Crimes da ditadura: hoje, os bravos venceram
Os dois últimos dias foram marcados pelo horror que vazou dos porões da ditadura, que se encontra em polvorosa diante da possibilidade da Comissão da Verdade se estabelecer. São informações colhidas pelos jornalistas que entrevistaram o verme Cláudio Antônio Guerra, delegado do DOPS do Espírito Santo, refugiado na aposentadoria que o Estado conivente lhe premiou, sobre o desaparecimento de presos políticos.
Por Milton Pinheiro
Publicado 04/05/2012 21:25
Não estou preocupado se a confraria do crime matou o comparsa, Sérgio Fleury. Estou indignado pelo conjunto das informações que esse celerado, Cláudio Guerra, passou. São crimes contra a humanidade, são manifestações de bestialidade organizada pela classe dominante para manter os seus privilégios.
Hoje, 3 de maio, acordei com o compromisso de encontrar camaradas: homens e mulheres, na frente do ex-prédio do DOI-CODI na Rua Tutóia, para fazermos uma manifestação cobrando punição para os criminosos da ditadura burgo-militar de 1964.
Marchei para o ponto marcado, fazia frio nas cercanias do Ibirapuera e o dia estava cinzento. Lá estavam jovens indignados, ex-presos políticos que sobreviveram ao massacre da ditadura, e militantes. Ouvimos depoimentos dos sobreviventes do “porão do inferno”, visitamos o fundo do prédio onde muitos foram martirizados e foram assassinados, mais de 50 heróis do povo brasileiro, entre eles, os comunistas Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
A manifestação prosseguiu, os nomes dos bravos lutadores assassinados foram levantados, e tal qual a lança do guerreiro, o brado forte dos presentes cortou o vento gelado e fez surgir o sol entre nós. Um-a-um, o nome dos mártires foi saudado pelo grito forte de “presente, agora e sempre”.
Entre tantos nomes saudados pela memória dos presentes, bravos homens e mulheres, um, ecoou pelo pátio da delegacia e adentrou o meu pensar, “Nestor Veras: presente, agora e sempre”. Mas em tempos de combate, onde a terra ainda é tingida de sangue no Brasil, quem é esse homem que lutou ao lado dos trabalhadores e pelo futuro, entregou a sua vida?
Nestor Veras, líder camponês, nasceu em 19 de julho de 1915, em Ribeirão Preto, São Paulo. Era dirigente do CC do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e encarregado do trabalho no campo. Foi dirigente da ULTAB e da CONTAG, fundador e editor do jornal Terra Livre. Ao lado de Francisco Julião e Alberto Passos Guimarães, organizou o Congresso Camponês que ocorreu em Belo Horizonte, em 1961. Cassado pelo AI-I foi condenado a cinco anos de cárcere pela LSN – lei de segurança nacional, passou a viver na clandestinidade, mesmo tendo uma companheira e cinco filhos.
Esse bravo comunista foi preso em abril de 1975, quando passava na frente de uma drogaria, em Belo Horizonte. Estava desaparecido até ontem, quando ficamos sabendo, via um representante da escória da ditadura, que Nestor Veras “tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia, na verdade dois, um no peito e outro na cabeça. Estava preso na Delegacia de Furtos em Belo Horizonte. Após tirá-lo de lá, o levamos para uma mata e demos os tiros. Foi enterrado por nós.”
Após ter participado da manifestação, pela tarde fui para meu rotineiro trabalho de pesquisa no arquivo do Centro de Documentação e Memória da UNESP, o CEDEM. Lá encontrei um jovem estudante da UNIFESP que trabalhava com um conjunto de caixas do arquivo que continham informações da luta camponesa e da reforma agrária no Brasil, todas com o nome de Nestor Veras. Examinei as caixas com os documentos e encontrei a presença do dirigente camponês em tudo: textos, recortes de jornais, artigos na Voz Operária, congressos, assembléias, conferências, resoluções, informes, análise sobre as lutas dos trabalhadores do campo e da cidade. Esse foi o camponês que pensou o Brasil e lutou pela revolução socialista. Nestor Veras, homem simples da classe trabalhadora que teve um texto seu, colocado em um livro da Brasiliense por Caio Prado Júnior. Homem de combate, mas que encontrava tempo para tocar clarineta para os filhos.
Comovido diante daquela cena, pude então compreender que os bravos que tombaram, de forma desassombrada, pelos interesses dos trabalhadores brasileiros, venceram. Eles venceram o silêncio da repressão e a conivência do Estado, venceram o luto cínico das instituições e o papel asqueroso da imprensa burguesa. Eles venceram, porque estão presentes na vontade de saber da juventude, venceram porque marcham ao nosso lado na luta sem trégua pela revolução brasileira.
Hoje, mais do que nunca, os bravos venceram!
E nós, militantes em defesa da humanidade saberemos, quando chegar o momento, honrar o compromisso feito por Carlos Danielli (*) (momentos antes de ser assassinado) ao escrever com o líquido vermelho das suas veias nas paredes do DOI-CODI: “este sangue será vingado”. Afinal, “por nossos mortos nem um minuto de silêncio, toda uma vida de combate”.
(*) Nota da redação: Carlos Danielli, assassinado sob tortura em 31 de dezembro de 1972, no Doi Codi de São Paulo, por uma equipe comandada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Danielli foi membro do Comitê Central do PCdoB e editor do jornal A Classe Operária.
Milton Pinheiro é historiador, militante comunista, professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), colunista do jornal Brasil de Fato e autor/organizador, entre outros, dos livros 140 anos da Comuna de Paris (São Paulo, Expressão Popular, 2011) e Caio Prado Júnior: história e sociedade (Salvador, Quarteto, 2010).