Samir Amin: As vitórias eleitorais do Islã político no Egito
A vitória eleitoral da Fraternidade Muçulmana e dos salafistas no Egito (janeiro 2012) não é surpresa. A degradação produzida pela globalização capitalista contemporânea levou ao crescimento prodigioso de atividades ditas “informais”, as quais, no Egito, são já meio de vida para mais da metade da população (as estatísticas já falam em 60%).
Por Samir Amin*
Publicado 15/07/2012 09:45
Ora, a Fraternidade Muçulmana está muito bem posicionada para se beneficiar dessa degradação e contribuir para que continue a reproduzir-se. A ideologia dos “Irmãos” legitima essa miserável economia de mercado/bazar, que anda na direção oposta à do que se exigiria para algum desenvolvimento digno do nome. Os fabulosos meios financeiros postos à disposição dos “Irmãos” (pelo Golfo) permitem traduzir aquela ideologia em meios eficazes: ajuda financeira para a economia informal, caridade (centros de cuidados médicos e assistência aos pobres e outros).
Assim, os “Irmãos” se implantam na sociedade real e a vão substituindo, impondo sempre a dependência: o cidadão passa a depender da caridade dos Irmãos. Os países do Golfo jamais tiveram qualquer intenção de apoiar o desenvolvimento dos países árabes, por exemplo com investimentos em indústrias locais. Mas apoiam a manutenção e a reprodução de um modelo de “lumpen-desenvolvimento” – para usar os termos já propostos por André Gunder Frank – que leva a uma espiral descendente as sociedades afetadas; espiral de pauperização e exclusão cada vez maiores, as quais, por sua vez, amplificam e reforçam, em toda a sociedade, a influência crescente do Islã político e reacionário.
Mas esse sucesso teria sido difícil, se não respondesse perfeitamente aos objetivos dos países do Golfo, de Washington e de Israel. Esses três aliados íntimos têm hoje uma única e principal preocupação: fazer fracassar o levante dos egípcios. Porque um Egito forte e de pé marcará o fim de uma hegemonia tripla: hegemonia do Golfo (submissão ao discurso pró-islamização da sociedade); hegemonia dos EUA (o Egito miserabilizado e dependente não escapará ao controle dos norte-americanos); e hegemonia de Israel (o Egito impotente não defenderá os palestinos).
A uniformização dos governos, submetidos ao neoliberalismo e a Washington foi brutal e total no Egito, com Sadat, mais lenta e contida na Argélia e na Síria. Em meu livro mais recente(**), lembro que a Fraternidade Muçulmana – que está em rota para assumir o controle do sistema de poder – não pode ser considerada simplesmente como “partido islamista”, mas, sobretudo, como partido ultrarreacionário e, além disso, de fundamento religioso islamista. É partido reacionário não só no modo como pensa o que chamamos “questões sociais” (o véu, a Xaria, a discriminação contra os coptas), mas, também, nos domínios fundamentais da vida econômica e social: os “Irmãos” são contra greves, contra reivindicações relacionadas a melhores condições de trabalho, contra sindicatos independentes do poder do Estado, contra a redistribuição da terra, contra os movimentos de resistência à expropriação da terra etc.
O abortamento planejado da “revolução egípcia” garantiria a perpetuação do sistema implantado no Egito desde Sadat, fundado na aliança entre o comando do exército e o comando do Islã político. Claro que, assegurados no poder pela vitória eleitoral, os “Irmãos” estão em posição de exigir mais poder que o mínimo que os militares parecem dispostos a ceder. Mas não parece empreitada fácil arrancar, dessa aliança original, mais vantagens a favor dos “Irmãos”.
O primeiro turno das eleições presidenciais de 24 de maio foi organizado para atender o objetivo que interessa ao sistema de poder vigente e a Washington: reforçar a aliança nos pilares do sistema, entre o comando do Exército e a Fraternidade Muçulmana; e regulamentar as diferenças que persistam entre ambos (definindo qual, dos dois grupos, ocupará a frente do palco). Os dois candidatos “aceitáveis”, nesse espírito, foram os únicos que tiveram recursos para as respectivas campanhas eleitorais. Morsi (Fraternidade Muçulmana: 24%) e Chafiq (Exército: 23%). O autêntico candidato do movimento – Hamdeen Sabbahi – que não recebeu qualquer ajuda extra para a campanha eleitoral, teria obtido 21% dos votos (número, ele próprio, pouco confiável).
Ao final de longas negociações, ficou acertado que Morsi seria declarado “vencedor” do segundo turno. A Assembleia, assim como o presidente foram eleitos graças à massiva distribuição de “cestas básicas” (carne, azeite e açúcar) distribuídas aos eleitores que se comprometessem a votar nos islamistas. Estranhamente, os “observadores estrangeiros” nada viram, apesar de essas ‘negociações’ serem feitas à vista de todos, por toda parte, e serem plenamente conhecidas na rua egípcia. A dissolução do Parlamento foi retardada pelo Exército, que conta com que os “Irmãos” logo perderão prestígio, ao se recusarem a abordar as questões sociais (emprego, salários, escola e saúde públicas).
O sistema como está organizado, “presidido” por Morsi, é a melhor garantia de que se manterá o crescimento em ritmo de lunpen-desenvolvimento e com a destruição das instituições do Estado – os dois objetivos que mais interessam a Washington. Logo se verá que o movimento, que nada perdeu de seu firme compromisso com as lutas por melhor democracia, progresso social e independência nacional, voltará às ruas, depois de mais essa farsa eleitoral.
(*)Economista marxista egípcio, radicado na França.
(**)Le monde arabe dans la longue durée, le printemps arabe ? Paris: Le temps des cerises, 2011