E se a Bolívia pudesse ver o mar?
A sociedade civil organizada do Chile começa a se levantar como uma voz a favor de uma saída para o mar da Bolívia, ao considerar que é um direito dos cidadãos desse país a recuperação de parte de seu território.
Por Marianela Jarroud, em Outras Palavras
Tradução: Daniela Frabasile
Publicado 11/08/2012 01:00
Essa sociedade “tem, em geral, um pensamento favorável à demanda marítima do Estado boliviano, no entendimento de que os povos devem ser solidários entre si e que isso constitui um obstáculo para o desenvolvimento desse país”, afirma a coordenadora de comunicação do Observatorio Ciudadano, Paulina Acevedo.
A Bolívia, um dos países latino-americanos atualmente sem litoral (como o Paraguai), perdeu seu acesso aos oceanos na Guerra do Pacífico, de 1879 a 1884, contra o Chile, que também envolveu o Peru. La Paz e Santiago firmaram um Tratado de Paz, Amizade e Comércio em 1904, que definiu as fronteiras atuais e fez da Bolívia um país sem litoral.
Os cidadãos bolivianos consideram que o acordo limitou o desenvolvimento de seu país, colocou obstáculos ao comércio e representou uma ameaça à segurança nacional. A falta de saída para o mar da Bolívia, e a reivindicação por uma, marcaram as relações bilaterais, que desde 1978 se mantém limitadas a nível consular.
Entre 2006 e 2010, La Paz e Santiago aproximaram-se e trabalharam uma agenda de treze pontos, na qual, pela primeira vez, se abordou o tema marítmo. Nesse período, o Chile era governado pela socialista Michelle Bachelet (2006-2010); e a Bolívia pelo índio de esquerda Evo Morales, que começou seu primeiro mandato em 2006 e assumiu o segundo em 2011. Mas desde a chegada ao poder do direitista Sebastián Piñera, no Chile, o diálogo bilateral ficou congelado.
Em 23 de março deste ano, Morales tomou uma ação controversa, ao anunciar a decisão de levar aos tribunais internacionais a disputa pela saída para o mar com o Chile, diante da falta de propostas “concretas, úteis e factíveis” por parte de Santiago. Em junho último, deu novo passo adiante, ao se reunir em Haia com o presidente da Corte Internacional de Justiça, Peter Tomka, quando expôs a aspiração boliviana de resolver a disputa com ajuda do direito internacional. Também reuniu-se com representantes da Corte Penal Internacional.
Antes, durante a Assembleia Geral da Organização de Estados Americanos (OEA), realizada nos dias 4 e 5 desse mês, em Cochabamba (Bolívia), o chanceler anfitrião, David Choquehuanca, pediu ao governo de Piñera a abertura de renegociação do Tratado de 1904. O chanceler do Chile, Alfredo Moreno, afirmou que Santiado não irá ceder parte de seu território “assim como nenhum país o faria”, e que o Tratado de 1904 já havia estabelecido as fronteiras.
Porém, a postura atual do estado chileno “não representa a opinião de todos os cidadãos que o compõem”, diz Paulina Acevedo, cuja organização tem uma área de ação muito ampla e representa muitos setores sociais.
“Muitas organizações sociais de diferentes naturezas são favoráveis a encontrar uma solução de saída para o mar para a Bolívia, com ou sem soberania. Sabemos que a perda desta saída para o mar não foi decisão soberana, mas resultou de um conflito armado”, completou ela. Considera que o Estado chileno “insiste em não estabelecer uma relação duradoura com a sociedade civil organizada; por isso, não sabemos qual seria o resultado, em caso de um plebiscito sobre a reivindicação boliviana.
Esse tipo de consulta não é possível sem uma reforma constitucional, mas submeter o tema a um referendo não é uma proposta apenas das organizações sociais. Também houve pronunciamentos a favor por parte de figuras importantes de todo o campo político e mesmo militar. Em 2007, pour exemplo, fez-se um gesto simbólico, que expressou o ponto de vista dos movimentos sociais chilenos diante da reivindicação boliviana. O próprio Morales se surpreendeu, ao ser recebido por 20 mil pessoas que gritavam “mar para a Bolívia”, quando chegava à Cúpula dos Povos, paralela à Cúpula Iberoamericana que aconteceu em Santiago.
Em abril de 2011, uma pesquisa do jornal chileno El Mercurio, o mais influente do país e de tendência conservadora, avaliou que 64,2% das pessoas que aceitariam facilitar uma saída para o mar para a Bolívia, ainda que sem concessão de soberania. Em novembro do ano passado, uma pesquisa da empresa Adimark e da Universidade Católica revelou que 40% dos entrevistados são a favor de dar benefícios compensatórios ao país vizinho.
Juan Carlos Skewes, diretor do curso de antropologia da Universidade Alberta Hurtado, disse que no Chile existe uma civilidade “não majoritária, mas significativa”, que permite que alguns reconheçam os direitos que de outros povos. Por isso, teria surgido, da sociedade civil, “uma reflexão mais cívica, uma inspiração mais cosmopolita e mais abrangente com respeito à Bolívia ao que, entendo, são suas demandas legítimas”.
O estudioso lembrou que no norte do Chile existem uma importante convivência trinacional, com Bolívia e Peru. Baseia-se em uma raiz histórica e cultural que une o mundo andino e reconhece uma visão de mundo, práticas culturais, formas de vida e rituais que são patrimônio comum da região.
Skewes assegurou que o Chile lidou com o cenário internacional de uma forma muito individualista e separada de seu entorno regional, o que fez com que o país enfrente certas vulnerabilidades. “No conflito com a Bolívia, suspeita-se que o Chile já não tem e não terá a simpatia que historicamente teve de países como Brasil – muito menos, Peru ou Argentina”, afirma.
No julgamento do analista, desde a ditadura do falecido Augusto Pinochet (1973-1990), “o Chile não se reconhece como parte de uma região, como o fez no passado”. A economia neoliberal imposta então levou o país a “buscar vantagens comparativas com base em um conceito que acredito ser deslealdade política”. Para Skewes, o Chile “precisa de apoio regional”. “Ainda somos um enclave eurocêntrico e americanocêntrico, muito influenciados por um império”, criticou.
Esperando por uma solução à disputa entre os dois países, a Bolívia firmou acordos com Peru e Argentina, que lhe permitem acesso parcial tanto ao oceano Pacífico quanto ao Atlântico.