Rio+20 foi tida como fracasso até antes de iniciar, diz geógrafa
“Na Europa e na Itália a Rio+20 foi olhada com quase desprezo e antes mesmo que começasse – e também depois – foi julgada um fracasso", declara Teresa Isenburg, professora de Geografia Política e Econômica, no Departamento de Estudos Internacionais da Universidade dos Estudos de Milão, em entrevista ao Blog do Sorrentino.
Publicado 27/08/2012 10:51
Atuante acadêmica da área de geografia humana, ela se dedicou a estudos da transformação do território italiano, mas me chamou a atenção pelos estudos brasileiros: Lo spazio agricolo brasiliano, Milano, 1986; Naturalistas italianos no Brasil, São Paulo, 1990; Brasile: una geografia política, Roma, 2006. Ela vem de publicar um livro muito interessante, L’Amazzonia e la foresta, Jacabook Spa, Milano, 2012, que gentilmente me autografou “con amirazione per il percorso del nostro amato Brasile” [com admiração pelo percurso de nosso amado Brasil].
Sim, ela é genuína e sinceramente uma amante do Brasil, cujos desafios acompanha há décadas, como uma comunista de consciência científica e crítica da realidade do mundo, que vive parte importante da vida entre nós brasileiros.
Teresa é das fileiras do Partido da Refundação Comunista e analisa criticamente a situação daquele (também amado) país e os dilemas da esquerda para fazer frente a uma das grandes crises vividas pelos italianos.
Nossa conversa se iniciou pelo livro recém-editado. Com informação precisa e erudição, Teresa discorre sobre os grandes temas que envolvem a Amazônia e o suposto papel de “pulmão do mundo”, sobre o Código Florestal brasileiro, a questão agrária e indígena brasileira, e até as mudanças climáticas, com rigor e uma visão profundamente progressista, questionando o discurso prevalecente na Europa – em governos e ONGs –, nada desinteressado no que concerne a ingerências atentatórias à soberania brasileira.
A entrevista fala disso e trafega também para a atual situação do Brasil, da Itália e do mundo. Fico feliz não só por dá-la a conhecer a vocês. Também por sua grande contribuição ao debate de ideias avançadas no Brasil e no mundo. Bom proveito aos leitores do blog, enquanto sua produção acadêmica não se encontra em língua portuguesa.
Walter Sorrentino: Teresa, obrigado por participar do blog. Seu último livro trata da Amazônia. Pareceu-me voltado especificamente para o público europeu. Comecemos assim: como surgiu a ideia do livro? O quanto é “romantizada” a ideia que se tem da questão amazônica na chamada “opinião pública” média da Itália ou Europa em geral?
Teresa Isenburg: Antes de mais nada, quero ressaltar que tenho a consciência de que esta pesquisa é o resultado do meu conhecimento limitado sobre esta região, tanto vasta como complexa. O livro se dirige a um público europeu e principalmente italiano.
O objetivo, em primeiro lugar, é tentar informar alguns dados materiais sobre a Amazônia e apresentar os lineamentos da política territorial da União e dos estados, utilizando as fontes cientificas e o documentos administrativos brasileiros.
A Amazônia não é um grande caldeirão verde, vazio de homens e de relações sociais, à espera de ser salvo pelos europeus sensíveis às questões ambientais; é uma área antrópica e dinâmica, com projetos, contradições, conflitos: isto é o que quero transmitir aos meus compatriotas.
WS: Por outro lado, os interesses de governos de países europeus têm insistido, de distintas formas, agressivas ou diplomáticas, em proclamar soberania limitada para a Amazônia (lembro-me de até Mitterrand propor isso). Agora, com as polêmicas em torno das mudanças climáticas, há outras ondas de ingerência nesse sentido. A ideia de Amazônia com “pulmão do mundo” é evocativa, mas falsa. Como você vê esse panorama de disputas na atualidade?
TI: Acredito que a hipótese vigente nos anos 1980 e 1990 em alguns países do norte do mundo de cercear a soberania de alguns Estados nacionais amazônicos, em nome de superiores interesses ambientais da humanidade, foi derrotada. Neste setor o Brasil desenvolveu um trabalho diplomático, comunicativo, cientifico e político que foi um sucesso.
Parece-me que atualmente o debate sobre as mudanças climáticas ressalta a importância geral que possuem as vastas florestas do mundo, logo também daquela amazônica, mas se reconhece a impostação correta da política brasileira neste assunto.
Aquilo que surpreende é que na opinião pública europeia, muito se discute sobre a floresta amazônica e suas modificações, enquanto nada se diz sobre as florestas extensas da zona temperada, que em países como o Canadá e a Rússia, são cortadas sem misericórdia.
Sobre este ponto, será importante seguir a ação da FAO, na qual o diretor, há mais de um ano, é o brasileiro José Graziano da Silva, o que confirma o papel crescente da diplomacia do Brasil.
WS: Importante lembrança essa, de Graziano na FAO. Teresa, o Brasil tem uma legislação ambiental avançada e, no estado do Amazonas, por exemplo, há 96% da floresta em pé. Há um projeto nacional de desenvolvimento e uma estratégia para a Amazônia. Qual tua apreciação sobre o curso dado pelo governo brasileiro desde a eleição de Lula em 2002?
TI: É visível que o Brasil esta construindo um projeto estratégico para a Amazônia. Os dez anos que transcorreram da eleição do presidente Lula abriram um percurso cujo ponto focal é o desenvolvimento econômico com inclusão social e garantia do ambiente. Isto é feito através de uma robusta integração regional, que passa por modificações infraestruturais, um reforço do sistema das terras indígenas e unidades de conservação, um trabalho de consolidação das redes urbanas, uma qualificação econômica que olha a pesquisa científica e a alta tecnologia. Isto tudo não se esquecendo da enorme divida social que atinge a região. É um projeto denso. A Amazônia está se transformando de espaço isolado a espaço inserido nas relações socioeconômicas.
WS: Você discorre no livro sobre a questão indígena brasileira. Você sabe que nossa posição (do PCdoB) foi favorável à demarcação de terras indígenas, como medida democrática, mas preocupa-nos a demarcação contínua em áreas de fronteira. O indígena é um brasileiro, também, e o que faz falta nessas regiões é a presença do Estado brasileiro. Há aí determinadas contradições, mas nós comunistas não as vemos como antagônicas. Como você vê a questão?
TI: Sobre o tema da demarcação e regulamentação das terras indígenas, a Constituição de 1988 buscou contrabalançar a política de forte agressão a estas populações, que caracterizou o longo período do regime militar. Entretanto acredito que seja correta a tendência que se está consolidando de reforçar a presença do Estado nas terras indígenas, com serviços sociais e de inserimento na vida democrática do país.
A necessidade de controlar a ampla faixa da fronteira é indiscutível. Acredito que também a gestão das riquezas minerais (algumas estratégicas e muito procuradas como as terras raras) não possa deixar de estar incluída num projeto nacional. Não deve se esquecer da questão dos conhecimentos tradicionais, que não pode ser deixada indefinida. Também aqui se encontra a interferência internacional e de poderosos grupos nacionais, que não são nada inocentes, mesmo escondendo-se atrás de justificações da defesa do ambiente o das minorias. Acredito que sejam úteisl – e já praticados – acordos com outros países da área, porque o bioma supera os confins nacionais.
WS: Também a questão do Código Florestal em debate no Congresso você comenta no livro. Tenho tratado insistentemente do tema aqui no blog. Para (muito) além da polêmica supostamente central – agronegócio X ambientalistas – temos posto em pauta um projeto nacional de desenvolvimento, que não prescinde da condição de ser o Brasil uma potência agrícola, uma potência energética (de energia limpa), e que a utilização do solo precisa levar em conta essas necessidades do desenvolvimento, entre as quais a preservação do ambiente, dos biomas e da riquíssima biodiversidade brasileira. Bem, o desenvolvimento deverá fazer frente aos principais problemas ambientais do país, como a contaminação das águas, falta de saneamento, pobreza… Mas o que quero perguntar é o seguinte: na condução dos debates, o PCdoB se adiantou em proclamar os direitos dos pequenos e médios proprietários rurais, que não podem ser estrangulados na sua atividade econômica pelas normas do Código Florestal. Gostaria de saber tuas opiniões sobre essa visão.
TI: Os ecos das polêmicas sobre o percurso do Código Florestal brasileiro chegaram na Itália, com intervenções alarmistas e acusadoras nas redes sociais. Daquilo que entendi, existe um grande esforço da parte da administração federal e dos estados para redigir cadastros pontuais sobre a situação do uso do solo e dos tipos de propriedade para poder depois monitorar as alterações que serão realizadas. Isto é válido também para o patrimônio florestal e para a Reserva Legal cuja definição e aplicação não pode ser igual para todo o pais. Interessante que na gestão agroflorestal se tende – como no passado – a considerar de forma unitária a pequenos e médios proprietários rurais.
Também no Código florestal volta o problema: a média propriedade rural é um elemento importante para garantir o mercado interno e, portanto, deve ser considerada com particular atenção; a pequena propriedade coloca, ao invés, imperativos de necessidade social.
O Brasil e a Itália nas suas histórias comungam o fato de não haverem jamais realizado uma reforma agrária, de não haverem ampliado o direitos dos camponeses no momento historicamente necessário: este fato teve na Itália consequências socioeconômicas e políticas graves, que duraram no tempo. O Brasil ainda tem tempo de evitar um fenômeno tão negativo e obviamente hoje a questão agrário-florestal não se apresenta mais nos termos clássicos “terra a quem a trabalha”.
WS: Tenho minhas controvérsias quanto à questão da magnitude das mudanças climáticas, a gênese antrópica delas, e, claro, as explorações políticas que se faz do tema. Você é uma estudiosa do assunto. Como você analisa a Rio+20 no tocante a esses temas?
TI: Na Europa e na Itália a Rio+20 foi olhada com quase desprezo e antes mesmo que começasse – e também depois – foi julgada um fracasso. Nos movimentos sociais a atenção se concentrou quase exclusivamente na Cúpula dos Povos. Pessoalmente considero a Rio+20 um momento importante, se não houvesse outros motivos, pelo simples fato de ter sido possível no bojo de uma crise econômica pesada. A Conferência, sobre a indicação da ONU, era sobre o desenvolvimento sustentável; a Europa buscou desviar o foco principal levando as discussões sobre as mudanças climáticas e propondo como solução a chamada economia verde. A fortíssima pressão diplomática não obteve sucesso e prevaleceu a linha econômico-diplomática do Brasil e China. Esta dizia que o desenvolvimento sustentável se constrói unindo as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas diferenciadas, segundo a situação de cada país, colocando no interior desta tríade as mudanças climáticas. Creio que seja um grande passo avante, porque tal impostação propõe um modelo articulado, não economicista e tecnicista como o modelo da economia verde.
Não existe um tratado final (como aconteceu com a Rio 92), mas são orientações para serem seguidas de forma voluntária: não me parece uma coisa negativa, é a tendência diplomática dos últimos anos.
WS: Teresa, impossível não falarmos da Itália. Podemos falar de uma década (ou mais) perdida em termos de desenvolvimento? Por que a reação é tão difícil? Você me disse que o povo está ressentido e com raiva, a esquerda segue sem apresentar uma perspectiva concreta, e la nave va. Como reagem os setores críticos da sociedade – me preocupa em especial no plano das ideias, além, claro, dos movimentos sociais. As coisas parecem estagnadas…
TI: A situação na Itália não é boa. A desativação, no inicio dos anos 1990, do Partido Comunista Italiano e da Democracia Cristã, que ofereciam vastos referimentos ideológicos, com forte atenção social, deixou na sociedade um amplo improviso e vazio. Este vazio foi ocupado por uma versão ideológica particularmente vulgar do neoliberalismo, com poderosa organização comunicativa, ao redor do berlusconismo. Foi incentivado e reanimado a difusa componente pequeno-burguesa de direita, incrustada na formação cultural italiana e encontrou um amplo consenso.
Não se pode esquecer que na Itália o fascismo e o imperialismo primitivo em relação à Líbia e a Etiópia tiveram por 20 anos um apoio de massa. As forças de esquerda estão muito divididas e incertas, mesmo diante de objetivos que deveriam ser claros, como o empenho absoluto contra as ações militares nos teatros de guerra ou a construção pontual de projetos para encontrar lugares de trabalho, por exemplo. Uma lei eleitoral antidemocrática expulsou do parlamento representantes dos partidos da esquerda mais consequentes. A CGIL, principalmente alguns setores dela, como os metalúrgicos, é o principal sujeito da luta.
O Executivo, seja nos passados governos Berlusconi, seja no governo neoliberal tecnocrático atual, não abre nenhum espaço de confronto e de diálogo com a sociedade civil. Neste quadro a crise econômica pesadíssima se abate com ferocidade social, mas a ausência de um sujeito político forte e organizado que transforme a raiva em lutas com finalidades concretas, gera uma ulterior resignação e desencanto político.
Fonte: Blog do Sorrentino