Hugo Cortez: Lembranças do golpe fracassado na Venezuela
Houvera prometido a mim mesmo um dia escrever sobre os fatos abaixo, deixando-os registrados para a posteridade. Agora, que estamos completando 10 anos dos mesmos, enfim, cumpro a promessa.
Por Hugo Cortez
Publicado 13/04/2012 10:36
Sexta-feira, 12 de abril de 2002. Por volta das 11 horas da manhã, no meu trabalho, entro na sala de uma colega, Helenilda, para tratar de assuntos relacionados a um programa institucional pelo qual estávamos responsáveis. Ela, então, sabedora do meu acompanhamento da vida política latino-americana, me informa, preocupada, que um golpe de Estado está em andamento na Venezuela e que o presidente Hugo Chávez fora deposto.
Eu ainda não tomara conhecimento do golpe em si, embora suspeitasse, por conta do noticiário dos últimos dias, que algo do tipo estava sendo gestado naquele país. O golpe havia sido deflagrado havia pouco tempo. Como Helenilda tomara conhecimento dele? Sinal dos tempos: pela Internet! Desde o início da manhã ela vinha recebendo na sua mala eletrônica mensagens com informações sobre o fato enviadas pelo sociólogo venezuelano Edgardo Lander, professor da Escola de Sociologia da Universidade Central da Venezuela, a quem conhecera durante evento acadêmico. Ele, argutamente, formando uma rede com outros intelectuais e jornalistas de seu país e do exterior, desencadeara uma operação de resistência ao golpe mediante a difusão de informações pela Web sobre a verdade dos fatos e a resistência democrática popular. Em contraposição à ofensiva de validação do movimento deflagrada pela mídia patronal internacional. Catavam nos sites da imprensa alternativa do continente (La Jornada, Granma, etc.) e com outros resistentes matérias sobre o tema e enviavam-nas em suas mailing lists. Acertei com minha colega que ela me repassaria todas as mensagens por ele enviadas, para que eu pudesse ter uma ideia do que estava acontecendo.
Envolvido em minhas tarefas ordinárias de trabalho, sem tempo para outras coisas e ainda sem computador domiciliar, imprimi os textos que me haviam sido repassados e levei-os para lê-los em casa após o expediente. Dirigindo, escuto pelo rádio do carro, no noticiário da rede CBN das 18h30’, a locutora anunciar que Chávez houvera renunciado e deixara seu país. Minha reação imediata foi comentar comigo mesmo, indignado: “Como pode ter ele renunciado sem sequer tentar uma reação? Era uma obrigação moral sua para com seu povo!” E fiquei a pensar no impacto arrasador que o ato teria sobre as forças progressistas e democráticas latino-americanas. Mas, de súbito, pensei: “Será isto verdade? Não será mais uma mentira da nossa grande mídia patronal? Não dá para confiar nela. A verificar.”
Lá pelas 21h, comecei a ler as matérias enviadas por Edgardo Lander. Uma delas, publicada pelo cubano Granma à tarde, trazia entrevista com uma das filhas de Chávez em que ela, peremptoriamente, afirmava que seu pai não renunciara, não renunciaria e encontrava-se preso num quartel em território venezuelano naquele momento. Como se provou posteriormente, isto era rigorosamente verdade. A CBN, rede nacional de rádio dedicada exclusivamente à notícia (“a rede que toca notícia”), integrante do poderoso Sistema Globo de Comunicação, dotada de abundantes recursos para obter informações que signifiquem notícias, simplesmente desconhecia tal afirmação. Para ela estava resolvido: Hugo Chávez renunciara e não era mais presidente da Venezuela. Para ela não existiam dúvidas, checagens, fontes de informação alternativas, a Internet e seu poço de riquezas, nem mesmo o simples telefone (uma ligação DDI) para ela tinha validade naquele momento. Na verdade, para ela valia o que fora combinado antes do golpe: a mídia patronal do continente, comandada pela Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), organismo fundado sob inspiração do governo norte-americano e sediado em Miami, formaria uma barreira de desinformação em torno ao atentado à democracia e à soberania nacional venezuelana, de maneira a contribuir de forma importante para o seu sucesso. Papel desempenhado com rigor por nossa grande mídia. Os noticiários daquela noite nas redes de TV brasileiras confirmam a renúncia. Recado implícito a todos nós: “Nada mais há a fazer. Portanto, baixem as armas e os braços. Rendam-se!” Induzem à desmobilização da resistência. Subrepticiamente.
No sábado 13 e no domingo 14, toda a grande mídia nacional brasileira (rádios, TVs e jornais) persistiu na versão da deposição de Chávez. Fiquei à sua mercê por dois dias, barrado na minha pretensão de obter informação objetiva do que se passava no país vizinho. Nada de novo lá: Chávez estava deposto. A barragem desinformativa foi exemplar: o presidente venezuelano foi reconduzido ao cargo ainda no sábado, mas toda a grande imprensa brasileira desconheceu o fato nos seus noticiários do mesmo dia e do domingo. Na segunda-feira, pelo menos o Jornal do Commercio, do Recife, ainda publicava matéria (recebida de agência nacional) considerando-o deposto. Um retardo que, como quem se informou devidamente sobre o episódio do golpe sabe, não deveu-se à incompetência ou desleixo na cobertura jornalística, mas a uma tática adrede formulada pela grande mídia patronal continental coordenada pela SIP de, cercando a Venezuela com o silêncio, propiciar tempo à consolidação do novo governo golpista.
Faltou combinar com o povo venezuelano, que foi às ruas defender a legalidade, a democracia e a independência do seu país, em contraposição a uma elite burguesa reacionária, antipopular e entreguista. Faltou combinar com a grande maioria das forças armadas venezuelanas, que insurgiu-se contra a traição de um punhado de altos oficiais autoritários e elitistas. Somente na segunda-feira 15, a partir do final da manhã, é que a grande mídia brasileira rendeu-se ao papel de noticiar, informando sobre a derrota dos golpistas. No dia seguinte, na Av. Guararapes, centro do Recife, pude saborear com asco e ironia a edição semanal da Veja com matéria de capa anunciando a queda de mais um ditador “populista”. A vergonha pelo malogro e o desapego à honestidade informativa da revista são tamanhas que seu site, tempos depois, substituiu (até hoje) a capa real desta edição por uma falsa, tamanha a “barriga” cometida.
Do episódio creio que restaram pelo menos duas constatações fundamentais. A primeira: definitivamente, a grande mídia do continente mais uma vez confirmou seu engajamento histórico numa cruzada contra as forças democráticas, progressistas e patrióticas latino-americanas, em especial aquelas que consigam ascender ao poder de Estado. Não poderia, portanto, continuar como fonte exclusiva ou dominante de informação pública, pois carece de isenção e compromisso com os fatos. Está sintonizada com interesses que não os dos setores majoritários das populações.
A segunda: a partir de então, uma nova frente de combate se consolidara na batalha democrática na América Latina – a Internet. Pela primeira vez, em escala internacional, ela cumpriu papel relevante num confronto político. Louvemos Edgardo Lander e seus companheiros de campanha, que souberam enxergar sua utilidade de maneira inovadora. Felicitemo-nos por não estarmos mais reféns da mídia do capital.