Pepe Escobar: “Bem-vindos à Primavera Curda”
A política externa turca, codificada pelo ministro de Relações Exteriores Ahmet Davutoglu foi conhecida pelo apelido “zero problemas com nossos vizinhos”. Quando a Turquia começou a clamar por mudança de regime na Síria, aquela política virou “um vasto problema com um de nossos vizinhos” (apesar de o próprio Davutoglu ter admitido publicamente que a mudança de regime falhara).
Por Pepe Escobar, no Asia Times Online
Publicado 30/07/2012 16:26
Agora, em mais uma reviravolta, a tal política já está virando “todo e qualquer problema, os mais variados, com dois de nossos vizinhos”. Entra em cena – inevitavelmente – o tabu mãe de todos os tabus de Ancara: a questão curda.
Ancara costumava caçar e bombardear rotineiramente os guerrilheiros curdos do PKK que passavam de Anatólia para o Curdistão iraquiano. Atualmente, talvez se esteja posicionando para fazer o mesmo no Curdistão sírio.
O primeiro ministro turco Recep Tayyip Erdogan foi à televisão turca, de faca nos dentes: “Não permitiremos que um grupo terrorista estabeleça acampamentos no norte da Síria e ameace a Turquia.”
Referia-se ao Partido Democrático Curdo Sírio [orig. Syrian Kurdish Democratic Party (PYD)] – afiliado ao PKK; depois de negociação silenciosa com o regime de Assad em Damasco, o Partido Democrático Curdo Sírio controla áreas-chaves no nordeste da Síria.
Assim sendo, Ancara pode garantir logística a dezenas de milhares de “rebeldes” da OTAN da Síria – entre os quais se incluem magotes de “insurgentes” árabes sunitas linha-duríssima, antigamente chamados “terroristas”; mas, se os curdos sírios – que integram a oposição síria – demonstrarem alguma independência, eles imediatamente voltam a ser considerados “terroristas”.
Tudo sobredeterminado pelo pesadelo de curtíssimo prazo que assola Ancara: a possibilidade de criar-se um Curdistão sírio semiautônomo muito intimamente ligado ao Curdistão iraquiano.
Siga o petróleo!
Relatório do Instituto Palme, sueco [1], mostra a que parece ser a melhor radiografia da hiper fragmentada oposição síria. Os “rebeldes” são controlados pelo Conselho Nacional Sírio [orig. Syrian National Council (SNC), de exilados que vivem fora da Síria e suas milícias de mil cabeças, feito a Hidra, as mais de 100 gangues que constituem o Exército Sírio Livre ‘Que de Livre Pouco Tem’ [orig. Not Exactly Free Syrian Army (FSA)].
Mas há também muitos outros partidos, inclusive socialistas, marxistas, nacionalistas seculares, islamistas, o Conselho Nacional Curdo [orig. Kurdish National Council (KNC)] – coalizão de 11 partidos muito próximo do governo curdo iraquiano; e o Partido Democrático Curdo Sírio.
O Conselho Nacional Curdo e o Partido Democrático Curdo Sírio podem discordar em praticamente tudo, mas concordam quanto ao essencial: a guerra civil na Síria não pode invadir o Curdistão sírio. Afinal de contas, os curdos não são nem pró-Assad nem pró-oposição; eles só se interessam pelo que tenha a ver diretamente com os curdos. O acordo foi selado sob o patrocínio de outros curdos – os primos curdos iraquianos. E o acordo explica por que os curdos estão de fato no controle – pleno controle – de um enclave curdo no nordeste da Síria.
No que tenha a ver com a paranoia turca, há uma longa e sinuosa estrada [*] que leva de uma área semiautônoma a um Curdistão independente onde se reúnam os curdos sírios e iraquianos – para nem mencionar, no longo prazo, também os curdos turcos. Caso é que metade de um possível futuro Curdistão independente seria de fato turco. O pesadelo em andamento em Ancara é que quanto mais os Curdistões iraquiano e sírio aproximam-se da Turquia, mais aumentam o barulho e a agitação entre os curdos turcos em Anatólia.
As prioridades divergem: o objetivo chave dos curdos iraquianos é tornarem-se independentes de Bagdá (há quantidades gigantes de petróleo em solo curdo iraquiano). Mas os curdos sírios não têm petróleo algum. Não ter petróleo implica, para o que conta, não ter função, papel a desempenhar nem importância regional alguma, no Oleogasodutostão.
Tudo isso tem a ver, principalmente, com dois oleogasodutos estratégicos, de Kirkuk a Ceyhan – negócio tratado diretamente entre Ancara e os curdos iraquianos e que, em tese, ignorou Bagdá.
Não, não foi bem assim. Como Bagdá deixou bem claro, esses oleogasodutos só poderão começar a operar depois de paga a fatia devida ao governo central, que paga 95% do orçamento do Curdistão iraquiano.
“Quero ver seus documentos de IT (Identidade Terrorista)”
O presidente do Curdistão iraquiano Massoud Barzani disse à al-Jazeera [2] que sim – estão treinando os curdos sírios que desertaram do Exército Sírio para defender o enclave de facto. Foi Barzani quem supervisionou o negócio chave selado em Irbil dia 11 de julho, que levou as forças de Assad a retirar-se do Curdistão sírio.
As cidades que a mídia está chamando de “cidades libertadas” [3] são agora “conjuntamente governadas” pelo Partido Democrático Curdo Sírio e o Conselho Nacional Curdo. Formaram o que é conhecido agora como um Corpo Supremo Curdo.
Ninguém conseguirá jamais subestimar a capacidade dos curdos para atirar no próprio pé (e para outros lados). Portanto, é fácil entender que esse frenesi transnacional curdo aterroriza completamente não poucas almas em Istambul e Ancara. Esse comentarista [4] do diário turco Hurriyet disse bem: “os árabes estão combatendo; os curdos estão vencendo.” A Primavera Curda está ao alcance da mão. E já chega às fronteiras da Turquia.
Davutoglu poderia ter previsto: quando uma ex-política externa de “problemas zero” passa a dar abrigo a uma oposição armada que combate governo vizinho, só poderia dar confusão.
Sobretudo quando você começa a sentir ganas de matar “terroristas” que vivem em território vizinho – mesmo que seus aliados ocidentais os vejam como “combatentes da liberdade”. E, ao mesmo tempo, você apoia ativamente jihadis salafistas – ex-terroristas, atuais insurgentes – que cruzam livremente, para lá e para cá, por suas fronteiras.
Um Erdogan cada dia menos consistente e mais errático, invocou um “direito natural” [5] de combater “terroristas”. Mas, antes, o terrorista tem de mostrar o IT (documento de Identidade Terrorista): se for terrorista sunita árabe, passa livremente; se for curdo, leva chumbo.
Notas de rodapé
[1] Uppsala, Sweden, May 2012, Olof Palm International Center: “Divided They Stand –An Overview of Syria’s Political Opposition Factions”
[2] 23/7/2012, Al-Jazeera, Jane Arraf, em: “Iraqi Kurds train their Syrian brethren”
[3] 26/7/2012, Kurd Net, “Iraq's Kurdistan Peshmerga forces will be called into Syria when needed, PYD Leader says”.
[4]. 27/7/2012, Hurriyet Daily News, Ertugrul Özkök em:“The Arab Spring has transformed into the Kurdish Spring”.
[5]. 27/7/2012, Hurriyet Daily News, Dogan News Agency em: “PM declares Syria intervention a ‘natural right’”.
Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu