Cap. XXII – Do Recrutamento de Chica
Chica não foi recrutada, recrutou-se. Na segunda à noite, os quatro se juntaram para o desfile da Flor da Lira. O bloco deslizou no largo, na frente do Bonfim. Assistiram de pé na calçada da igreja. O frevo de bloco amaciou censuras, deu licença para a execução de obras vistas em sonhos. O ano fora vazio de faturas.
Publicado 27/04/2012 20:53 | Editado 13/12/2019 04:02
Carregando uma mistura de cachaça com sumo de araçá, num cantil; e patas de caranguejo trazidas da cozinha da tia de Chica. Conversando com a ajuda do frevo sem estridência, giraram na calçada. Chica bebera cerveja, tomou das mãos de Maújo o cantil e bebeu. Chamou os três para trás, puxou-os para a porta recuada de acesso à torre.
– Quero entrar para o Partido!
– Que Partido?!
A desfaçatez de Gertrude irritou-a.
– Tenho a graça de Ogum, estou prenha e tenho um macho que é meu e do Partido. Quero entrar para o Partido!
– Como você descobriu o Partido? – Gertrude insistiu no embaraço.
– Se eu fosse do Distrito vocês estariam presos. Como eu descobri… Ouvindo a conversa de vocês, ora bolas!
Maújo só levantou o dedo. Chica não queria perder a chance de ser ouvida pelos três ao mesmo tempo, sem o socorro de batuques.
– Nunca falamos de Partido na sua frente.
– Li uns papéis de Maújo. Ele deixou na escrivaninha. E chega de me tratar em banho-maria. Não suporto isso.
O frevo, convenceram-se, era gerido pela batuta de um orixá.. Os quatro ouviram uma mistura de orações com prédicas subversivas. O som do alaúde espalhou notas de alforria, rebentando a corrente que os impedia de se integrar com o povo, mesmo depois do carnaval. O bloco seguiu, abrigado por um cordão humano; seguiu mantendo a pureza das notas. Meio bêbados, os quatro fruíram o recobro da consciência livre dos limites que cada um se impusera.
Seguiram juntos, as mulheres no meio; Maújo e Caetano, um em cada ponta.
Maújo, crispado, gritou:
– Você vai parir no Alto da Sé, numa roda de capoeira. Faremos biombos de lençóis vermelhos, como o sangue que escorrerá de suas entranhas. Uma negra de mãos retintas, sua parteira, levantará o nosso filho sobre os lençóis. O primeiro choro será ouvido por um destacamento de capoeiristas.
Tocarão o berimbau. A negra dará o primeiro banho da criança ali mesmo, no maior anfiteatro negro de Olinda! Muitas negras gritando! Macucoê!… Macucoê!…
– Doido.
Outra vez na casa de Bajado.
– De São Bajado! – disse Caetano.
A filha do velho ligou a radiola velha. Ouviu-se Casinha Pequenina; a música ajustou-se ao acanhado
reboco das paredes. Caetano discursou, elogiou a origem cafuza de Bajado, os tipos de seus quadros:
– … caburés alegres, donos de cada centímetro do calçamento.
Bajado rindo, tolerante. Dona Biu perguntou se queriam comer.
– O que tem na panela? – quis saber Chica.
– Moqueca de carapeba.
Mais cervejas. Bajado na espreguiçadeira. Dona Biu em pé, num canto, acanhada.
Cansada, suada, Chica sentou numa cadeira. As filhas de dona Biu levaram-na para o quarto, onde deitou sem saber se acordaria. Maújo saiu com Caetano e Gertrude.
– Está se saindo um novato ao lado de Chica, Maújo. Ela recrutou-se, perdeu a paciência com você.
Recrutou-se no Bonfim, ouvindo frevo. Deixou você com a calça nas mãos. Não demora e ela o matricula na escola do pai-de-santo. Será um aprendiz de feiticeiro! – Gertrude não perdera o costume de portar o diabo a tiracolo. Não se vingara do esbulho. Depois do discurso incomum de Maújo, sentiu-se livre para fazer uso do latim de sua preferência.
– Não seria tão ruim assim. Depois de um ano, teríamos trinta capoeiristas na escola do Partido. Trinta negros de Angola na base do Guadalupe! O que me diz dessa possibilidade?
– Não perdeu a mania de bravatas. Fala em possibilidades. Quero ver faturas.
– Tenho uma idéia. Subimos à Sé. Teremos o primeiro contato com os capoeiras. Conheceremos o perfil de cada um, do líder. Saberemos que qualidades o líder tem para liderá-los.
– Subamos todos – gritou Caetano.
– Tenho a impressão de que somos um exército brancaleônico – suspeitou Gertrude.
Cúmplice, a multidão ocupou a Sé; estranhos entre si, falando como velhos conhecidos. O céu deu-lhes abrigo com pingentes luminosos. Só tinham olhos para si, revolvendo os sentidos, contidos noutra circunstância.
Os três não encontraram os negros capoeiristas.
A traficância buliçosa se fazia sem rebuços. Nada sob as pedras de cantaria, nas tapiocas. Liamba ou cocaína, tiravam-nas dos bolsos. A Veraneio não se atrevera, não se atrevia a subir as ladeiras.
– Tenho uma idéia.
– Continua com idéias, Maújo – Gertrude não se despregou do diabo.
– Vamos visitar o babalorixá. É um preto esnobe, afeminado, mas nos receberá com atenção. Já conversamos algumas vezes. Chica me apresentou. Não se surpreendam com sua aparência. Deve estar bebendo.
– Tomemos o castelo de assalto! – aventou Caetano.
No Palácio de Edu a pouca multidão se juntara na frente. O pai-de-santo, em cima, numa janela, conversando, segurando um copo; dali tinha o controle das visitas. Viu Maújo, desceu com um aceno.
Na sala de entrada, uma mesa coberta com toalha azul florada, a imagem de Iemanjá sobre as águas. Um ruidoso grupo de negros bebendo em volta. Edu vestira-se com uma túnica da mesma cor, dos ombros aos pés; nada na cabeça, a não ser o cabelo amarrado em tufos amarelos, recém-acobreados. Os olhos vermelhos, de quem bebera todo o dia. Suado, deu um abraço em Maújo.
– E Chiquinha? – quis saber.
– Está no céu.
– Como assim?
– Dorme sob a proteção de São Bajado. Não agüentou o tranco e arriou.
Serviram-nos de cerveja.
– E a barriga de Chiquinha?
– Ela não reclama de nada, vive tendo desejos. Acorda de madrugada para comer ostras cruas.
– Ai de quem contrariar uma filha de Ogum. – quis atraí-los para os mistérios, para as vantagens do candomblé.
Maújo desconversou, pressionado pela vigilância de Gertrude, pela catequese do pai-de-santo.
– E as eleições?… Tem opinião sobre algum candidato?
– Entendo quase nada do assunto. Um ou outro candidato aparece aqui para pedir votos. Finjo que vou ajudar para não contrariar ninguém.
– O secretário de Educação já o procurou? O que pensa dele?
– Não me procurou. Mas não gostei da birra que ele teve com Francisquinha. Que despropósito! Não tenho nada contra as velhas que acompanham a procissão. Também tenho gente devota de meus santos. Mas Chica não fez nada contra o secretário, só faz as suas estátuas para vender. Quem achar feio que não compre, não olhe. Mas proibir o trabalho!… Ah, não…
Ouviu-se um som de maracatu.
– E as cerimônias?… Têm mais gente que na Sé?
– Onze cerimônias por ano, festas de orixás. A primeira foi em janeiro, de Iemanjá. Este mês não temos nenhuma, nem em março. Só em abril, até dezembro. Não tenho do que reclamar. O salão está sempre cheio. Quando começa o batuque, é como um encantamento que desce das matas, do mar, do céu para o salão. Falar nisso, quando vai ser o casamento de vocês aqui no palácio?
– Não conversei isso com Chica.
– Ela vai lhe falar. Não tenha dúvida.
– Nós já estamos casados.
– Mas falta a bênção do santo. Chiquinha é filha de estima de Ogum, neta do pai da existência.
As negras, algumas, gritaram:
– Macucoê!
– Chica sabe o que quer, sabe o que faz – emendou Maújo.
– Sabe porque tem o seu guia.
– Você é um pajé querido de sua gente. O arcebispo não o assusta?
– Quem pode me assustar é Zé Pelintra, e esse eu sei como tratar, sei do que ele gosta para não atiçar sua ira.
– Jogue-o contra o secretário.
– Só se Chiquinha pedir.
– Chica não planeja o mal para ninguém, nem mesmo para o secretário. Ela luta, reage, mas não atira pelas costas.
– Ela ainda vai ter o seu próprio terreiro, vai ser a matéria da Yara num salão azul-marinho.
Caetano e Gertrude ouvindo impotentes. O babalorixá impressionara-os, parecendo um vodum raivoso, soltando fogo nos narizes, na resina descendo dos olhos.
Despediram-se malogrados. Maújo sem idéias. Gertrude sem o diabo.Sentaram no chão, encostados na amurada da Sé. Via-se o carnaval de Recife, abjurado pelos três por causa da densidade de polícias.
Restou-lhes observar o comportamento da multidão familiar a seus juízos. A multidão tão estranha aos sentidos aflitos dos três. Olharam-se confusos, ponderando o perfil de moços e moças, alheios à esplanada própria a atos de contestação. Sós no meio da desordem, puseram as mãos nos bolso para reabri-las vazias. A teoria de Marx, benéfica às multidões, caíra do bolso da algibeira.
– Droga! – resmungou Maújo.
– Estamos à beira de uma crise – Caetano esticou o pescoço para trás – e do precipício.
– Sufocado pelo povo que amamos. O efeito reverso da ideologia de nosso uso. Não pode ser verdade! – Gertrude não tinha o diabo para acudir-se.
Desfaleceram. A lembrança do pai-de-santo deu-lhes repulsa. Alguém mencionou Bajado. Riram. Alguém os brindara com a lembrança de Bajado. O velho dormia vazio de apreensões, com a morte chegando sem surpresas. Cumprira o ofício sem pensar em outro, dando vida a todo episódio que vira nas ruas. Morreria sem forças porque as deixara nas telas, sem indício de incompletude.
Confortaram-se, por último, nas notas remotas da orquestra da Flor da Lira.