Wexell Severo: Desdobramentos da entrada da Venezuela no Mercosul
De forma geral, por volta de 2003 houve uma inflexão na orientação política dos governos da América do Sul. As principais medidas estiveram associadas com a busca da desconstrução das assimetrias regionais, com a inserção internacional mais soberana e com a ampliação da participação de componentes sociais.
Por Luciano Wexell Severo, especial para o Vermelho
Publicado 06/07/2012 16:37
Naquele mesmo ano o governo brasileiro anunciou o Programa de Substituição Competitiva de Importações (PSCI) e meses depois foi criado o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). O esforço integrador ganhou um patamar mais elevado e contou com o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães na função de Alto Representante-Geral do Mercosul.
Foram intensificados os Acordos de Complementação Econômica entre os países membros do Mercosul e os da Comunidade Andina de Nações (CAN), promovendo o surgimento da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que foi criada na 3ª Cúpula de Presidentes Sul- Americanos, em Cuzco, 2004. Posteriormente, durante a 1ª Cúpula Energética Sul-Americana, na Ilha Margarita, Venezuela, em 2007, a instituição foi renomeada de União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Esta nasceu com o objetivo de ser um organismo amplo, capaz de promover a integração não apenas do comércio, mas também de infraestrutura, finanças, comunicação, transportes, matriz energética, sistema educacional, saúde, estratégias científicas e tecnológicas, tendo como membros a totalidade dos países do subcontinente.
Entre as principais conquistas da Unasul podemos citar a criação dos Conselhos de Defesa Sul-Americano, Energético da América do Sul, e de Infraestrutura e Planejamento, além do projeto de Nova Arquitetura Financeira Regional (NAFR), que resultou na aproximação entre os Bancos Centrais, na constituição do Banco do Sul e em esforços para conformar um mercado regional de títulos públicos. Além disso, em 2010, na Reunião de Chefes de Estados da Unasul, em Buenos Aires, os presidentes sul-americanos anunciaram a criação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). O nascimento da instituição ocorreu em 2011, em Caracas, coincidindo com a comemoração do bicentenário da declaração de independência venezuelana.
Nota-se, portanto, que apesar da América do Sul ter permanecido durante muitos anos sem um projeto próprio, na última década, como resultado da ascensão de governos progressistas, desenvolvimentistas, populares ou integracionistas, a situação tornou-se favorável à construção de uma dinâmica integradora, sustentada na cooperação, na solidariedade, na complementaridade, no desenvolvimento econômico e na desconstrução das assimetrias. Mesmo com os importantes avanços da Unasul e as novas iniciativas que ela potencializa, continua sendo fundamental afirmar o papel do Mercosul como projeto de união regional e, principalmente, como estratégia para o desenvolvimento dos países sul-americanos. Contudo, mais do que os interesses do comércio, deve representar uma proposta comum de desenvolvimento. Neste ponto, atualmente um dos temas mais relevantes é a entrada da Venezuela no Mercosul.
Com o ingresso do país caribenho, o PIB do Mercosul passará a somar cerca de US$ 3,2 trilhões, alcançando 75% do total da América do Sul. Por sua vez, a população dos países membros aumentará para 272 milhões, para 70% do total da região. O bloco se estabelecerá como um dos mais importantes produtores mundiais de energia, alimentos e produtos manufaturados. A Venezuela possui outras vantagens comparativas, relacionadas com as suas imensas reservas de minerais, água potável e biodiversidade, que lhe projetam um crescente papel no cenário mundial. Além disso, o país tem uma localização geográfica especial, relativamente muito mais inserida nos fluxos internacionais do comércio do Hemisfério Norte.
Como fruto da crise internacional e da queda dos preços do petróleo, a economia venezuelana terminou 2010 com o quarto maior PIB da América do Sul, atrás de Brasil, Argentina e Colômbia. Em 2009, havia acumulado o segundo maior PIB, somente abaixo do Brasil. A população venezuelana, física e culturalmente é muito parecida com a brasileira, se aproxima dos 29 milhões, distribuídos ao longo de um território de 916 mil km (1). O país conta com as riquezas em torno da Cordilheira dos Andes, da bacia do Orinoco e da Floresta Amazônica, na fronteira com a região Norte do Brasil.
Segundo relatório anual da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), divulgado em julho de 2011, a Venezuela chegou ao fim de 2010 com uma reserva comprovada de mais de 250 bilhões de barris, superando a Arábia Saudita. As reservas venezuelanas triplicaram nos últimos cinco anos e alcançaram quase 20% do total mundial. O resultado está relacionado com as recentes descobertas e certificações da Faixa Petrolífera do Orinoco. Desde 2010, empresas multinacionais também vêm descobrindo imensos campos de gás na Faixa Gasífera do Caribe venezuelano. O Informe Estatístico de Energia Mundial 2011, da British Petroleum, aponta que o país detém a oitava maior reserva de gás do planeta. As recentes descobertas fortalecem a iniciativa de constituir uma Organização dos Países Exportadores de Gás (Opeg) e impulsionam as articulações para a construção do Gasoduto do Sul, que conectaria o subcontinente desde a Venezuela até a Argentina.
No norte venezuelano, as maiores concentrações minerais são de níquel, carvão, zinco, prata, cobre, cromo, chumbo e areias siliciosas. Ao sul, as jazidas se localizam na estratégica região Guayana, área industrial onde estão as empresas básicas da holding Corporación Venezolana de Guayana (CVG). Esta região é banhada pelos rios Orinoco e Caroní, distante cerca de 600 quilômetros da fronteira com o Brasil. Em torno do eixo que liga as cidades de Puerto Ordáz e Santa Elena de Uairén estão concentradas principalmente as reservas de bauxita, mineral de ferro, diamantes, ouro, barita, caulim e manganês. De acordo com o Ministério de Indústrias Básicas e Mineração da Venezuela (MIBAM), também existem registros, ainda que com pouca certificação e indefinida quantificação, de minerais como grafite, titânio, cobalto, platina, tungstênio, mercúrio, dolomita, magnesita, estanho, fluorita, mica, vanádio, bentonita, cianita, bismuto, nióbio e asbesto, entre outros. Há ampla margem para a atuação de empresas sul-americanas no país, na exploração e no processamento desses insumos.
Integração, “Siembra del petróleo” e economia produtiva
A atividade petroleira na Venezuela teve início durante a segunda década do século passado, no Lago de Maracaibo, no estado de Zulia. Desde então, o petróleo se transformou no principal elemento dinamizador da economia do país e no motor das transformações políticas e sociais. De acordo com o economista e poeta venezuelano Orlando Araujo (2006, p. 24),
Na pauta de exportação da Venezuela, o petróleo cresceu de 0,9% em 1908 para 76,6% em 1928. As exportações de café encolheram de 72,3% para 13,7%, enquanto as de cacau caíram de 10,1% para 4,4%. Em 1948, as vendas de petróleo e seus derivados já estavam no patamar atual, impressionantes 95,9% de toda a exportação venezuelana. O crescente acesso a petrodólares e a permanente facilidade para importar desestimularam o desenvolvimento de outras atividades produtivas internas, como a mineração de ouro e ferro e a agricultura. As vendas de café e cacau seguiram caindo até chegar a 2,0% e 1,4% do total, respectivamente. Entre 1928 e 1970, durante mais de quatro décadas, o país ocupou a posição de maior exportador de petróleo do mundo.
Além de representar um divisor de águas na história venezuelana, a dinâmica do petróleo estabeleceu como uma das principais características da economia do país a sobrevalorização da moeda nacional, o Bolívar. Como afirmamos, ao longo de décadas este processo induziu as importações e restringiu as exportações, desestimulando as atividades produtivas internas. Este quadro explica a relativa fragilidade da indústria e da agricultura da Venezuela. Analisando a política econômica venezuelana, nota-se que o grande desafio histórico, repetidamente fracassado, tem sido aplicar de forma eficiente os recursos petrolíferos em um processo de diversificação produtiva. A essa política se deu o nome de “Semear o petróleo” . (2)
Atualmente, mais de 95% das exportações venezuelanas estão concentradas no código 27 da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), que inclui combustíveis minerais, óleos minerais e produtos da sua destilação, matérias betuminosas e ceras minerais. Quase 80% das vendas têm como destino poucos países, como Estados Unidos, China, Índia, Singapura, Equador, Espanha, Holanda e algumas ilhas do Caribe. O Brasil, por sua vez, representa menos de 1% das exportações venezuelanas de petróleo.
Para um país petroleiro que pretende avançar pelos caminhos do desenvolvimento econômico, o controle da taxa de câmbio tem sido crucial. Após a fuga de capitais resultantes do golpe de Estado de 2002 e da sabotagem dos gerentes da PDVSA no final do mesmo ano, a partir de 2003 a Venezuela adotou o câmbio fixo, estabelecendo a taxa em Bs. 1600 por dólar. Um ano depois, passou para Bs. 1920 e em 2005 subiu para Bs. 2150. Em 2007, com a eliminação de três zeros do Bolívar, a taxa oficial ficou em Bs. 2,15. Através da Comissão de Administração de Divisas (Cadivi), o governo aumentou o controle sobre os dólares, privilegiando as importações de “produtos prioritários”, como alimentos, medicamentos, bens de capital, tecnologia, remessas familiares, transações diplomáticas e gastos governamentais. Os produtos considerados não prioritários não contam com acesso garantido aos dólares da Cadivi, sendo importados muitas vezes através de outros mecanismos com taxas que chegavam a Bs. 8,5 por dólar. Ainda assim, os dados do MDIC demonstram que o comércio binacional aumentou 430% entre 2003 e 2010. Até hoje, mais de 60% das exportações brasileiras para a Venezuela são de “produtos prioritários”.
Durante a crise internacional de 2009, o país vizinho sentiu a forte queda dos preços do petróleo. Depois de dois anos sem mexer no câmbio, o governo anunciou a criação de duas taxas: uma a Bs. 2,60 para a importação de “produtos prioritários” e outra a Bs. 4,30 para as demais compras. Por um lado a medida teve o impacto de conter a inflação, por outro ampliou a quantidade de recursos à disposição do governo: cada petrodólar para uso do governo foi convertido a Bs. 4,30, potencializando o impacto positivo sobre os cofres públicos. Em 2010, optou-se por eliminar o câmbio duplo e foi determinada uma taxa única, a Bs. 4,30. O êxito das iniciativas dependerá cada vez mais da efetividade de medidas complementares, como a ampliação do crédito, o aumento dos salários reais, o estímulo à produção nacional e a eficiência da Cadivi.
No esforço de “semear o petróleo” na Venezuela, os principais mecanismos utilizados para transcender a economia rentista e promover a diversificação econômica foram, entre outros: 1) o resgate da PDVSA para o controle estatal, já que desde sua criação em 1976 a empresa funcionou como um estado dentro do Estado. Esta primeira ação possibilitou em grande medida a aplicação das demais; 2) o controle de câmbio, de capitais e de preços, que têm sido eficientes para frear a deterioração da moeda nacional e as fugas de capital, seja através da especulação internacional com o Bolívar, de remessas de lucros ao exterior ou de importações supérfluas; 3) a nacionalização via pagamento de indenizações de empresas estratégicas dos setores de comunicações, eletricidade, alimentação e construção, além de instituições financeiras; e 4) a reforma da Lei do Banco Central da Venezuela, que estabeleceu um teto anual para as reservas internacionais; os valores que superem o teto determinado devem ser transferidos para o Fundo de Desenvolvimento Nacional – Fonden, cujo objetivo é financiar setores como indústrias pesadas, indústrias de transformação, agricultura, petroquímica, gás, infra-estrutura, transportes e habitação, entre outros. Desde sua criação, em 2005, foram repassados somente pela PDVSA ao Fonden cerca de 21,8 bilhões de dólares (Chávez, 2009, p.23).
Os últimos anos têm representado grandes progressos no processo de integração binacional e o Brasil vem contribuindo com o esforço da Venezuela. Avançam acordos entre órgãos venezuelanos e brasileiros, como a Caixa Econômica Federal (CEF), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Associação Brasileira de Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), Instituto do Coração (Incor), entre outros. Em 2010, os presidentes Lula e Chávez anunciaram a intenção de criar linhas de cooperação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com instituições venezuelanas. O ministro Samuel Pinheiro Guimarães, então responsável pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), estrutura à qual o Ipea estava subordinado, teve importante participação neste acordo. O Instituto inaugurou o seu primeiro escritório de representação no exterior, com sede no Ministério de Energia e Petróleo da Venezuela (MENPET) e da PDVSA. Neste momento, há técnicos e especialistas brasileiros selecionados para contribuir com o planejamento territorial para o desenvolvimento das regiões da Faixa Petrolífera do Orinoco, certificada como maior reserva de petróleo do mundo, e da Área Gasífera do estado Sucre.
O IPEA tem potencializado as ações das instituições brasileiras que se encontram na Venezuela, promovendo reuniões e atividades com executivos, técnicos e autoridades venezuelanas. São os casos dos Ministérios de Transportes, Planejamento e Finanças, Indústrias Básicas e Mineração e Tecnologia e Indústrias Intermediárias. Além disso, do Banco Central da Venezuela (BCV), Fundo de Desenvolvimento Nacional (Fonden), Comissão de Administração de Divisas (Cadivi), Instituto Nacional de Geologia e Mineração (Ingeomin), Serviço Nacional Integrado de Administração Aduaneira e Tributária (Seniat) e Banco de Comércio Exterior (Bancoex), ademais de Universidades e outras instituições do Estado. Além do apoio nas regiões de petróleo da Faixa do Orinoco e de gás no estado Sucre, o Instituto tem participado ativamente das articulações para o fortalecimento do chamado Eixo Amazonas-Orinoco, entre o norte do Brasil e o sul da Venezuela. Apesar de a região norte apresentar um dos maiores índices de crescimento econômico e populacional do país, há uma débil integração com o restante do Brasil. Desta forma, os dois lados da fronteira se concentram os estados com menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) de ambos os países.
Sendo a Amazônia uma peça chave no processo de integração da América do Sul, faz-se necessário considerar as possibilidades de ampliar os trabalhos em torno do eixo o Amazonas-Orinoco. Além das maiores reservas de petróleo do mundo se encontrarem exatamente nesta região, também estão concentradas neste eixo as empresas básicas e as principais jazidas de bauxita, minério de ferro, ouro e diamantes da Venezuela. Nos últimos anos têm sido grandes os avanços na infraestrutura de energia (conexão da Represa de Guri com as linhas da Eletronorte) e comunicações (fibra ótica de Caracas até Boa Vista e Manaus). Por esta área passaria o mega-projeto de Gasoduto do Sul, obra fundamental para garantir a soberania energética sul-americana. Atualmente o Grupo Fronteiriço Binacional está trabalhando na articulação das cadeias produtivas (Pólo Industrial de Manaus e Zona Franca de Puerto Ordáz, na Venezuela), no aumento do intercâmbio comercial das duas regiões e no fortalecimento da infraestrutura desde Manaus e Boa Vista até Puerto Ordaz e Ciudad Bolívar, passando por Pacaraima e Santa Elena de Uairén. Ganha força a ideia de que a Venezuela entrará no Mercosul através do norte do Brasil.
Nos últimos anos os governos do Brasil e da Venezuela, assim como as administrações de Roraima e do Estado venezuelano de Bolívar, vêm promovendo iniciativas para dinamizar as relações comerciais, intensificar os fluxos de investimento e promover a integração produtiva do norte brasileiro com o sul venezuelano. Existem grandes possibilidades, especialmente nos setores de metal-mecânica, agroindústria, petroquímica, automotor e farmacêutico. Em novembro de 2010 e agosto de 2011, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e o IPEA, entre outros órgãos brasileiros e venezuelanos, realizaram em Manaus e Caracas, respectivamente, Seminários para debater a integração das regiões Norte do Brasil e Sul da Venezuela.
As relações entre o Brasil e a Venezuela alcançaram um momento especial e um nível bastante elevado, que abrem inúmeras perspectivas que serão ainda mais favoráveis com a entrada do país no Mercosul. Poucos países contam com tantas importantes agências brasileiras estabelecidas em suas capitais e principais cidades. Além dos avanços da ampla aliança do setor público, foi intensificada a agenda de projetos que envolvem empresas privadas brasileiras no país vizinho. Os principais casos são das empresas Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Braskem, Ambev, Gerdau, Alcicla, Petrobras e Eletrobras, entre outras. A seguir, serão apresentadas considerações sobre o estreitamento das relações binacionais e a consequente importância do ingresso da Venezuela ao bloco desde três áreas: comércio, indústria e infraestrutura.
Complementação comercial
De acordo com os dados estatísticos divulgados pelo MDIC, o comércio binacional tem crescido a elevadas taxas nos últimos anos. As exportações brasileiras para a Venezuela mantiveram-se em um patamar relativamente baixo desde os anos 1980 até 2003. Como resultados do elevado crescimento da economia venezuelana e da decisão política de tratar o Brasil como um parceiro comercial preferencial, as vendas brasileiras para o país vizinho aumentaram bastante. Em 2003, as exportações do Brasil chegaram a US$ 600 milhões. Já em 2008, este valor havia sido multiplicado por nove, superando os US$ 5,2 bilhões. Em 2009, mesmo com a diminuição das exportações como reflexo da crise internacional, as vendas brasileiras para a Venezuela alcançaram US$ 3,6 bilhões, sendo cinco vezes maior do que em 2003. Em 2010, foram de US$ 3,8 bilhões.
Em 2003, as exportações brasileiras para a Venezuela representavam somente 0,8% das vendas brasileiras para o mundo. Em agosto de 2010, esse percentual foi de 1,5%. Em 2009, o Brasil já era o segundo maior exportador de automóveis e autopeças para a Venezuela, o terceiro maior exportador de eletro-eletrônicos, de alimentos e de máquinas e equipamentos e o sexto de produtos farmacêuticos. Existe, contudo, uma grande assimetria nestas relações comerciais: há um expressivo superávit em favor do Brasil.
Por sua vez, as importações brasileiras com origem na Venezuela foram elevadas, em torno dos US$ 970 milhões, até o estouro da crise da dívida externa, em 1982. O patamar de compras foi retomado e inclusive brevemente superado no final dos anos 1990, quando chegou a US$ 1 bilhão. Nos anos 2000, as importações foram diminuindo até chegar ao mínimo de US$ 200 milhões em 2004. Até 2009 este montante evoluiu paulatinamente, sendo multiplicado por dois e alcançando os US$ 600 milhões. Em 2010 e 2011 as compras brasileiras apresentam seu nível mais elevado. Em 2010, o Brasil importou US$ 832 milhões e durante o primeiro semestre de 2011 já foram comprados mais de US$ 610 milhões, o maior resultado desde o ano 2000.
Observemos, ainda, a chamada “cobertura comercial”, entendida como o resultado da divisão das exportações pelas importações. A cobertura demonstra o grau de assimetria nas relações comerciais: quanto mais próxima de 1, mais simétricas; quanto mais distante de 1, menos simétricas. Este valor era de 8,7 em 2005, crescendo para 13,7 em 2007 e 9,6 em 2008. Ou seja, para cada dólar gasto pelo Brasil na importação de produtos venezuelanos, a Venezuela gastava cerca de 10 dólares na compra de produtos brasileiros. Em janeiro de 2009, a cobertura chegou a impressionantes 17,5.
Como existe a compreensão de que o avanço do processo de integração sul-americana depende da desconstrução das assimetrias entre os países e da consequente complementação das cadeias produtivas regionais, desde 2003, o Itamaraty tem contribuído de forma decisiva para enfrentar esse cenário desfavorável. Naquele ano o governo brasileiro adotou o Programa de Substituição Competitiva de Importações (PSCI) . Este plano tinha como objetivo impulsionar o comércio entre o Brasil e os demais países sul-americanos, substituindo, sempre que possível e a preços competitivos, as importações brasileiras de terceiros mercados por importações provenientes dos vizinhos do Sul. Entre as suas principais ações, podemos citar o lançamento de Guia “Como Exportar para o Brasil”; a criação de grupo de trabalho integrado por Anvisa, Inmetro, MDIC, Banco do Brasil, Sebrae e outras instituições; o financiamento de pesquisas de mercado para produtos exportáveis dos países sul-americanos para o Brasil; estudos para identificação da oferta exportável da América do Sul vis-à-vis a demanda brasileira; e rodas de negócios bilaterais.
Em 2008, o governo brasileiro, através do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) anunciou a criação da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), uma continuação da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), de 2004. A iniciativa buscava, entre outros pontos, promover a integração produtiva e estimular as compras brasileiras da América do Sul. Segundo o plano de ação da PDP, os grandes desafios seriam apoiar a integração de cadeias produtivas, estimular a exportação de países latino-americanos para o Brasil, apoiar o financiamento e a capitalização de empresas latino-americanas e promover a integração da infraestrutura logística e energética (3). Além disso, nos últimos anos, nasceram ou ganharam novo impulso estruturas orientadas à integração que tomam em conta as grandes assimetrias. Neste âmbito, surgiram a Unasul, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) e, mais recentemente, o Banco do Sul. Além disso, o BNDES tem assumido participação relevante no financiamento da integração regional.
Graças a esses e outros esforços, em 2010 a cobertura comercial entre o Brasil e a Venezuela foi de 4,6. Até agosto de 2011, o resultado caiu ainda mais, para 2,7. Sem dúvida, apesar de ainda estar longe da situação ideal, atualmente a relação é muito menos desequilibrada. Na lista de importações brasileiras, 20% dos atuais produtos sequer constavam na pauta em 2008 e hoje representam 20% do total. Além disso, aumentaram muito as compras de produtos químicos, polietileno, amoníaco, cimentos, laminados de ferro e de alumínio. Destaca-se que as importações das regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil com origem na Venezuela mais do que triplicaram e que cerca de 70% do comércio binacional vem ocorrendo a partir de cinco estados: São Paulo (via portos de Santos e São Sebastião), Rio Grande do Sul (Porto Alegre e Rio Grande), Pará (Belém e Munguba), Paraná (Paranaguá) e Minas Gerais (através de portos dos estados vizinhos). Mais de 70% das exportações foram realizadas pelos mesmos cinco estados. Também é possível verificar que mais de 75% das importações foram realizadas pelos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia, Espírito Santo e Distrito Federal.
Através da identificação de produtos venezuelanos com maiores vantagens comparativas, será possível aumentar ainda mais as compras brasileiras. As principais oportunidades estão claramente concentradas em cinco setores: petroquímica, ferro, alumínio, energia e fertilizantes. Apesar das elevadas importações brasileiras de naftas da Venezuela (quase 40% do total), coque de petróleo e hulhas (20%), óleo diesel, metanol e fertilizantes nitrogenados (cerca de 10%), o Brasil compra pouco da Venezuela no setor de “Combustíveis e lubrificantes minerais e produtos conexos”.
Especialmente nesta área, há um imenso potencial para a complementação e a integração energética sul-americana e do Mercosul. Este setor concentra produtos como hulha, coque, carvão, petróleo e derivados, gás e eletricidade. Em 2008, ao contrário dos demais países da região, que no geral são todos compradores da Venezuela, o Brasil importou 85% de fora da América do Sul e somente 1% da Venezuela. Em 2009, o Brasil importou do resto do mundo US$ 19,9 bilhões em petróleo e derivados, sendo que menos de 2% foram comprados da Venezuela. Esse quadro continua vigente até 2011.
Como mais de 90% das exportações venezuelanas são de petróleo e derivados, fica evidente que a forma de promover a desconstrução das atuais assimetrias e equilibrar a balança comercial binacional é promover as importações brasileiras de produtos petrolíferos da Venezuela. A ziguezagueante ideia de formar uma parceria entre a Petrobras e a PDVSA para a construção da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, poderia solucionar esta equação. A iniciativa ainda indefinida poderia abrir diversas possibilidades de complementação comercial e produtiva. Por um lado, aumentariam as importações brasileiras, já que a metade dos 230 mil barris diários a serem refinados em Pernambuco virá dos poços venezuelanos. Em um ano seriam 115 mil barris de petróleo. Multiplicados por 365 dias e novamente multiplicados por hipotéticos US$ 71 por barril (o preço atual está em torno de US$ 100), seriam importados US$ 3 bilhões. Por outro lado, aumentariam as exportações brasileiras de bens e serviços relacionados com a indústria do petróleo para a Venezuela. Ou seja, o comércio binacional daria um grande salto. No entanto, além do aumento das transações comerciais, a refinaria estimularia um maior equilíbrio na balança, possibilitando a ampliação do Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) e do Sistema de Moedas Locais (SML) (4) e a utilização de recursos para outros financiamentos e investimentos produtivos, sejam na Venezuela ou nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Consideramos que existem duas medidas principais para a integração industrialista que dependem especialmente do Brasil. São elas a promoção de políticas em prol do próprio crescimento e desenvolvimento econômico brasileiro e, ao mesmo tempo, a execução destas políticas de maneira associada a uma estratégia de articulação com as cadeias produtivas dos países da América do Sul e do Mercosul. Desta forma, o Brasil poderia garantir aos vizinhos não somente um grande mercado consumidor, que lhes permitisse obter importantes ganhos de escala, mas também estimular o incremento do valor agregado desses produtos, a criação e expansão de demanda nesses países e a ruptura com o histórico ciclo de exportações de produtos primários. Seguindo esta estrategia, os países sul-americanos poderiam desenvolver uma ampla cadeia de suprimentos para o fornecimento seguro e rápido de insumos industriais ao Brasil, associando a sua produção interna à expansão da estrutura produtiva brasileira. Essa integração poderia chegar a reduzir de forma considerável a vulnerabilidade externa dos países. A ideia de criar um mercado interno regional tem a finalidade de aumentar o coeficiente de importações recíprocas da região (desvio de comércio), reduzir a dependência de moedas conversíveis e ampliar a margem de autonomia dos países periféricos.
Quando se toma em conta o comércio da Venezuela com o Mercosul, vale apontar que em 2010, cerca de 80% dos animais vivos e produtos do reino animal que o país vizinho adquiriu tiveram origem dentro do bloco. No caso de óleos animais ou vegetais, esse percentual chegou a 33%. Em madeira e carvão vegetal, a 23%, enquanto plástico e suas manufaturas superaram os 20%. A Venezuela também importou de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai quase 15% dos metais comuns, produtos das indústrias alimentares e bebidas, produtos das indústrias químicas ou conexas e materiais de transporte. Não há dúvida de que o ingresso definitivo ao bloco permitirá incrementar ainda mais o intercâmbio com os quatro países, nesses e em outros setores. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), atualmente as principais importações venezuelanas do mundo são de máquinas e aparelhos elétricos (33% do total) e produtos das indústrias químicas (18%). Esses bens de maior valor agregado têm sido adquiridos, sobretudo, nos Estados Unidos, China e Alemanha. Mas é possível que, já em um primeiro momento, no âmbito do acordo regional, Argentina e Brasil consigam ampliar a sua participação.
A estimativa é que a entrada da Venezuela no Mercosul incremente o comércio intra-bloco em cerca de 20%. Além disso, como o país caribenho acumula resultados comerciais negativos com Argentina, Brasil e Paraguai, aumentariam as possibilidades para a utilização do Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Aladi e do Sistema de Moedas Locais (SML). Esses mecanismos poderiam promover o comércio intra-bloco com menos utilização de dólares, estimulando a criação de infraestrutura regional e servindo de garantia para importadores e exportadores. Entre 2006 e 2010 as importações venezuelanas com origem nos países do Mercosul tiveram um aumento sutil: as compras do Uruguai cresceram de 0,2% para 0,9% do total; as da Argentina, de 2,1% para 2,6%; e do Brasil, de 9,7% para 10%. As importações venezuelanas do Paraguai se mantiveram baixas, em torno de 0,3%.
Integração das cadeias produtivas
Nos últimos anos, a Venezuela não somente desenhou e pôs em prática iniciativas para “semear o petróleo”, como inclusive tornou-se um dos países do mundo que mais investiu entre os anos 2005 e 2008, antes da crise internacional que afetou em cheio os preços do petróleo. A participação da Formação Bruta de Capital Fixo (FBKF) no PIB, a chamada taxa de investimento da economia, chegou perto dos 30%. Segundo a Cepal, a média latino-americana no período foi de somente 20%.
Apesar do menor ritmo da execução, há diversas obras de grande porte em plena marcha: novas refinarias de petróleo, fábricas de cimento, de laminação de alumínio, de papel e celulose, siderúrgicas para a produção de aços navais, especiais e inoxidável, fábricas de tubos petroleiros, de trilhos e vagões, de concentração de mineral de ferro, produtos linha branca, carros e tratores, processadoras de leite, serrarias de madeira e planos agrícolas. Ao mesmo tempo, há mega-projetos na área de infra-estrutura: portos, aeroportos, pontes, linhas de metrô, ferrovias, estradas, termoelétricas, hidrelétricas, gasodutos, redes de fibra óptica, redes de distribuição de água, entre outros.
Essas iniciativas estão distribuídas geograficamente por todos os estados, com o objetivo de desconcentrar a população que vive essencialmente no litoral caribenho. As novas empresas são financiadas tanto por capitais públicos quanto privados, tanto de venezuelanos quanto de estrangeiros (especialmente de China, Índia, Rússia, Bielorússia, Irã e Cuba, mas também Estados Unidos e Japão, entre outros). Na maioria dessas iniciativas, o Estado conserva pelo menos 51% da participação acionária. Apesar da queda do preço do petróleo, o governo tem reafirmado seu compromisso pela continuidade de algumas dessas obras, assim como pela manutenção dos programas sociais, do baixo índice de desemprego e do rendimento salarial dos trabalhadores.
No caso das relações com o Brasil, avançam diversos projetos. A maioria dessas iniciativas conta com financiamentos do BNDES associados à prestação de serviços técnicos e de engenharia de empresas brasileiras, assim como com a exportação de bens produzidos no Brasil. O Estatuto do banco, em seu artigo 9º, determina que o apoio a investimentos diretos no exterior deve beneficiar exclusivamente empresas de capital nacional (Alem e Cavalcanti, 2005, p.71). Assim, o BNDES concede créditos aos países vizinhos com a condição de que eles contratem empresas brasileiras para realizarem as obras. Os financiamentos se estendem às importações de insumos e bens industriais brasileiros, fazendo com que cerca de 60% do que é usado nas obras seja produzido no Brasil (5). Os empréstimos para o desenvolvimento da estrutura produtiva dos países da região são compensados no âmbito do CCR, o que representa uma importante forma de garantia para o governo e as empresas ao praticamente eliminar os riscos de não pagamento.
Apresentaremos a seguir alguns dos principais projetos produtivos atualmente executados por empresas brasileiras na Venezuela. Contam com recursos do BNDES e também do Estado venezuelano. É o caso da construção da Siderúrgica Nacional no estado Bolívar, que faz fronteira com Roraima. O financiamento brasileiro ascende a US$ 865 milhões e a obra é realizada pela construtora Andrade Gutierrez. A mesma empresa está construindo desde 2008 o Estaleiro Norte-Oriental no estratégico estado Sucre, onde há imensas reservas de gás natural. O valor financiado pelo Brasil chega a US$ 635 milhões. Será o primeiro estaleiro venezuelano, com capacidade de atender parte das necessidades que a exploração de petróleo no Atlântico requer, inclusive na costa ocidental da África. Atualmente, no Rio de Janeiro, o Estaleiro da Ilha (EISA) está produzindo dez petroleiros para a PDVSA.
Ao mesmo tempo, a Braskem vem trabalhando na criação das empresas Polipropileno del Sur (Propilsur) e Polietilenos de America (Polimerica) em parceria com a estatal Petroquímica de Venezuela (Pequiven). Enquanto se estima que a Propilsur produza 455 mil toneladas de polipropileno, a Polimérica produziria 1,3 milhão de toneladas de eteno e 1,1 milhão de toneladas de polietileno. Por sua vez, a Petrobras continua participando de um projeto de exploração de petróleo no campo Carabobo da Faixa Petrolífera do Orinoco. Em 2007, a Gerdau adquiriu a terceira maior produtora de aço da Venezuela, a Siderúrgica Zuliana (Sizuca), na fronteira com a Colômbia. No mesmo ano, o grupo Ultra comprou uma fábrica de produtos químicos da empresa norte-americana Arch Chemicals. Em setembro de 2011, a Comissão de Energia e Minas da Assembleia Nacional da Venezuela aprovou a criação de uma empresa mista entre a PDVSA e a Odebrecht para a exploração de cinco campos de petróleo também em Zulia. As atuais iniciativas na área do petróleo da Faixa do Orinoco incluem a construção de refinarias, expansão de gasodutos e estímulo às indústrias conexas, como fábricas de válvulas, sondas petroleiras e estaleiros.
Em maio de 2011, o Ipea publicou uma nota técnica em conjunto com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Indústrias Intermediárias do país vizinho. O trabalho aborda as possibilidades de cooperação produtiva entre as regiões Norte do Brasil e Sul da Venezuela (6). A proposta é promover estudos que busquem a integração das cadeias industriais para o desenvolvimento das áreas de fronteira, nos setores de metal-mecânica, agroindústria e vidro. Além disso, houve consenso quanto à importância de reativar a cooperação entre as zonas francas de Manaus e de Puerto Ordáz. As instituições também consideraram oportuno estudar a complementaridade nos setores de fertilizantes, alimentação, automotriz, construção civil, higiene pessoal, petroquímico, farmacêutico e turístico.
O referido trabalho apresenta cinco iniciativas que conduziriam a uma maior complementação produtiva. A primeira se trata de ações conjuntas para ampliar a produção de coque e enxofre na Faixa Petrolífera do Orinoco. Uma maior oferta desses insumos garantiria a satisfação do mercado venezuelano e geraria excedentes exportáveis ao Brasil e aos demais países do Mercosul. A segunda proposta prevê uma aproximação entre o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e o Instituto Nacional de Geologia e Mineração da Venezuela (Ingeomin). Existem oportunidades na extração de ouro e minerais não metálicos, além de potenciais indústrias de cimento, cerâmica e vidros ao longo dos 850 quilômetros que ligam Puerto Ordáz a Boa Vista. A terceira ação faz referência à produção de fertilizantes. Apesar de a Venezuela contar com grandes reservas de fosfato, ainda exporta muito pouco para o Brasil, que importa a metade do que consome. Uma das propostas prevê a exportação venezuelana de fosfatados, nitrogenados e sais potássicos para o norte e o centro-oeste brasileiro, e até os demais países do Mercosul, através de transporte hidroviário. Por outro lado, existe a possibilidade de participação do Brasil em projetos venezuelanos de exploração de fosfato. O quarto ponto apresentado é o apoio brasileiro ao setor de habitação, com oportunidades de participação de empresas brasileiras na construção de casas e na produção de insumos para a construção civil do programa Vivenda Venezuela. Por fim, no quinto ponto se argumenta que o desenvolvimento produtivo venezuelano pode ter maior relação com a cadeia industrial brasileira, assumindo um papel de subministrador de matérias primas, insumos e inclusive produtos terminados. Ganham relevância os projetos do Ministério de Indústrias Básicas e Mineração da Venezuela (Mibam), que podem contar com o apoio técnico, participação acionária ou financiamento do Brasil.
Em paralelo, tem avançado a cooperação brasileira nas áreas agrícola e pecuária, liderada pelo trabalho da Embrapa. Em 2008, a instituição instalou um escritório na Venezuela como forma de potencializar a aliança binacional. Desde então são crescentes intercâmbios entre especialistas brasileiros e venezuelanos, com o objetivo de promover uma maior cooperação no setor. A principal meta é transferir tecnologia brasileira para o Instituto Nacional de Pesquisas Agrícolas (INIA). Os principais projetos estão relacionados com uma maior e melhor produção de grãos, especialmente de soja. Neste sentido, a Embrapa Soja está apoiando o projeto de desenvolvimento agrário José Inácio de Abreu e Lima, no estado Anzoátegui. A empresa brasileira Odebrecht foi contratada para construir a infraestrutura para o cultivo de 35 mil hectares de soja irrigada. Além da infraestrutura de irrigação, serão erguidos armazéns e fábricas para processamento de óleo de soja e de ração animal. Os acordos também contemplam a capacitação de técnicos e produtores venezuelanos, para o manejo de plantas e sementes e preparação do solo, por meio de consultorias e assistência técnica. Através da Embrapa Gado de Corte e da Embrapa Suínos e Aves, o Brasil também presta apoio em atividades relacionadas com a pecuária, incluindo a reprodução de aves, suínos, bovinos, caprinos e ovinos, assim como a programas nacionais de controle sanitário e de certificação de produtos de origem animal. Além disso, a Venezuela tem requerido material genético, auxílio para a construção de granjas, equipamentos e ferramentas para diagnóstico e controle de doenças que afetam a produção e a reprodução pecuária, bem como a saúde pública.
Infraestrutura de Norte a Sul
Nos próximos anos serão realizadas as grandes intervenções de engenharia que tornarão viável o aproveitamento das imensas oportunidades de interconexão da infraestrutura da América do Sul. Neste sentido, é fundamental a conexão das bacias do rio Orinoco, do Amazonas e do Prata, interligando a Venezuela, ao Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina.
Um navegante sul-americano poderá, assim, iniciar a sua jornada no delta do rio Orinoco, na Venezuela. Depois de percorrer mais de 1200 quilômetros desde o Atlântico, passando pela cidade de Puerto Ordáz, chegaria ao chamado canal do rio Casiquiare. Este possui 330 quilômetros, grande parte plenamente navegável, que ligam os rios Orinoco e Negro, já na fronteira brasileira com a Venezuela e a Colômbia. O Casiquiare conecta naturalmente as bacias hidrográficas do Orinoco e do Amazonas. Mais 1200 quilômetros a leste e o viajante estará em Manaus, onde o rio Negro se encontra com o rio Solimões e muda de nome para se chamar Amazonas. Porém, como se sabe, cerca de 300 quilômetros antes de chegar a Manaus, o rio Negro é tocado pelo rio Branco, que percorre mais de 500 quilômetros desde a cidade de Boa Vista, a apenas 200 quilômetros da fronteira com a Venezuela. Este quadro revela as imensas possibilidades de incrementar o comércio pelo corredor que vai desde a Venezuela até Manaus, via rodoviária e hidroviária.
No entanto, além da possibilidade de contar no futuro com uma conexão entre os rios Orinoco e Amazonas (via Casiquiare), existem condições muito menos complexas e de curto prazo. Entre Caracas e Boa Vista, a infraestrutura de transporte terrestre, apesar de persistirem alguns trâmites aduaneiros inconvenientes, encontra-se em bom estado e permite obter custos competitivos nas duas direções. Depois de chegar por rodovia até Boa Vista, os produtos vindos da Venezuela poderiam seguir por via fluvial até as cidades de Porto Velho (Rondônia) e Rio Branco (Acre), através dos rios Branco, Negro, Amazonas e Madeira, desde Itacoatiara. As operações poderiam garantir o abastecimento de produtos desde o Amazonas até o Mercosul. O transporte pela via fluvial tornaria muito mais barato os custos e aumentaria muito a competitividade de alguns bens frente às ofertas do Sudeste brasileiro, que são transportadas por dois mil quilômetros, ou mais, de rodovias desde as costas do oceano Atlântico. No entanto, a realização dessa proposta depende fundamentalmente dos volumes de carga, que devem ser grandes o suficiente para garantir as economias de escala.
De modo geral, nos últimos anos houve inúmeros avanços. O Brasil, através do BNDES, financiou a integração do norte e do sul da Venezuela. O território venezuelano é cortado literalmente ao meio pelo Rio Orinoco. Até 2006 existia somente uma ponte que ligava um lado do país ao outro. A associação binacional garantiu a construção da segunda ponte e a terceira já está em estágio avançado de edificação. Várias das principais empresas brasileiras de engenharia estão instaladas no país vizinho, prestando serviços na construção de pontes, estradas, metrôs, represas, redes de distribuição d’água, etc. A Venezuela tem investido pesado nos setores de energia, transportes e comunicação.
Atualmente o BNDES financia US$ 943 milhões das obras de construção e ampliação da Linha 5 do Metrô de Caracas. O projeto executado pela Odebrecht beneficiará cerca de 100 mil passageiros por dia e inclui a instalação de seis novas estações em um trajeto de 7,5 quilômetros. Além disso, o banco libera US$ 121 milhões para a construção da Hidrelétrica La Vueltosa pela Alstom e US$ 1,3 bilhão para a Camargo Corrêa executar o mega-projeto “Tuy 4”, de irrigação e distribuição de água. No âmbito da integração energética, desde 2001, a cidade de Boa Vista deixou de usar energia termoelétrica e passou a receber eletricidade através do chamado “Linhão”, que se estende por 600 quilômetros desde as usinas hidrelétricas do rio Caroní, próximo ao Orinoco. Anualmente a Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, importa da Venezuela cerca de US$ 30 milhões em energia elétrica. Outro resultado desta cooperação na área de infraestrutura foi a chegada, em 2009, da fibra ótica ao sul da Venezuela e a Boa Vista. Em 2011, o benefício foi estendido à cidade de Manaus, que fica quase 800 quilômetros mais ao sul (7).
Certamente, as possibilidades de articulação do norte do Brasil com o sul da Venezuela são imensas e transcendem as áreas de indústria, infraestrutura e comércio. Há espaços para a cooperação em outros âmbitos, como o turístico, o tecnológico, o acadêmico, o cultural e o de políticas sociais. Com o passar dos anos, a criação e a expansão da rede de infraestrutura permitirão que o país caribenho reforce os seus vínculos com o Cone Sul.
Sabe-se que o futuro não está plenamente na mão dos homens. Mas, ainda assim, existem suficientes provas de que o planejamento racional e a intervenção humana podem alterar destinos no espaço e no tempo. No nosso entendimento, cabe aos pensadores de hoje contribuir com a construção do Mercosul de amanhã, pois não restam dúvidas de que é fundamental a presença da Venezuela no bloco regional.
Notas:
(1) A expressão foi apresentada pelo intelectual venezuelano Arturo Uslar Pietri, em 1936. A proposta era “convertir la riqueza transitoria del petróleo en riqueza permanente de la nación”. Para o advogado venezuelano Ramón Crazut (2006), se trata da “política orientada a destinar el grueso de los recursos financieros obtenidos con la explotación de hidrocarburos hacia inversiones verdaderamente reproductivas que contribuyan para la diversificación de la producción y las exportaciones, y nos independicen de la relativa monoproducción y monoexportación de hidrocarburos, situación que imprime a nuestra economía una elevada vulnerabilidad, dado el carácter agotable de ese recurso extractivo y sus continuas fluctuaciones de precios”.
(2) Samuel Pinheiro Guimarães (2008) afirma que “a compreensão brasileira com as necessidades de recuperação e fortalecimento industrial de seus vizinhos nos levou à negociação do Mecanismo de Adaptação Competitiva com a Argentina, aos esforços de estabelecimento de cadeias produtivas regionais e à execução do PSCI. O objetivo deste é tentar contribuir para a redução dos extremos e crônicos déficits comerciais bilaterais, quase todos favoráveis ao Brasil”.
(3) http://www.mdic.gov.br/pdp. A PDP tem como objetivo coordenar as políticas públicas e as ações do governo brasileiro para incentivar as atividades industriais. Busca adotar mecanismos de apoio ao fortalecimento da estrutura produtiva, através da estreita coordenação entre os entes públicos, sem desestimar a importância do setor privado.
(4) Recomendamos ver PINTO & SEVERO (2010).
(5) Em clara contradição com essa política, o BNDES tem utilizado recursos públicos para financiar o fortalecimento de empresas estrangeiras estabelecidas no Brasil. São os casos da Anglo American, Carrefour, Enron, Fiat, Brenco, Cargill, Renault, Nippon Steel, Kimberly Clark, TIM, GVT Holland e JetBlue (Lopes, 2009).
(6) “Região Norte do Brasil e Sul da Venezuela: Esforço binacional para a Integração das cadeias produtivas”, no site do IPEA.
(7) Recomendamos a leitura do Relatório de Pesquisa “A integração de infraestrutura Brasil-Venezuela: a IIRSA (Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) e o eixo Amazônia-Orinoco”.
Bibliografia utilizada
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*Luciano Wexell Severo é economista formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre e Doutorando do Programa de Economia Política Internacional (Pepi) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Professor Visitante da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Entre 2004 e 2005, foi consultor no Banco de Comércio Exterior da Venezuela (Bancoex). De 2005 a 2007, foi assessor do Ministério de Indústrias Básicas e Mineração da Venezuela (Mibam). Entre 2008 e 2012, exerceu a função de diretor-executivo da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Venezuela no Rio de Janeiro.