Documentário coleta os muitos Rauls Seixas para recompor o mito

Mais que Michael Jackson ou Marilyn Monroe, é muito fácil ser sósia de Raul Seixas (1945-1989). No documentário Raul – O Início, o Fim e o Meio, aparecem alguns deles, em reuniões de fãs. Se o músico estivesse vivo, misturado naquela multidão de cavanhaques e óculos escuros, seria impossível diferenciar o verdadeiro e suas imitações.

Mas qual é o verdadeiro Raul Seixas? O diretor Walter Carvalho (em co-direção com Leonardo Gudel e Evaldo Mocarzel) colhe entrevistas com meia centena de pessoas, desde os amigos de adolescência de Raul até o dentista que consertou-lhe os dentes no fim da vida. Mesmo quem prefere não se pronunciar, como a primeira esposa, Edith, tem a recusa registrada na tela. O esforço de pesquisa é o forte do filme – mas isso gera, necessariamente, uma melhor compreensão de quem foi Raul?

Talvez a declaração mais importante venha da pessoa que mais mede as suas palavras, Paulo Coelho. O escritor, parceiro de composição de Raul na fase mística, nos anos 1970, diz que "Raul é mito" e seria, portanto, impossível biografá-lo, porque "não se conta a história de mitos". Não deixa de ser uma postura cômoda – Coelho foge de assertivas e é, dentre todos os entrevistados, quem mais teria a perder com revisionismos – mas o fato é que o escritor tem certa razão. À parte o clichê da metamorfose ambulante, Raul Seixas, como ícone, se define pela imagem que fazem dele.

Núcleos

É sintomático que os entrevistados se comportem como se integrassem núcleos: há os anglófonos (os familiares que hoje vivem nos EUA), os anglófilos (os fãs de rock, os motoqueiros easy riders), os malditos (os satanistas, os hippies que pararam no tempo), os fãs/sósias e, claro, há os representantes da imprensa, sempre repetindo que o músico "tomava de assalto" as cenas em que se inseria (o que autoriza as reivindicações de cada um desses coletivos, que obviamente veem na popularidade de Raul uma forma de legitimar a si mesmos).

Walter Carvalho sabe que está fazendo um filme sobre o mito, por isso dramatiza episódios (o amigo visitando o fã-clube de Elvis, a empregada voltando ao prédio onde Raul morreu) para, nas reencenações, dar a esses momentos uma solenidade que esteja à altura do mito. Em certa cena, Carvalho toca para Lena, uma das ex-mulheres de Raul, uma fita para que ela conheça uma opinião do músico – mais uma construção de imagem que parte do cineasta. Raul – O Início, o Fim e o Meio não é muito diferente, no fim, dos entrevistados que dão seu testemunho da grandeza de Raul Seixas; o filme também quer um Raul pra si.

Sósias

Na tela isso acaba funcionando porque, afinal, o biografado tem na impermanência a sua principal característica. Raul foi o artista mais acessível da nossa linhagem de antropofagistas (ele dizia não roubar, mas "desapropriar" o estilo e as músicas de Elvis, Bob Dylan, Luiz Gonzaga), e a admiração de Caetano Veloso, visível no filme, é uma prova disso. Que a imagem do homem desapegado – que amou muitas mulheres e alavancou as carreiras de seus parceiros – tenha também algo de trágico só intensifica o mito.

É por isso que há tantos sósias. Poucos ícones populares permitem, como Raul Seixas, que a apropriação de sua imagem seja também uma forma de autenticidade.

Fonte: Omelete