Farc: integração da AL passa por pacificação da Colômbia
Nos últimos dias temos acompanhado o processo político envolto na libertação dos últimos militares mantidos em cativeiro pelas Farc. Nesta segunda reportagem sobre a guerrilha mais antiga das Américas, o Vermelho tenta responder qual é o futuro do movimento – que anunciou a proscrição da prática de sequestro e ao que tudo indica, terá uma mudança em sua estratégia de luta – e como uma mudança de cenário na Colômbia poderá impactar o restante da América Latina.
Por Vanessa Silva
Publicado 21/03/2012 20:07
No último dia 10 de março, o grupo Colombianos e Colombianas pela Paz saudou a aceitação, por parte do governo de Juan Manuel Santos e das Farc, da intermediação do Brasil e da Cruz Vermelha no processo de libertação dos sequestrados em poder da guerrilha. No domingo (18), no entanto, Santos anunciou que não acatará as condições propostas. Isto é, não permitirá a visita de grupos humanitários às prisões onde há guerrilheiros detidos.
Apesar do entrave colocado pelo governo colombiano, a negociação para a entrega dos detidos tem avançado. Nesta terça-feira (20), representantes do Brasil, da Cruz Vermelha, do governo da Colômbia, e integrantes do Colombianos e Colombianas pela Paz, assinaram o protocolo que será seguido para a libertação dos prisioneiros em poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O processo terá inicio na próxima segunda-feira (26).
O governo colombiano, no entanto, sinalizou que não está de acordo com a proposta da guerrilha. Há algumas semanas, a senadora e porta-voz do grupo Colombianos e Colombianas Pela Paz, Piedad Córdoba, recebeu permissão para que o grupo Mulheres do Mundo pela Paz visitasse os cárceres em que estão os guerrilheiros aprisionados pelo governo. Essa foi a condição imposta pelas Farc para a libertação dos sequestrados. Mas o ministro da Justiça, Juan Carlos Esguerra, declarou neste domingo (18) que a permissão foi retirada. Ele argumentou que a missão não era do “tipo humanitária, mas para falar de um eventual processo de paz”.
À Telesur, nesta quarta-feira (20), a ativista reafirmou que o grupo colombiano vai “continuar seu trabalho humanitário e vai insistir que o governo garanta a visita aos membros das Farc que se encontram presos”. Em declarações à agência argentina Telám no último domingo (18), Córdoba reiterou que as integrantes do grupo Mulheres do Mundo pela Paz, chegarão à Colômbia no final de março e disse esperar que o governo dê permissão para que elas visitem as detenções.
Para o economista, cientista político e coordenador da cátedra e rede ONU-Unesco de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen), Theotonio dos Santos, esse tipo de entrave faz parte do processo de negociação. Ele esclarece que o principal problema para o governo de Juan Manuel Santos nesta questão é “sair do acordo sem favorecer politicamente as Farc”. Então, o governo “tem que ganhar politicamente e da parte [da guerrilha] é a mesma coisa. Ela quer sair do acordo de forma que tenha garantias democráticas mínimas”.
“A população colombiana quer paz, não aguenta mais essa guerra”, conta Socorro Gomes, que viajou recentemente a Bogotá para participar do fórum “Colômbia entre Grades”, em que foi discutida a questão dos “presos políticos e de guerra” no país.
Sobre o possível apoio dos colombianos à guerrilha, Theotonio observa que a população está “influenciada pela propaganda, que é muito forte. O apoio ao [governo de Álvaro] Uribe [2002-2010], inclusive, mostra que a tentativa de resolver o problema pela via da confrontação teve um apoio social importante” até o momento.
A difícil saída
Qual é o futuro possível para as Farc? Esta é questão de fundo desse processo pelo qual a Colômbia está passando. Sobre o assunto, Socorro, Theotonio e o jornalista e diretor do Espaço Cultural Diálogos do Sul, Paulo Cannabrava Filho, são unânimes: à guerrilha “só resta o caminho do processo político”, resume Cannabrava.
De acordo com Theotonio, se os insurgentes voltarem à vida política “terão um peso significativo, não necessariamente majoritário, mas grande”. As Farc “evidentemente não têm interesse de manter, nessa conjuntura toda, um movimento armado e terá muito mais condições na medida em que ela possa se converter em um movimento político aberto e disputar politicamente o destino do país”.
Mas, para ele, é justamente o fato de a guerrilha ter condições de tornar-se um movimento político significativo que faz o governo recuar, mesmo sendo o fim do conflito armado um trunfo político importante para o governo de Santos.
Um aspecto importante na política colombiana é que o índice de abstenção das eleições é alto. Em 2010, quando Santos foi eleito como sucessor de Uribe, 57% do total de eleitores deixaram de comparecer às urnas. Para o coordenador do Reggen, “não se sabe exatamente porque” esse setor se abstém, mas esse número dá a “idéia de que grande parte não está de acordo com o jogo eleitoral pela ausência das Farc”.
Uma Colômbia progressista
A Colômbia faz parte da “liga reacionária do Pacífico”, que segundo o intelectual argentino Atílio Boron foi construída por Washington para neutralizar as tentativas de integração regional. O grupo é formado por México, Colômbia, Chile e Peru. Borón reitera, no entanto, que a chegada de Ollanta Humala ao poder no Peru, “modifica sensivelmente o tabuleiro geopolítico regional num sentido contrário aos interesses” dos EUA. “Por enquanto, a liga reacionária do Pacífico, pacientemente construída por Washington para neutralizar a União das Nações Sul Americanas (Unasul) e Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), (…) perdeu uma de suas duas peças vitais para o controle da Amazônia.”
Theotonio, no entanto, esclarece que a tendência conservadora da Colômbia não é cultural como podem pensar muitos de nós. Segundo ele, a Colômbia poderia ter uma evolução governamental até mesmo progressista. “Não é difícil que se produza” uma maioria assim, porque a “esquerda vem conquistando votações expressivas nas últimas eleições. (…) Se de repente as Farc entram no jogo político e atraem essa massa que está fora da participação política, aí a coisa começa a mudar. (…) Se ela for para o jogo político, um setor muito grande vai apoiar e você poderá criar um contexto político favorável para uma transformação mais profunda”, acentua.
Sobre essa transformação, Socorro opina que “depende da pressão e da luta tanto dos povos colombianos, quanto das entidades internacionais”. Segundo a ativista, “as Farc estão demonstrando que querem o diálogo”, mas é preciso “construir essa saída”. Segundo ela, o momento é propício porque “os países da região estão apostando na paz em nosso continente”, diz.
“Se é verdade que a guerrilha está pressionada a fazer um acordo político, os liberais colombianos [oposição ao governo de Santos] também estão pressionando. E estão buscando acordo com os liberais americanos. De outro lado, tem toda a América Latina buscando e sendo favorável a um acordo político. Então a situação para manter a política de confrontação que o Uribe tinha não é mais favorável. Eles têm que chegar a um acordo”, esclarece Theotonio.
A liderança brasileira
Entre esses países que apóiam a solução pacífica para o impasse, o Brasil se destaca como um dos mais pró-ativos, estando inclusive à frente do processo de libertação dos últimos reféns em poder da guerrilha. Para Socorro Gomes, “isso demonstra a sinalização do governo brasileiro de seu compromisso com a paz e com a saída negociada”.
Quando questionado se esse interesse brasileiro está relacionado a um possível sub-imperialismo brasileiro, Cannabrava é taxativo: “o interesse do governo brasileiro é ocupar o lugar dos Estados Unidos. Então não é imperialismo. Acontece que os Estados Unidos atrapalham qualquer desenvolvimento da liderança brasileira”.
Os Estados Unidos
A presença e intervenção dos EUA no conflito da Colômbia são polêmicas. Para Theotonio, é provável que o “próprio governo americano tenha interesse em alterar as relações de setores norte-americanos com o tráfico na Colômbia, de forma que há condições favoráveis a um acordo”.
O partido Democrata, no poder nos Estados Unidos, está pressionado por sua base para não fazer acordos comerciais com a Colômbia e para exigir que haja um governo realmente democrático. Acontece que, na Colômbia, “líder sindical é morto, líder camponês é morto, jornalista é morto. Então isso afeta os movimentos sociais, como o sindicalismo norte-americano, por exemplo, que não admite uma situação desse tipo”. A pressão de setores dos EUA “talvez seja o motivo pelo qual Santos esteja buscando um caminho de acordo”, especula.
Então “não se pode colocar os Estados Unidos totalmente a favor da não incorporação das Farc. Eles gostariam de eliminar grande parte desse problema. Seria interessante para o partido Democrata conseguir isso”. Assim teriam “melhores relações com o sindicato, com os movimentos sociais, etc”. Isso inclusive, “fortaleceria o [presidente Barack] Obama, seria um ganho político para os democratas”, pontua o intelectual.
Colômbia e a progressista América do Sul
”Para o governo colombiano demonstrar que está em sintonia com o projeto de toda a América Latina, tem que aceitar a construção dessa saída política. E pra isso é preciso primeiro garantir a questão dos direitos humanos”, argumenta Socorro. A Lei de Vítimas e Restituição de Terras, em vigor desde janeiro deste ano, reconhece a existência de um conflito armado interno no país, mas “é preciso reconhecer que há presos políticos e presos de guerra para poder se encontrar uma solução”, complementa.
“Esse jogo político que Uribe estava manejando [o da confrontação] não tem condições de continuar. Não pode continuar. A menos que haja uma mudança na política em toda a região. Ele [Santos] tem que buscar sintonizar-se com uma política de centro-esquerda. Depois das eleições no Peru ficou mais claro que a aliança do Pacífico [proposta pelos EUA] não vai funcionar. (…) Eles têm que se ajustar a um quadro político que neste momento está favorecendo uma saída liberal, de centro-esquerda”.
Integração
“Para um projeto de integração soberana e com sentido de justiça e democracia, resolver o problema da Colômbia é estratégico. Ademais, os Estados Unidos tentam fazer da Colômbia o Israel do Oriente Médio. Essa questão da militarização da Colômbia ameaça todos nós. Todos os países da região”, sentencia Socorro.
Nesse sentido, Theotonio lembra a importância estratégica do país: “A Colômbia é a base de atuação [dos EUA] sobre toda a Amazônia”.
Especialista em América Latina, Cannabrava sentencia que “integração sem Colômbia não existe”. Segundo ele, “se nós somos bolivarianos”, o papel que o Brasil tem que cumprir é tentar a paz negociada no país vizinho. Esta repórter retruca: “mas o Brasil não é bolivariano…” Com um sorriso maroto, ele replica: “mas o povo é! Então esse é o papel que a gente tem que cumprir. A integração passa pela manutenção da paz”.