Pepe Escobar: “Sangue sírio risca nova linha na areia”
Era uma vez, no começo do século passado, riscou-se uma linha na areia, de Acra a Kirkuk. Duas potências coloniais – Reino Unido e França – desdenhosamente dividiram entre elas o Oriente Médio; tudo, ao norte da linha, era da França; tudo, ao sul, do Reino Unido.
Por Pepe Escobar, no Asia Times Online
Publicado 24/07/2012 19:47
Muitos golpes – e tragédias concêntricas – depois, uma nova linha está sendo riscada na areia, por Arábia Saudita e Catar. Tudo, entre Síria e Iraque, é deles. Pode-se falar do retorno do reprimido; agora, integrados ao composto Conselho de Cooperação do Golfo-Organização do Tratado do Atlântico Norte (CCGOTAN), amancebaram-se com os ex-patrões colonialistas.
Golpe a golpe
Não importa o que diga a imprensa-empresa ocidental militarizada, o jogo não está acabado na Síria – ainda não. Ao contrário: o jogo sectário está só começando.
É o Afeganistão dos anos 1980, tudo outra vez. As mais de 100 gangues pesadamente armadas que se matam em guerra civil na Síria só fazem aumentar, cevadas com dinheiro do CCG que lhes compram RPGs no mercado negro. Magotes de jihads salafistas estão entrando na Síria – vindos não só do Iraque, mas também do Kuwait, Argélia, Tunísia e Paquistão, respondendo às conclamações iradas de seus imãs. Sequestro, estupro e morticínio generalizado de civis favoráveis ao regime de Assad estão convertidos em lei da terra.
Para vingar-se, caçam cristãos. [1] Expulsam exilados iraquianos que viviam em Damasco, sobretudo os de Sayyida Zainab, bairro predominantemente xiita, cujo nome é homenagem à neta do Profeta Maomé enterrada na bela mesquita local. A BBC, diga-se a favor dela, afinal decidiu cobrir a história. [2]
Há execuções sumárias: o vice-ministro do Interior do Iraque Adnan al-Assadi disse à AFP que guardas de fronteira iraquianos viram o Exército Sírio Livre [orig. Free Syrian Army (FSA)] ocupar um posto de fronteira e imediatamente “executar 22 soldados sírios ante os olhos de soldados iraquianos”.
O posto de passagem de fronteira em Bab al-Hawa, entre Síria e Turquia, foi invadido por nada menos que 150 autodenominados mujaedim [3] de várias nacionalidades – vindos de Argélia, Egito, Arábia Saudita, Tunísia, Emirados Árabes Unidos, Tchetchênia e até da França, que proclamam a própria afiliação à Al-Qaeda no Maghreb Islâmico [orig. Al-Qaeda in the Islamic Maghreb (AQIM)].
Queimaram vários caminhões turcos. Filmaram o próprio vídeo de propaganda.
Não há como entender a dinâmica síria sem saber que praticamente nenhum dos comandantes do Exército Sírio Livre é sírio: quase todos são sunitas iraquianos. O ESL só conseguiu capturar a passagem de fronteira em Abu Kamal entre Síria e Iraque, porque toda a área é controlada por tribos sunitas que fazem oposição visceral ao governo de Al-Maliki em Bagdá. O livre fluxo de mujaedins, de jihads linha duríssima e de armas, entre o Iraque e a Síria, está agora plenamente, completamente, totalmente estabelecido.
A ideia da Liga Árabe – que age como porta-voz em traje completo do CCGOTAN – de oferecer exílio a Bashar al-Assad é tão ridícula quanto a CIA ser encarregada de decidir quais os grupos de mujaedins e jihadi que podem ter acesso às armas financiadas pelos sauditas e pelo Catar.
À primeira vista, talvez não tenha passado de piada sem graça. Afinal, a oferta de exílio foi feita por aqueles exemplares paradigmáticos de democracia, a Casa de Saud e o Catar, que mandam na Liga Árabe e estão financiando a jihad e os mujaedim anti-Síria.
Mas Bagdá condenou publicamente a oferta de exílio. Os desenvolvimentos – de fato, aconteceu no mesmo dia – foram dignos do Coringa (aquele, o arqui-inimigo do Batman): uma onda de bombas antixiitas no Iraque, com mais de 100 mortos, cuja autoria foi reivindicada pelo Estado Islâmico do Iraque, franquia local da Al-Qaida. O porta-voz Abu Bakr al-Baghdadi ordenou energicamente que as tribos sunitas em Anbar e Nineveh unam-se à jihad e derrubem o governo “infiel”, em Bagdá.
O infindável vai-e-vem de mujaedim/jihadi entre Síria e Iraque está mais do que confirmado por Izzat al-Shahbandar, alto membro do Parlamento do Iraque e assessor próximo do Primeiro-Ministro al-Maliki. Bagdá tem até listas atualizadas. Esse trânsito só faz deflagrar discursos cada vez mais frenéticos, em fala cada vez mais orwelliana, como aponta a página de internet Moon of Alabama [Lua sobre o Alabama]. [4]
Mujaedins e jihadis ativos no Iraque chamam-se agora “insurgentes iraquianos”. E mujaedim e jihadis ativos na Síria continuam a ser os “rebeldes sírios” de sempre. Todos foram rebaixados: perderam o título de “terroristas”. Seguindo essa lógica, o atirador Batman-do-Colorado pode também ser apresentado como um “insurgente”.
Sigam o dinheiro
No pé em que estão as coisas, os romanticizados “rebeldes” sírios plus os neo “insurgentes” (ex-“terroristas”) não podem vencer o exército sírio – nem se os sauditas e qataris fizerem chover sobre eles cataratas de dinheiro e armas.
Nem há qualquer sinal de que o regime esteja considerando a possibilidade de retirada rumo às montanhas alawitas no norte da Síria, como sugerido num blog de discussão sobre política externa. Afinal de contas, os “rebeldes” não controlam nem um palmo de território.
De garantido, só quem lucrará mais com a progressiva balcanização da Síria. A Casa de Saud e o Catar adorariam ver a guerra civil exportada para o Iraque e o Líbano: nos seus rasos cálculos estratégicos, daí nasceriam regimes sunitas amigos (deles).
Por isso, contem com muito dinheiro saudita e qatari comprando todo e qualquer apparatchik bem relacionado que encontrem no regime sírio – mesmo no caso de a burguesia sunita urbana ainda não ter abandonado o barco.
E, com a guerra civil alastrando-se, um tsunami de armas continuará a inundar a Jordânia, o Líbano, o Iraque e, claro, a Turquia, e chegarão às mãos de todas as griffes, uniformes e fantasias de gangues armadas, inclusive aos curdos – e a mais de uma faceta da já descartada Turquia neo-otomana que assiste, impotente, ao esmagamento dos estados-nação que foram riscados na areia, naquela linha colonial dos anos 1920s.
Estrategicamente, sempre será guerra por procuração: na essência, é Arábia Saudita versus Irã. A Casa de Saud (que financia islamistas fanáticos de linha duríssima de todas as cores) versus o Catar (que apoia a Fraternidade Muçulmana “deles”). Mas, sobretudo, é CCG-OTAN-EUA versus Irã.
Os motivos de Israel vão bem além da sanha sectária de sauditas e qataris. O primeiro-ministro de Israel “Bibi” Netanyahu acaba de desenterrar um Bushismo: definiu Irã-Síria-Hezbollah como um “eixo do mal”. O sonho de longo prazo de Telavive é claro: que Washington, com governo Obama ou sem, detone o tal “eixo”.
Ter claro um objetivo de longo prazo não impediu o absoluto enlouquecimento do ministro da Defesa de Israel: pôs-se a especular sobre uma invasão à Síria que se explica(ria) porque a Síria estar(ia) repassando mísseis antiaéreos e até armas químicas ao Hezbollah.
Washington, por sua vez, adoraria por no governo em Damasco um regime-fantoche sunita, no mínimo; para turbinar o cerco ao Irã – sem aumentar demais o pânico existencial de Israel.
Mas o que se faz passar por “poder esperto” [orig. “smart power”] nada é, além de delírio-desejante & autoglorificação. Na nota [5], abaixo, os que se interessem encontrarão informação sobre o que há na cabeça de alguns funcionários do governo dos EUA que trabalham a favor de Israel e planejam hoje o que eles mesmos chamam de “Síria pós-Assad”.
Entra em cena um neo-Bane*
Apesar do muito dinheiro já gasto na produção, a jihad da OTAN – associada à Al-Qaida, afiliados e periguetes adjuntas – ainda não conseguiu mudar regime algum na Síria. Não haverá sanções do Conselho de Segurança da ONU, como Pequim e Moscou já disseram (e mostraram) três vezes. Por isso, vai e vem, sempre aparece algum Plano B. O mais recente parece copiado do Manual usado no Iraque: Damasco usou armas químicas em ataque contra civis. Não sobreviveu sequer até o “noticiário” de TV do dia seguinte.
O presidente Vladimir Putin da Rússia já disse: mudança de regime é anátema, especialmente por uma razão que praticamente ninguém percebe no ocidente – jihadis nas portas de Damasco implica que estariam a uma pedrada do Cáucaso, a possível nova pérola do letal colar planejado para desestabilizar a Rússia muçulmana.
A volta do chicote, enquanto isso, está pronta a ferir novamente, como a Medusa. Os, para todos os efeitos práticos, esquadrões da morte, de mujaedim/jihadi do CCGOTAN, adorariam deixar sangrar a Síria até a morte, por cem cortes sectários – sobre a areia e especialmente nas cidades. Está aberta a temporada de caça: caçam-se alawitas, mas também cristãos (10% da população).
Uma política externa que privilegie os jihadis sunitas (antes chamados de “terroristas”), na criação de um estado “democrático” no Oriente Médio é ideia que parece brotada da cabeça de Bane – bandidão que é a soma de Hannibal Lecter com Darth Vader, e estrela de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), último capítulo da trilogia de Batman. Ah, sim, nós o criamos. Aos melhores falta qualquer convicção. Os piores estão tomados de paixão intensa. Enquanto isso, um super-homem sunita jihadi mascarado rasteja rumo a Damasco, onde nascerá.
Notas de rodapé:
[1] 9/6/2012, Vatican Inside, em: Syria’s ultimatum to Christians: “Leave Qusayr”
[2] 20/6/2012, BBC, Rami Ruhayem em: Syria crisis: Iraqis flee “sectarian violence” in Damascus
[3] 22/7/2012, Al-Arabiya, “Syrian rebel forces occupy second border post with Turkey”
[4] 23/7/2012, Moon of Alabama, em: Policy Change: “Terrorists” Are Now “Insurgents” [Mudança de política: Os “terroristas” viraram “insurgentes”]. É a mais impressionante retradução orwelliana que jamais se viu. Durante anos, as expressões “Al-Qaeda” e “grupo terrorista” foram usadas praticamente como sinônimas.Mas agora, sob comando do governo Obama, o New York Times reescreveu o Manual da Redação: “Al-Qaeda” designa agora uma espécie de “insurgência neutra”.
[5] 20/7/2012, The Cable, Josh Rogin em: “Inside the quiet effort to plan for a post-Assad Syria”: “Planejando a Síria pós-Assad”. Ao longo dos últimos seis meses, 40 altos representantes de vários grupos de oposição da Síria têm-se reunido discretamente na Alemanha, sob coordenação do US Institute of Peace (USIP), para planejar o que deve ser um governo sírio pós-Assad. O projeto, do qual não participam funcionários do governo dos EUA, mas que é parcialmente pago pelo Departamento de Estado começa a ganhar importância, agora que a espiral de violência alastra-se pela Síria e evanescem as últimas esperanças de que se possa alcançar transição pacífica de poder na mudança de regime. (…) O grupo assessorou os funcionários do governo também nas reuniões dos “Amigos da Síria”, em Istambul, mês passado. O projeto é chamado “O dia seguinte: apoio à transição democrática na Síria”.
*Bane é um dos super arqui inimigos de “Batman”, que teve vida curta, num seriado de 1994, e sumiu para sempre. Mas causou terrível dano ao Batman.
Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu