Martins: o golpe no Paraguai e a geopolítica latino-americana
O golpe contra o governo Lugo, não obstante a história política paraguaia de fragilidade democrática, ultrapassa as fronteiras do país e coloca em confronto forças distintas no tabuleiro geopolítico regional.
Por Carlos Eduardo Martins*, especial para o Portal Vermelho
Publicado 11/07/2012 16:33
Se de um lado, Unasul e Mercosul aplicaram com moderação a sua cláusula democrática, evitando sanções econômicas, de outro, Alemanha, Canadá, Espanha e Vaticano reconheceram de imediato a legalidade do impeachment. Os Estados Unidos adotaram posição mais suave: não o consideraram ruptura da ordem democrática, abrindo-se à eventual revisão, a partir de informe de missão da OEA — integrada pelo próprio Estados Unidos, por países de governos a ele alinhados (Canadá, Honduras, México) e por outro ocupado (Haiti) — que terminou por respaldá-lo.
Ignoraram assim tanto as evidências públicas da precariedade legal da destituição, por apoiar-se em rito processual relâmpago e em peça de acusação que reivindicou dispensa do ônus da prova, quanto de sua ilegitimidade, por colidir com o apoio popular ao presidente deposto, o que se confirmou nos protestos nas ruas e no efetivo empregado de 10 mil agentes de segurança, e em pesquisas publicadas pelo jornal conservador ABC Color onde 63% dos paraguaios rejeitam a deposição de Lugo. Da mesma forma, forças políticas conservadoras de Brasil (PSDB), Argentina (PRO) e Uruguai (Partido Blanco) se colocaram contra o apoio às sanções políticas por seus governos no Mercosul e Unasul e a entrada da Venezuela naquele, iniciativa que terminou por prosperar com a consequente suspensão dos direitos políticos do Parlamento paraguaio, que lhe faz obstrução, no bloco. Seus argumentos basearam-se na suposta “violação da soberania paraguaia” e na velha cantilena do “expansionismo chavista”.
O golpe se realizou no elo mais fraco da cadeia de governos populares na região e se insere na estratégia de contra-insurgência que une as oligarquias locais e o imperialismo estadunidense. Busca-se manter o processo democrático nos limites confiáveis para o grande capital estrangeiro e nacional por meio da dissuasão ou, interrompê-lo, se necessário. Desde 1999, com a crise do neoliberalismo na América Latina e a ascensão de movimentos sociais ou governos à esquerda, os Estados Unidos retomaram sua ofensiva para penetrar no espaço territorial latino-americano e exercer influência sobre os aparatos de Estado locais, em particular na sua fração repressiva.
O Plano Colômbia seguiu-se imediatamente à eleição de Hugo Chávez e à entrega da administração do Canal do Panamá pelos norte-americanos, prevista no Tratado Torrijos-Carter. A Iniciativa Mérida, no México, em 2006, igualmente a pretexto de combate ao narcotráfico, seguiu-se à estranha derrota eleitoral de Lopez Obrador por 0,3% de diferença e a insurreição de Oaxaca no mesmo ano. Duplicou-se o índice de homicídios, eliminaram-se 60 mil pessoas, 97% delas sem imputação judicial e estendeu-se ao norte da América Latina o posicionamento estratégico estabelecido no centro da região, na Colômbia. Da mesma forma, a rearticulação da 4ª Frota em 2008 e a retomada de acordo de cooperação militar Brasil-Estados Unidos em 2010 — extinto no Governo Geisel —, na gestão de Nelson Jobim no Ministério da Defesa, sinalizam preocupação com o governo brasileiro e a expansão ao sul.
Apesar dessas tentativas, o país ideal para situar o eixo continental da contra-insurgência no sul é o Paraguai, em razão da debilidade de seu Estado, que, controlado por oligarquias, tem reduzida autonomia frente à potência estrangeira; da precariedade da organização dos movimentos sociais, legado da história política repressiva; ou de sua localização particular, no aquífero Guarani, estratégica para o fornecimento de energia ao Brasil e à Argentina — ou a outros países do Cone Sul, no futuro—, e próxima às reservas de gás bolivianas.
O golpe se articula a este projeto que se tentou avançar mediante diversas pressões ainda no governo Lugo. Cumpre o papel de entregar o Estado às forças políticas mais tradicionais da corrompida política paraguaia para impedir eleições livres e democráticas onde a Frente Guazú possa ter representação política no Parlamento similar à popularidade do Presidente deposto que apoia, lançando decisivamente o país no campo nacional, democrático e popular.
Carlos Eduardo Martins* é chefe do Departamento de Ciencia Política (UFRJ), doutor em Sociologia (USP) e autor de Globalização, dependencia e neoliberalismo na América Latina (Boitempo, 2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007).