Walter Sorrentino: Hesse, os lobos e a sociedade humana
Foi relançada no Brasil a obra de Hermann Hesse. OESP dedicou-lhe matéria com o articulista Luis Krausz, e os testemunhos de Cristóvão Tezza e Silvio Telles; todos me tocaram: reacenderam memórias.
Publicado 15/08/2012 17:45
Eu deveria reler Hesse, ainda não o fiz. Mas dei-me conta, mais que em qualquer outro momento, que meu caminho para o marxismo se iniciou com Sidarta, Demian e O lobo da estepe. São as circunstâncias de cada um; muitos fizeram essa trajetória a partir de base cristã; no caso, ao contrário, eu rompia com as bases cristãs naquele processo. Um pouco como disse um crítico (Rodrigo Petrônio, poeta), Hesse me fornecia uma “religiosidade laica”.
Era por volta de 1968-69, 4º ano ginasial e 1º colegial. Na escola pública, o fechamento era total, inexplicável para um adolescente de 14-15 anos; quem podia explicar havia sido calado pela ditadura em seus arreganhos do AI-5, o que viria a ter consciência depois. Eu me agarrava nas franjas da contracultura já em voga, na revolução dos costumes, na reação ideológica à geração dos pais, rupturas com minha formação católica (sem dramas), com os valores “tradicionais”. Só o iê-iê-iê e o rock dos Beatles nos “liberava”. Eu formava meu lado, mas isolado e me sentindo “tardio”. Acompanhava perplexo aquela explosão que mudou o mundo (ocidental).
Dei com um professor fantástico de português, o saudoso Márcio. Mente crítica, estimulante: me apresentou à obra de Hesse, Erich Fromm, Herbert Marcuse, até mesmo Freud. Assim foi estimulada minha indagação de um sentido para a existência. A irredutível questão de ser o homem o lobo do homem ou o homem se definir radicalmente como ser social, forjado decisivamente na vida em sociedade. Ansiava por uma ética da individualidade compatibilizada com forte senso de responsabilidade social. Tudo estava imerso em contestação – ainda romântica – mas suficiente para eu me sentir um “rebelde em busca de um sentido para a existência”, com uma base profundamente humanista, em busca de “um outro mundo possível” (não, não havia essa formulação na época, uma pena).
Eu estava me autosemeando. Fui encontrar respostas mais elevadas, para além da introspecção reflexiva de Hesse, no existencialismo. Sartre estava em (muita) evidência e, para mim, ligava a reflexão sobre aqueles temas ao ativismo contra a guerra, apesar de manter a perspectiva muito dominante da individualidade. Saí em busca de entender o existencialismo, sem outro estímulo que não a curiosidade e teimosia pessoal, em busca de, diria hoje, liberdade espiritual. Ao fim desse túnel, que reforçou convicções anteriores, meu aufhebung foi de fato o marxismo, ápice da busca de um humanismo radical, uma “narrativa” que dava um sentido histórico, materialista e de desenvolvimento dialético infinito, e nos propiciava uma perspectiva, não mais romântica (embora ainda algo utópica para um jovem de 17 anos). Mas radicalmente transformadora da realidade, a partir de um projeto socialista, isso conformando um outro modo de individualidade.
Fui ao encontro do marxismo apenas em 1972, no primeiro ano de Faculdade. A noção de uma realidade contraditória, radicalmente historicizada, com fundamentos estabelecidos em processos de infraestrutura e superestrutura,assentados em relações sociais de produção, por sua vez plasmadas em determinadas condições de desenvolvimento das forças produtivas. Aquilo me “amarrou”. Fui ao marxismo inicialmente pelo caminho do último Engels: não se poderia entender o mundo sem aquilo, como não se poderia entender a biologia sem a revolução teórica introduzida por Darwin.
Então, meu caminho marxista foi refratado pelo existencialismo. Eu deixava de ser apenas um desencantado; levava sim, da contracultura, o desencantamento ou a desmistificação do mundo e guardei desse trajeto a noção da busca do saber, contra a mediocridade da sociedade de consumo. Como comunista, aos anos iniciais ativistas, juntaram-se arroubos generosos em defesa dos valores humanos, da liberdade.
Pensando agora, esse caminho me levou a não subestimar a complexidade do real e, principalmente, de seu único intérprete consciente, o ser humano.
Acho que todos que, de diferentes modos e percursos, fizeram-se marxistas, devem julgar-se vitoriosos. Senão por outras razões – a de ter contribuído tanto para modificar a vida humana no século 20, ao menos por nunca termos abandonado a denúncia de que, os que persistiram em firmar a dominância da condição humana de lobo, para a afirmação da individualidade, estão enganados ou se resignam a levar o mundo às consequências regressivas dramáticas com que nos defrontamos ainda hoje. Não tenho dúvida de que a razão histórica estará do lado de cá da barricada em que o capitalismo transformou o mundo.
Blog Walter Sorrentino