O olhar de Spike Lee sobre a questão racial no Brasil
O cineasta americano Spike Lee, 55 anos, se surpreendeu com a primeira de suas constatações sobre a sociedade brasileira: a ausência de negros na mídia. O diretor, que veio ao Brasil filmar e entrevistar personalidades brasileiras para seu filme "Go Brazil go", falou com gente, filmou acontecimentos, como a votação do STF sobre as cotas raciais e até cutucou: para ele, seu país, os Estados Unidos, seriam mais avançados na busca pelo fim do racismo.
Publicado 02/05/2012 16:22
foto: Agência Estado
O assunto deve ter destaque no seu longa, que conta com a consultoria do escritor Fernando Morais.Segundo o cineasta, o filme “será sobre o novo Brasil, sobre como o país se transformou numa potência emergente”. Ele disse ainda que seu trabalho é “achar uma história e mostrar o que se passou para que o Brasil se transformasse."
"Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são louros de olhos azuis", disse Lee em entrevista coletiva realizada em São Paulo, enquanto esteve no Brasil alguns dias da última semana de abril.
Spike Lee também esteve em 1995, quando dirigiu o clipe de "They don't care about us", de Michael Jackson, no Morro Dona Marta, no Rio, e no Pelourinho, em Salvador.
"Meus ancestrais foram libertados em 1865 e, no Brasil, a escravidão foi abolida em 1888. É uma diferença pequena, mas se compararmos a evolução de afroamericanos e de afrobrasileiros, estamos 20 anos à frente", comparou o cineasta Lee, lembrando que a população negra brasileira chega a mais de 50%.
O cineasta chegou ao Brasil na segunda-feira (23) e voltou para os EUA no início desta semana. Esteve no Rio, em Brasília e em São Paulo, entrevistando cerca de 30 pessoas. Após visitar o AfroReggae na sexta-feira, Spike Lee participou de um almoço com os atores Lázaro Ramos e Wagner Moura no sábado à tarde.
"Ele parecia mais interessado em investigar, conhecer e descobrir o Brasil e as pessoas do que fazer objetivamente um filme sobre algo", contou Ramos.
com Neymar pediu até autógrafo ao jogador / foto: reprodução do Twitter
No mesmo dia, Lee visitou o Centro Afro Carioca de Cinema, na Lapa, onde entrevistou seu fundador, Zózimo Bulbul, e se encontrou com artistas negros.
"A falta de negros na mídia o deixou inquieto, então ele queria saber sobre o lugar do negro na sociedade e sobre a posição do Centro no cinema negro do Brasil", revelou Bulbul.
Políticos como o ex-jogador de futebol e agora deputado Romário, músicos como Caetano Veloso e Gilberto Gil, Criolo, além de artistas plásticos como osgemeos também foram entrevistados.
"Um documentário é tão bom quanto as pessoas que você entrevista", falou Lee, que completou: "Sem as pessoas certas, não há nada a ser feito, não importa o quão bom cineasta você seja. A seleção de entrevistados é um recorte amplo da sociedade brasileira. Ainda não entrevistei Lula e Dilma Rousseff, mas espero entrevistá-los quando voltar".
O cineasta se encontrou, no Palácio do Planalto, com a presidente Dilma Rousseff, que se comprometeu a conceder uma entrevista a Lee. Entre as personalidades na lista do diretor ainda estão os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva e os jogadores de futebol Pelé, Ronaldo e Neymar.
Bom sinal
O diretor recebeu como um bom sinal o fato de ter chegado em Brasília na última quarta-feira, quando o Supremo Tribunal Federal iniciava o julgamento sobre a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades. Com uma câmera na mão, misturou-se às pessoas que protestavam contra e a favor, e no dia seguinte entrevistar o ministro Joaquim Barbosa em seu gabinete na tarde de quinta-feira (26).
Spike Lee com o ministro Joaquim Barbosa / foto: G1
"Acredito em destino. Poucas coisas na vida são coincidência", disse, comemorando a decisão favorável à política de cotas.
"Eu digo, não vamos parar por aí. Vamos levar isso à mídia, ao mercado de trabalho. Há em todo o mundo uma má interpretação do sistema de cotas. Alguns acreditam que elas serão ocupadas por gente sem qualificação. Não é nada disso. Pessoas qualificadas serão selecionadas para ir à universidade", falou.
Nova visita
Lee brincou que o filme não foi encomendado pelo Congresso, portanto, não pretende esconder as mazelas brasileiras ou louvar as qualidades do país.
"Será um filme balanceado. Mas observo que as pessoas são muito otimistas com o futuro no Brasil. Querem que o crescimento econômico traga ascensão social e que a distância entre pobres e ricos, que ainda é horrível nos EUA, diminua aqui".
Lee fez questão de retornar ao Morro Dona Marta e posar ao lado da estátua de Michael Jackson. Sua próxima viagem ao Brasil será em julho, e ele planeja incluir depoimentos de anônimos.
"Quando as pessoas virem o filme, terão uma compreensão tão boa quanto possível", assegurou. "Terei muito trabalho, porque não sei como mostrar um país, este país, neste momento particular de sua história, em apenas duas horas", afirmou.
Da redação com O Globo