos centrais dos países ricos, ele relacionou as medidas que o governo brasileiro pode tomar. Uma delas é a compra de dólares pelo Banco Central do Brasil. "Vamos aumentar as nossas reservas, ou vamos fazer operações no mercado de derivativos, compras no mercado futuro. Se não for suficiente, tomaremos medidas de taxação de IOF, como já fizemos no passado", em outubro de 2011, medida que foi muito criticada pelos especuladores.
O ministro não tem ilusões; para ele, a guerra cambial já está em andamento e, nesse ambiente, o governo brasileiro não vai permitir uma queda na competitividade da indústria. O governo pretende “uma indústria forte”, disse, lembrando que ainda há espaço para a queda na taxa de juros. Mantega assegurou o uso da política monetária para promover crescimento dizendo que o Brasil pode ter uma política monetária ativa pois, no país, “o crédito ainda é relativamente restrito”.
O fundo da crise é a falência da economia mundial agravada pelo fracasso da economia dos EUA desde 2007/2008, pensa o ministro. Um dos efeitos da crise mundial é a falta de mercados para os produtos fabricados nos EUA ou em outros países ricos; em consequência, "os exportadores vêm atrás do Brasil, que é um dos poucos países que crescem” Com isso, prejudicam a indústria brasileira, afirmou Mantega, identificando as causas e os responsáveis pelas dificuldades enfrentadas pelos exportadores dos EUA e dos países ricos.
Os bancos centrais dos países ricos, e dos EUA em particular, querem desvalorizar o dólar justamente para favorecer seus exportadores. O efeito da desvalorização do dólar é prejudicial para as exportações brasileiras e favorável às importações, situação que prejudica principalmente a indústria.
Dólar barato significa produtos estrangeiros baratos no mercado brasileiro, e produtos brasileiros caros no mercado estrangeiro.
Por exemplo, com o dólar custando 2,00 reais, um produto importado cujo custo externo seja 1,00 dólar valerá 2,00 reais no mercado brasileiro; se o dólar cair para 1,50 reais, o preço daquele produto terá aqui queda na mesma proporção, de 2,00 reais para 1,50 reais. Em relação às exportações, o Brasil fica igualmente prejudicado. Com o dólar a 2,00 reais, um produto brasileiro que custe 1,00 dólar no mercado externo renderá 2,00 reais para o exportador brasileiro. Com o dólar mais barato, a 1,50 do nosso exemplo, o mesmo produto brasileiro vendido no exterior precisará ter seu preço aumentado para 1,33 dólares para gerar os mesmo 2,00 reais que alcançava quando dólar custava mais caro.
As dificuldades que a desvalorização do dólar agrava para a exportação de produtos brasileiros são acompanhadas também pelas perdas provocadas para a produção brasileira pela concorrência de produtos estrangeiros barateados. A história é conhecida: menos lucros, menos vendas, mais desemprego.
A desvalorização do dólar significa, dessa forma, produção fraca e desemprego no Brasil, e fortalecimento da produção e do emprego em países como os EUA ou União Europeia. "É uma maneira de fazer protecionismo, porque ela desvaloriza a moeda local", disse Mantega. "Reduz o valor do dólar e um dos objetivos disso é poder aumentar as exportações americanas."
O sentido da guerra cambial promovida por eles é justamente este: empurrar para os chamados países emergentes a solução dos problemas que enfrentam em sua própria, e estruturalmente desajustada, economia.
Com agências