Cap. XXIX – Meu touro! Minha vaca!
Chica recurvou-se nas ladeiras, nutrindo-se na brisa ininterrupta. Dobrando a esquina da Ladeira de São Francisco, o vestido de renda azul colado ao corpo, resfolegando sem queixas, segurando o abdome.
Publicado 16/06/2012 00:05 | Editado 13/12/2019 04:02
– Descansa em casa – recomendava a tia.
– Descanso quando der à luz. O médico não me recomendou cama, quer que eu me movimente para facilitar o parto. Acho bom assim… Meu filho não será preguiçoso.
– É você, Francisquinha. Vai ter um menino sadio depois de arrancar a própria língua.
– Vou gritar de alívio, de alegria; isso sim.
– Benza-Deus, só por causa de umas plantas de nada.
– Não está sentindo o cheiro? As açucenas brancas.
– Sinto o cheiro do café, do café e do cuscuz na água fervida.
– Precisa controlar o seu olfato para sentir o cheiro da vida. Eu sinto o cheiro do café e o perfume das plantas. Quero que meu filho sinta os cheiros.
– Não quer mesmo saber se é menino ou menina?
– Quero que nasça sadio. Gosto de matutar sobre o sexo de meu filho sem saber se será menino ou menina. É o prazer da gravidez.
Continuou subindo e descendo o outeiro do Carmo; fez amizade com o guarda. Gordo, baixo, escondendo a careca no quepe, atenuando-a com um bigode ralo, logo o homem chamou-a de Francisquinha. Fora avisado de que desconfiasse de qualquer incursão ao outeiro; podia ser para o plantio e cultivo de maconha. Não desconfiou de Chica, sobrinha da velha Teotônia; inda por cima, prenha. No carnaval, quando o cheiro do cânhamo descera à praça, intimidara-se com os muitos usuários. O prumo nas pernas de Chiquinha, ele o apreciou.
– Sou eu e pato, seu Manoel.
– Por quê?
– Antes de nadar, passo graxa nas pernas.
– Nem todo pato. Uma pata choca não a acompanharia.
Uma vez, acompanhada do Babalorixá, o guarda correu para alcançá-los antes que subissem.
– Meu pai, preciso falar com o senhor! – Tirou o quepe, o guarda.
Chica seguiu.
– É sobre meu emprego. Tenho medo…
O babalorixá interrompeu-o, seguiu Chiquinha.
– Aqui não, meu filho. Só em casa que eu posso jogar os búzios.
– Por que não o atendeu !? – perguntou Chica.
– Magina se eu vou adivinhar no meio da rua, sem búzio, sem vela nem carta. Eu,
hem!
– O homem tá aperreado.
– Ele que suba no palácio! Esse povo tem que aprender… Ele que suba e eu limpo todos os caminhos pra ele.
Colheram flores. Voltaram à Sé. No alto, sentiram o vento forte. Ele importou-se com os pitós na cabeça, amarrados em biliros.
– Já foi visitar o arcebispo? – quis saber Chica.
– Nunca recebi visita dele!…
– Por que não lhe oferece um ramo de cada uma dessas flores?
– O padre não me dá um bom-dia… Eu vou jogar incenso de margaridas na batina dele? Não, minha filha, nem invente.
– Você estaria dando exemplo!
– Ih, Francisca… Pára com isso!
– Queria ver a cara do arcebispo, quando o visse com a cabeça cheia de cocós amarrados, pintados de amarelo, no corredor do seminário.
Na quitanda…
– Tem camomila, Francisca? Quero dormir.
– Hoje é dia de consulta, Edu!
– Ave Maria! Nem me lembrava.
Chica desfrutou a prenhez nas ruas, no outeiro, no amasso da terracota. Na oficina, imaginou-se aleitando, amassando, absorvendo o cheiro da própria mama. Desfrutou-a na intimidade dos aposentos, olhando-se na penteadeira, em pé, sentada no pufe de veludo. Tirava o vestido para se olhar só de calcinha, nua, de frente, de lado. Com os quadris abastados, viu-se mulher feita, sem se lembrar das ancas finas na adolescência, de quando menstruara pela primeira vez. Viu-se mês a mês, de múltiplos ângulos. Curiosa, indócil, antecipou cada ciclo da gestação.
Depois da refeição, corria para a oficina com a imagem que engendrara à noite, na madrugada em que exercitara com o parelho um trapézio impossível para a obtenção do gozo. Nas surubas, surgiam fêmeas grávidas contorcendo-se nos espasmos; fêmeas no começo da prenhez, no meio, no fim, com as pernas abertas, as pernas e a vagina.
– Quero ser uma vaca de tetas cheias.
– Suas tetas já são grandes – respondeu Maújo.
– Quero esborrar.
– Terá que andar com um balde pendurado no pescoço.
– Está debochando… O que quero dizer é que quero sentir-me nutriente.
– Você será uma parideira inveterada. Terá que parir todo ano para satisfazer o instinto; nunca vai satisfazer o instinto. Só o cansaço da idade vai tirá-la da vontade de parir. Veja seus quadris largos, sinal de que é mulher reprodutora.
– Monte-me no chão, faça-me de vaca; monte-me como um touro, seja um touro em cima de mim. Quero ser sua vaca submissa, mugindo de gozo.
– Grite, muja, acorde Teotônia, mas daqui a seis meses não esteja aleitando um bezerro.
– Se não satisfizer meu desejo, posso parir um novilho. Há casos na bíblia.
– Só se for da parte de Ogum. Não seria meu filho.
– Não tem ciúme de Ogum?
– Respeito sua crença. Ogum é imaterial.
– Ogum também me pega.
– Ogum sugere seus sentidos. Acho até bom. Ele estimula você para mim.
– Meu touro!
– Minha vaca!
– Está chovendo.
– Talvez seja o estímulo de Ogum.
– Vamos para baixo do sapotizeiro. Trepamos como dois bovinos sob a chuva.
Emporcalharam-se da cabeça aos pés. Os cabelos viraram uma massa pastosa de fios com terra molhada. O rosto sardento cobriu-se de lama, de musgos arrancados no tronco do sapotizeiro. Ela gemeu, mordeu-o por não crer que mesmo tendo-o sob as mãos, não podia arrancar-lhe a carne.
Trovões, relâmpagos, água escorrendo na biqueira. Chica sugeriu-se aos poucos, soltando-se dele; criou força, mais forças.
– Emi Neji Ogum Lacae! – voz grossa, a língua em parafuso.
– Chica…
Não atendeu pelo nome de batismo. Com o fim do temporal, a fúria dos espasmos foi cedendo. Maújo cuidou para que não desse marradas com a cabeça em algum tronco, na parede do poço, do tonel cheio d’água. Atenuado o transe, sentada no chão empoçado com as duas pernas curvadas, olhou para cima, para Maújo. Os olhos perderam o brilho. Tinha um rosto malsão, olhos mortos. Submissa, quase rogando perdão.
– Precisa de outro banho – disse Maújo.
Deixou-se lavar sob a bica, não moveu um só nervo do corpo prostrado, rendido.