O modo liberal de comandar o mundo: “progridam” ou matamos vocês!
Qual o mais poderoso e mais violento “-ismo” do mundo? A resposta automática será “islamismo”, agora que o comunismo saiu do olho do alvo. Mas a resposta certa, escreveu Harold Pinter, “praticamente nunca foi gravada, senão superficialmente, jamais foi documentada nem reconhecida”, porque é a única ideologia que se apresenta como não ideológica; nem de direita, nem de esquerda; e que se apresenta como a suprema solução, é o liberalismo.
Por John Pilger, em seu site (JohnPilger.com)
Publicado 12/09/2012 17:01
Em seu ensaio de 1859, On Liberty, ao qual liberais modernos rendem homenagens, John Stuart Mill descreveu o poder do império. “O despotismo é modo legítimo de governo no trato com bárbaros”, escreveu, “desde que o objetivo seja o progresso deles, seu aprimoramento; e o meio, justificado, porque realmente leva àquele resultado.” Os “bárbaros” eram vastas porções da humanidade cuja “obediência implícita” se exigia. O liberal francês Alexis de Tocqueville também acreditava firmemente que a conquista sangrenta sobre outros seria “um triunfo da cristandade e da civilização” que estaria “claramente predeterminado na visão da Providência”.
“É mito elegante e conveniente que os liberais sejam pacificadores, e os conservadores, pró guerras”, escreveu o historiador Hywel Williams em 2001, “mas o imperialismo à moda dos liberais pode ser mais perigoso, por sua natureza ilimitada, sem prazo para acabar – a convicção de que representaria uma forma superior de vida [ao mesmo tempo em que nega] o próprio fanatismo arrogante”. Tinha em mente, naquele momento, um discurso de Tony Blair, proferido imediatamente depois dos ataques do 11/9/2001, no qual Blair prometeu “reordenar esse mundo à nossa volta” segundo seus próprios “valores morais”.
Um milhão de mortos – só no Iraque – no mínimo, depois daquele discurso, esse perfeito tribuno do liberalismo vive hoje como empregado pago pelo tirano que governa o Cazaquistão, com salário de 13 milhões de dólares [1].
Os crimes de Blair não são raros. Desde 1945, mais de 1/3 dos países-membros da Organização das Nações Unidas, ONU – 69 países – padeceram de uma ou de várias das seguintes desgraças. Foram invadidos; tiveram governos derrubados; movimentos sociais foram reprimidos; as eleições foram subvertidas e a população, bombardeada. O historiador Mark Curtis estima em milhões o número de mortos. Esse foi, principalmente, o projeto desse campeão liberal, os EUA, cujo celebrado presidente “progressista”, John F Kennedy, como pesquisa recente acaba de demonstrar, autorizou o ataque a bombas contra Moscou, na crise dos mísseis em 1962. “Se temos de usar a força”, disse Madeleine Albright, secretária de Estado dos EUA no governo liberal de Bill Clinton, “é porque somos os EUA. Somos a nação indispensável. Estamos acima. Vemos mais longe, no futuro”. Difícil encontrar definição mais compacta do mais violento moderno liberalismo.
A Síria é projeto antigo. Eis um excerto de um telegrama conjunto, da inteligência dos EUA e do Reino Unido, que vazou:
Foi escrito em 1957, embora só tenha vindo à tona em recente relatório do Royal United Services Institute (RUSI), intitulado A Collision Course for Intervention [Uma rota de colisão para intervenção] [2], cujo autor diz, fingindo que adivinha: “É altamente provável que algumas forças especiais e fontes de inteligência ocidentais já estejam na Síria há tempo considerável”. E assim vão acenando com uma guerra mundial, a partir da Síria e do Irã…
Israel, a violenta criação e criatura do ocidente liberal, já ocupa parte da Síria. Não é novidade: israelenses fazem piqueniques nas Colinas do Golan e dali assistem à guerra civil dirigida pela inteligência ocidental a partir da Turquia e financiada e armada pelos medievalistas que reinam na Arábia Saudita. Já tendo roubado praticamente toda a Palestina, atacado o Líbano, matado de fome o povo de Gaza e construído vasto arsenal ilegal de armas atômicas, Israel é mantido à parte da atual campanha de desinformação orientada ao objetivo de instalar fregueses fiéis do ocidente em Damasco e Teerã.
Dia 21 de julho, o colunista Jonathan Freedland do Guardian ameaçava que “o ocidente não se manterá isento por muito tempo (…) Ambos, EUA e Israel olham ansiosos as armas nucleares e as armas químicas da Síria, que hoje se diz que estariam destravadas e em movimentação, temendo que Assad decida desencarnar numa nuvem radiativa de glória.” Quem disse? Os “especialistas” e “jornalistas” de sempre.
Como eles, Freedland também deseja “uma revolução sem a total intervenção que se fez necessária na Líbia”. Segundo números do próprio Freedland, a OTAN realizou 9.700 “voos-ataque” contra a Líbia, dos quais mais de um terço contra alvos civis. Usaram-se mísseis com ogivas de urânio. Vestígios podem ser encontrados nas fotos das ruínas de Misrata e Sirte e nas covas coletivas, já localizadas pela Cruz Vermelha. Ou que se leia o relatório da Unicef sobre crianças mortas, “a maioria das quais com menos de dez anos”. Como a destruição da cidade iraquiana de Faluja, não se noticiaram esses crimes, porque a imprensa, usada como instrumento para desinformar é arma de ataque já plenamente integrada ao arsenal ocidental.
Dia 14 de julho passado, o Observatório Líbio de Direitos Humanos, que fez oposição ao regime de Kadafi, relatava: “A situação dos direitos humanos na Líbia é hoje muito pior que durante o governo de Kadafi.” Ações de limpeza étnica são regra. Segundo a Anistia, a população da cidade de Tawargha “continua impossibilitada de voltar, porque suas casas foram saqueadas e queimadas”.
Entre os acadêmicos do planeta anglo-norte-americano, teóricos influentes, conhecidos como “realistas liberais”, ensinam há muito tempo que os imperialistas liberais – expressão que jamais empregam – são os pacificadores do mundo, e gerentes especializados em gestão de crises, não a causa da crise. Extraíram do estudo das nações toda e qualquer consideração sobre humanidade, e congelaram seus saberes num jargão que serve bem ao poder de fazer guerras. As nações são analisadas como cadáveres em mesa de dissecação e autópsia. Assim identificaram “estados falidos” (nações difíceis de explorar) e “estados bandidos” (nações que resistem à dominação ocidental). Que o regime seja democrático ou ditatorial, não faz diferença. O mesmo vale para os que são contratados para fazer o serviço sujo.
No Oriente Médio, desde o tempo de Nasser, até a Síria de hoje, sempre houve liberais islamistas colaboracionistas aliados aos liberais ocidentais; agora, o ocidente está aliado a Al-Qaida. E noções de democracia e direitos humanos, já completamente desacreditadas, servem ainda como fantasia retórica para encobrir as ações de conquista “como se exige”.
Plus ça change…
Notas dos tradutores
Tony Blair
[1] Tony Blair também arrecada lá seu dinheirinho de empresários paulistas, nobremente a serviço da “melhoria de gestão” do governo do Estado de São Paulo, Brasil, contribuição desinteressada que o governador Alckmin, da social-democracia (só rindo) paulista, aceitou lépido. Há notícia sobre isso, do dia 27/8/2012, no jornal O Estado de São Paulo, em: “Tony Blair prestará consultoria ao governo de São Paulo”. Aí se lê que “a consultoria será prestada por meio do Movimento Brasil Competitivo (MBC), que implantará um projeto de modernização de gestão que custará R$ 12 milhões ao longo de um ano”. Dinheiro excessivo, que a Vila Vudu jamais pagaria a homem sem qualquer especialização reconhecida e que, há uma década, alardeava que obrava para “reordenar esse mundo à nossa volta”, com o resultado que hoje se constata. Mas, sim, claro, é possível que arrange negocinhos para os empresários paulistas que pagam-lhe o michê.
[2] 25/7/2012 Syria Crisis Briefing, Michael Clarke em: “A Collision Course for Intervention” (em .pdf)
Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu