Especial Comissão da Verdade: Entre mortos e feridos, sumiram-se todos
O que esperar da Comissão da Verdade, instalada no dia 16 de Maio pela presidenta Dilma Rousseff? Numa tentativa de trazer à tona casos mais emblemáticos de mortos e desaparecidos políticos, durante a ditadura militar (1964 a 1985), e escarafunchar denúncias, a Revista Caros Amigos lançou neste mês de maio um especial sobre o tema. Abaixo, confira uma das matérias cedidas ao Vermelho, pela publicação, que aborda a Guerrilha do Araguaia. Há indícios de que 'novos' guerrilheiros teriam entrado na guerrilha depois da invasão do exército.
Publicado 23/05/2012 16:21
“Aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do estado policial, dos esquadrões da morte e sobretudo os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade sempre serão descobertos”. Estampada em um muro vermelho, no Cemitério de Perus, a frase é de Luísa Erundina, prefeita de São Paulo à época da descoberta da Vala de Perus, onde a ditadura escondia corpos de militantes políticos assassinados.
O cemitério foi construído durante o reinado de Paulo Maluf e é um dos três serviços funerários de São Paulo que até hoje recebe indigentes. Exatamente 1.049 ossadas foram encontradas na abertura da vala, em 1990, muitas até hoje não identificadas. O que a existência dela, e de muitas outras valas espalhadas pelo Brasil, nos faz supor é que o número oficial apresentado em documento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República em 2007, de 475 casos em investigação ou já confirmados entre mortos e desaparecidos, deve ser ainda maior. Para lembrar os inúmeros casos que precisam ser revelados e esclarecidos, a Caros Amigos conversou com parentes de desaparecidos que até hoje lutam pela memória e pela justiça dos que foram perdidos, sumidos.
Campo e cidade
“Olha o tamanho do Brasil. Como a gente vai saber, com tanta gente jogando contra, calada e com medo, o que aconteceu no interior de São Paulo, num canto do Acre? O país é grande e o exército esteve solto por toda parte, durante 20 anos, e continua por aí”, questiona Elizabeth Silveira e Silva, tesoureira do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ. Seu irmão, Luís Renê Silveira e Silva, é um desaparecido político da guerrilha do Araguaia.
Luís envolveu-se na militância política contra a ditadura aos 19 anos, quando era calouro em uma faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Logo decidiu se juntar aos guerrilheiros do Araguaia, o que talvez não estivesse claro nem pra ele, nem para sua família: o paradeiro original era desconhecido e ele apenas avisou que iria fazer um trabalho político no interior. Alguns meses depois, com 20 anos já completos, em 1971, uma última carta, com a “característica letra horrível e inconfundivelmente sua”, poucas informações e a garantia da satisfação com o caminho escolhido e com a luta travada. Em 1972, o Exército entra no Araguaia, sob o desconhecimento geral da nação.
“Ninguém sabia que havia luta armada no Araguaia até o final de 72, quando uma matéria da Folha de S. Paulo vazou a informação. Nós já acompanhávamos alguns informes pela direção do PCdoB no Rio de Janeiro, mas, em 1973, quase toda ela foi assassinada ou presa na cidade, e cortaram-se os canais de informação. Ficamos no escuro. Foi nessa época que perdi meu companheiro, também do PCdoB, o Lincoln Bicalho Roque, vítima da ditadura”, conta Elizabeth.
Depois de cessarem as informações, a família aguardou até 1975 para começar as buscas: “não queríamos ir atrás e levantar suspeitas sobre as pessoas envolvidas na luta armada. Mas, com o tempo, percebemos que não havia alternativa e fomos em busca da verdade”.
Desde então, Elizabeth participou do Comitê pela Anistia, e posteriormente, se juntou ao movimento Tortura Nunca Mais. O direito de enterrar seu irmão, no entanto, ainda não pode ser efetivado: “Não desistimos, temos esperança. As ossadas têm que estar por alguma parte. Talvez com a abertura real dos arquivos, que o exército finge não existirem, nós consigamos alguma informação sobre o paradeiro dele e dos outros. Eu sei que muita coisa foi queimada, mas é importante continuar buscando a verdade”.
Os invisíveis do Araguaia
Paulo Fonteles Filho nasceu na prisão, no ano em que Luís Renê rumava para o Araguaia. Sua mãe e seu pai foram torturados e mantidos calados. Sobreviveram à ditadura, mas a repressão também sobreviveu ao fim do regime, e em 1987, seu pai, Paulo Fonteles, foi morto pelos mesmos capangas e soldados do regime militar que seguiram na ativa. Oficialmente: “Grande parte dos agentes da repressão da Guerrilha do Araguaia foi convidada pelo grande latifúndio para organizar as milícias de segurança dos fazendeiros. Treinaram capangas, fizeram as escolas de pistolagem e conseguiram que o Pará se transformasse até hoje, especialmente a área do Bico do Papagaio, nesse mar de violência, repressão e medo para os trabalhadores rurais”, afirma Paulo, que luta pela memória dos que sumiram, debaixo de diversas ameaças perpetradas pelo silêncio que ele faz questão de incomodar.
Membro desde a fundação da ATGA (Associação dos Torturados do Araguaia), em 1996, Fonteles Filho abandonou sua vida de universitário no Rio de Janeiro para acompanhar as investigações sobre os mortos e desaparecidos do Araguaia. Juntando camponeses e pesquisadores, a associação busca se aproximar de verdades até agora amedrontadas, afinal, muitos dos mateiros que ajudaram a Caravana do Araguaia – mobilização popular que percorreu por 10 dias a região do Araguaia na busca de vítimas e desaparecidos da guerrilha em 1980 – sofreram pesadas represálias, como foi o caso de Pedro do Jipe, de 26 anos, que ajudou nas primeiras buscas e foi encontrado morto dez dias depois. Também de Raimundo Clarindo, o “Cacaúba”, também mateiro, que foi assassinado em circunstâncias misteriosas em 2011.
Mas essas não foram as únicas mortes entre os habitantes da região. Investigações recentes, que partem de depoimentos de ex-soldados que combatiam a guerrilha, dão uma nova dimensão das atrocidades cometidas pelas forças armadas durante o combate à guerrilha. O número de mortos e desaparecidos pode chegar até trezentas pessoas, entre camponeses e castanheiros que viviam e moravam na floresta.
“Essas informações novas superam os limites históricos daqueles terríveis acontecimentos, pois, até então, as únicas fontes disponíveis eram camponeses, familiares de desaparecidos políticos e pessoas do próprio Partido Comunista do Brasil. Tais denúncias versam sobre fuzilamentos em São João do Araguaia, em 1974, onde mais de vinte castanheiros foram mortos covardemente pelas tropas oficiais. Podem ter havido mais casos deste tipo, ainda não confirmados, na região de Xinguara e Rio Maria, no sul do Pará, naquele tenebroso ano de 1974. Também recebemos relatos de ex-soldados, que indicam ter visto dezenas de camponeses mortos sob tortura na 'casa da judiciária da Base de Xambioá, então Estado de Goiás, hoje Tocantins”, revela Paulo.
Das mesmas fontes também ecoam relatos de diversas “operações de limpeza”, nos anos seguintes à guerrilha, que visavam eliminar testemunhas, vestígios e arquivos com pistas de desaparecidos. As operações teriam sido coordenadas pelo Coronel Sebastião Curió.
Originalmente Sebastião Rodrigues de Moura, Curió foi enviado à região para combater os focos da luta armada na década de 1970 e se radicou no Pará, fundando a cidade de Curiopólis.
Ainda segundo Fonteles Filho, recentemente foram descobertas informações sobre militantes políticos que poderiam ter adentrado a região depois do 12 de abril de 1972, data da invasão pelo exército brasileiro. “Acontece que estes 'novos' guerrilheiros não foram inseridos em listas porque adentraram na mata depois que à repressão se fazia presente e todos os canais de contato fora da área conflagrada haviam sido cortados”, revela Paulo. “Ouvimos de uma camponesa, amiga da guerrilha, que ao conversar com o Daniel Callado [o “Doca”, guerrilheiro desaparecido], este havia informado-lhe que houve gente entrando na área conflagrada, por Xambioá, nas 'barbas' das tropas militares acantonadas ali. Tais militantes e suas identidades nunca constaram nas listas de desaparecidos e não sabemos, por conseguinte, seus paradeiros, mas sabemos que duas pessoas estão vivas, uma na região e outra que pode estar vivendo no sul do país. O fato é que o número de comunistas que se dirigiram ao Araguaia pode ter sido bem maior que os 69 que as pesquisas históricas ensejam”, relata o pesquisador.
Não vestiu pijama
"Grande parte da sociedade acha que esses caras estão de pijama em casa. Não estão. Estão muito vivos, intimidam pessoas e querem colocar por debaixo do tapete os crimes da ditadura militar", denuncia Fonteles. Desde 2010, o GTA (Grupo de Trabalho Araguaia), que tem realizado uma extensa pesquisa na região, relata que ameaças tem sido feitas a ex-colaboradores do exército na região para que não abram a boca sobre os crimes perpetrados pelos militares. Um ex-motorista do Coronel Curió, que afirmou ter visto uma “macabra operação de limpeza,” recebeu ligações ameaçadoras e teve sua casa cercada por carros com vidro peliculado por várias noites.
Sezostrys Alves da Costa, presidente da ATGA e membro do Grupo de Trabalho Araguaia – Tocantins) teve seu quintal invadido, roupas reviradas e encontrou uma vela, provocadora, acesa.
Em relatório entregue ao Ministério da Defesa e à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a GTT informa que oito pessoas do grupo tem sofrido constantes achaques. Fonteles e sua mulher tiveram em 2010, sua morte anunciada via redes sociais, logo após participarem em oitiva num Processo Administrativo Disciplinar (PAD), da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
O PAD tratava sobre ocultações de cadáveres de desaparecidos políticos e destruição de documentos da ditadura por servidores da Abin do Pará. Magno José Borges, hoje vice-superintendente da Abin-PA, é ex-militar, foi do Doi-Codi e atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia. Coincidentemente ou não, as investigações andam devagar e nesse ritmo, arriscam-se a desembocar na escuridão permanente.
Outros casos
José Porfírío, ou Zé Porfírio, foi um líder camponês. Estabeleceu-se, junto com muitas outras famílias, em terras devolutas, que foram divididas entre os trabalhadores rurais, na região do Uruaçu, em Goiânia, no que se conformou como um assentamento de colonos conhecido como Trombas e Formoso. Resistiu contra o regime Vargas, contra a especulação, contra os jagunços.
Destacou-se como líder, viu sua casa ser queimada e companheiros serem mortos e ameaçados. Viu a organização camponesa construir um município, livre de pistoleiros e soldados, onde a terra era de quem trabalhasse. Continuou seu trabalho e sua militância política durante a Ditadura Militar. Preso em 72, após a denúncia de um fazendeiro, foi preso e torturado por 7 meses. Libertado do cárcere, foi deixado pela advogada na rodoviária para voltar à sua terra e nunca mais visto.
Rubens Paiva foi deputado, engenheiro e militante político. Foi exilado em 1964 pela investigação realizada durante o governo João Goulart sobre financiamentos de grupos anti-comunistas. Voltou ao Brasil, participou como jornalista de publicações como o Jornal de Debates e seguiu com suas atividades de engenheiro e ativista. Em 1971, foi sequestrado por homens da Aeronáutica, sob o comando do brigadeiro João Paulo Furnier, também responsável pela morte de Stuart Angel, e nunca mais foi visto. Seu caso permanece até hoje emblemático da brutalidade da ditadura. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
Os dois casos citados acima se somam aos desaparecidos oficiais, aos desaparecidos extra-oficiais, aos mortos conhecidos, aos que nunca tiveram seus torturadores e assassinos reconhecidos e seus restos encontrados. Em tempos da instituição de uma Comissão Nacional da Verdade, resta esperança de que se avance na reconstituição da memória nacional?
Para Fonteles, dependerá da mobilização popular. Já para Elizabeth Silveira, as chances são mais tímidas. “Para mim é uma dúvida enorme, porque a Comissão não contribui para o estabelecimento da justiça, e sem isso não há verdade, tampouco memória. Espero que pelo menos perguntas sejam feitas nos rincões, nos interiores, onde as pessoas têm medo de falar”. E conclui: “O Estado brasileiro é uma coisa paquidérmica. Demora pra andar, e quando anda, é pisando e devastando o sonho das pessoas. É um desalento. Mas, não podemos nunca deixar de lutar pelo que é nosso, por nossa história, para que isso nunca mais se repita”.
Fonte: Especial Caros Amigos Comissão da Verdade
(no domingo será publicada outra matéria do especial: Brasil ignora sentença da OEA)