Dafne Melo: escracho, um instrumento de luta
Nascidos na Argentina na década de 1990 para denunciar os agentes da ditadura civil-militar responsável por um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos no período, os escrachos criaram condenação social e abriram caminho para a abertura dos processos judiciais contra militares e civis envolvidos na repressão.
Por Dafne Melo
Publicado 25/05/2012 15:34
Na manhã de 25 de março de 2006, quem passava pela Avenida Cabildo, número 639, no bairro portenho de Belgrano, via a parte externa de um prédio residencial, precisamente na altura do sexto andar, manchado de tinta vermelha, além de placas e pichações na rua. “Aqui vive um genocida”, diziam algumas das mensagens. Nesse endereço vivia Jorge Rafael Videla, um dos líderes da Junta Militar que tomou o poder por meio de um golpe de Estado em 24 de março de 1976.
Quem tivesse passado no dia anterior teria visto 15 mil pessoas em uma manifestação diante da casa do repressor, na ocasião em prisão domiciliar (hoje cumpre a pena em um presídio). Tratava-se de um escracho, como ficou conhecido na Argentina e no Uruguai um determinado tipo de mobilização em que se evidencia publicamente um fato condenável em relação a uma pessoa ou lugar.
As semelhanças com os atos realizados por jovens brasileiros nos meses de março e abril não são meras coincidências. No comunicado da organização Levante Popular da Juventude, que organizou seis escrachos a repressores brasileiros em seis cidades simultaneamente, no dia 26 de março, é feita referência à experiência do país vizinho e à chilena, onde esse tipo de mobilização recebe o nome de “funa”.
Há consenso, porém, que o escracho nasceu na Argentina. “É uma ferramenta de luta que criamos em determinado período de nossa história”, conta Julio Avicento, da Hijos (sigla em espanhol para Filhos e Filhas pela Identidade, Justiça e contra o Esquecimento e o Silêncio, que forma a palavra “filhos”), da cidade de La Plata, organização à qual se atribui a criação do escracho.
O período a que se refere Avicento é a década de 1990, quando vigoravam as chamadas “leis de impunidade”. Após o fim da ditadura civil-militar, em um contexto de denúncias feitas pelas organizações de direitos humanos, crise econômica e desmoralização em razão da derrota na Guerra das Malvinas, os integrantes das juntas militares que chefiaram o país entre 1976 e 1983 foram julgados, em 1985. O resultado foi a condenação de Videla e Emilio Eduardo Massera à prisão perpétua, e de outros três chefes da Junta a penas menores. Outros quatro foram absolvidos.
Nova geração e impunidade
A Argentina era então governada por Raúl Alfonsín, que depois do Julgamento às Juntas sancionou duas leis: Ponto Final e Obediência Devida. Juntas, concediam anistia a todos os outros militares e policiais com a justificativa de que haviam cumprido ordens de seus superiores. Portanto, estes já haviam sido julgados e o assunto estava encerrado. Para completar, em 1990 o então presidente Carlos Menem concedeu um indulto aos condenados, colocando em liberdade os chefes militares.
Para Julio Avicento, nesse momento houve um ponto de inflexão em que essas leis passaram a ser questionadas pelas quatro gerações de lutadores: as mães, pioneiras na luta contra a impunidade; as avós, que questionavam o paradeiro de seus netos (a ditadura civil-militar argentina roubou cerca de 500 filhos de desaparecidos); a própria geração dos desaparecidos, representada pelos sobreviventes; e os filhos, que nessa época estavam entre a adolescência e a vida adulta.
Em um contexto de impunidade total, no qual era impossível avançar judicialmente, a organização Hijos passou a sugerir a possibilidade de um avanço em outro tipo de condenação. “O caminho era a condenação social, já que não se podia contar com a Justiça, cúmplice do genocídio. Quanto mais a sociedade condena, mais fácil é romper a impunidade, inclusive judicialmente”, resume Agustín Cetrangolo, também militante da Hijos, na capital Buenos Aires. De fato, foi o que ocorreu no país. Em 2003, Néstor Kirchner derrubou as leis, o que permitiu o início do julgamento judicial de vários repressores. “Quase todos os processados ou julgados foram escrachados antes”, conta Cetrangolo.
Julio Avicento revela que diversas organizações participavam do escracho, não apenas a Hijos. “Usávamos as chamadas ‘mesas de escrachos’, nas quais participavam distintas organizações; havia muitas tarefas para dividir e muito a aprender durante o caminho”, lembra. O militante explica que um trabalho prévio ao escracho era feito, não só de investigação para comprovar a participação do repressor, mas também com os vizinhos. “Passávamos casa por casa conversando, explicávamos que íamos fazer uma atividade, entregávamos um texto explicando o porquê”, explica. A chamada “mesa de escracho” era geralmente feita em um centro cultural ou na sede de alguma organização, que cedia o espaço. Os militantes faziam então um diálogo com o bairro e com as organizações a partir do eixo da denúncia aos repressores.
A lógica não era necessariamente gerar a surpresa e um incômodo no repressor no momento do escracho, mas instalar um desconforto permanente por meio do trabalho com os vizinhos. “Queríamos que as pessoas se recusassem a entrar no elevador com eles, que o padeiro do bairro se recusasse a vender pão. Dizíamos: se não vai para a cadeia, que sua casa seja uma cadeia. Que na rua sejam repudiados pela sociedade.”
Filhos da luta
As organizações que aderiam ao escracho a um genocida (na Argentina, alguns juízes afirmam que os crimes de lesa-humanidade cometidos na ditadura se deram dentro de um plano sistemático de extermínio, que pode ser classificado como genocídio) não eram apenas formadas por familiares. A Hijos, por exemplo, é aberta à participação de toda a sociedade. Explica Avicento: “Não sou filho de desaparecido, mas há quatorze anos milito no âmbito dos direitos humanos, conheci muitos companheiros [filhos e parentes] e me envolvi. O rico dessa luta é que toda a sociedade pode se envolver”. Não somente pode, como deve. “Toda a sociedade foi vítima do terrorismo de Estado, todos sofreram com o terror e o medo”, completa.
Agustín Cetrangolo é filho de Sergio Cetrangolo, desaparecido em 1978. A mãe, também presa e torturada, é da geração de sobreviventes. “Não entendemos que a reparação é apenas com os familiares, mas deve-se reparar toda uma sociedade”, defende. “Na Hijos dizemos que todos somos filhos da mesma história. Seria um erro dizer que o genocídio pretendeu apenas exterminar as organizações políticas e seus militantes. A violência do genocídio extrapola isso. Se entendemos que toda a sociedade foi vítima desse terrorismo de Estado, por que não podemos organizar qualquer setor para lutar contra isso?”, completa.
Para Julio Avicento, quem usa o argumento de que os jovens de hoje não “têm nada a ver” com a repressão “esconde na verdade uma posição que procura manter a impunidade em relação aos repressores”. Os militantes também lembram que o aparato repressivo da ditadura persiste até hoje, com os casos de assassinatos de jovens pela polícia ou a perseguição e espionagem dos movimentos sociais. Também por isso os escrachos continuam sendo usados. “O escracho transcendeu a Hijos, para além do que entendíamos como escracho. Em 2001, por exemplo, escrachou-se tudo, bancos, McDonald’s”, recorda Cetrangolo.
*Dafne Melo é jornalista e historiadora
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil