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Cap. XVI – Sob a lua mítica de São Jorge

Não escondeu a impaciência, Maújo. Queria que decidissem sobre Xisto à revelia. Incomodava-o o fato de que, enquanto o afastamento não fosse formalizado por opção própria ou expulsão por conduta imprópria, não poderia haver rompimento. O espectro de Xisto tratado como camarada… Essa agora!…

– Não temos outra saída a não ser esperar. Mas você deve conversar com ele, Caetano. – Emendou-se, Gertrude; emendou-se tirando os olhos de Maújo – É a pessoa certa. Com Maújo não haverá clima. Eu não devo ir, nunca tratei com ele assuntos pessoais, e chamaria a atenção chegar em sua casa de repente, sem nunca ter ido. Tem a mãe, a vizinhança. Caetano conhece toda a família dele.

Maújo olhou para cima, cismou Marx acenando para ele.

– Você tem trato, Caetano; é um caeté afortunado. – Maújo o brindou – Se não tiver trato, usará da borduna.

– Tenho receio é de bumerangues.

– Como assim? – quis saber Maújo.

– Quero dizer que será mais fácil emboscar o secretário com a luz do poste apagada.
– Estamos começando a nos entender…

Caetano, num mês, espreitou o Maconhão. Xisto não surgiu. Foi na sua casa, um sobrado com porão no Poço da Panela. Na varanda, a velha sentara-se numa cadeira de balanço, esperando a ceia preparada pela empregada. Podia ser um sobrado suntuoso, mas os degraus de cimento roídos, tijolos à mostra, davam conta do fim próximo. Pintura desbotada, janelas fechadas, não havia viração na sala, nos quartos.

– Boa noite.

A velha, depois do cumprimento, confinou-se no aposento vazio; não se acostumara a se mostrar viúva. Na sala, um velho, cego, com óculos de grossas lentes, sentado numa espreguiçadeira, a bengala estirada entre as pernas. Caetano não o conhecia, nunca o vira. A empregada desceu com ele ao porão, um só lance de escada de madeira, sem corrimão. A lâmpada com claridade morta deixando ver a porta em cujo interior, Xisto assuntava as perdas. Manchas escuras nas paredes, sebentas. A empregada bateu na porta. O ocupante vestiu-se. Ela mesma abriu, com a familiaridade dos vinte anos na casa; deu passagem a Caetano.

– Como está, Xisto?

– Bem… do meu jeito. – Descorado, olheiras, olhos fundos, os cabelos em desordem.

– Precisa tomar ar. Não vai resolver problema nenhum preso num porão.

– Descanso.

– O que mais tem feito?

– Leio.

– É alguma coisa. Mas pode criar traças, como seus livros.

– Passo o espanador sempre.

– Precisa passar o espanador em você mesmo. Abra esta janela, pelo menos. Tem lírios lá fora. Ainda cultiva plantas?

– A empregada rega as plantas. Levanto de manhã para olhar.

– Há muita folha seca no quintal, cobrem as plantas. Houve tempo em que você mesmo passava o ciscador.

– Serve de adubo. Quando há tempo, a empregada recolhe.

– E o velho lá em cima, quem é?

– Irmão de mamãe. Veio morar aqui depois da morte do velho. Também é viúvo.

Duas batidas no lado de fora da porta. A empregada entra sem olhar para os dois, tem numa das mãos uma bandeja com desenhos florados; em cima, duas xícaras com chá, chá de cidreira. Vivia entorpecido, Xisto, e bebia cidreira.

– Tem pressão alta?

– Não. Relaxo com o chá.

– O que pensa em fazer da vida?

– Para logo, não decidi nada. Talvez voltar à faculdade no próximo semestre.

– E a militância?

– É página virada. Não contem comigo… E não me contem o que estão fazendo.

– Está vivendo uma crise. Talvez mude de idéia.

– Não acho provável.

– Está afastado do Partido ou de Maújo?

– De todos. A rotina é tediosa. Já recrutaram Chica?

– Está perguntando o que não devia, já que não quer que lhe contem nada. Mas Chica não é militante.

Ainda não. Teria sido se fosse puxada por ele com um cetro de afoxé. Chica, pensou, encarna a mística dos orixás com a verdade revolucionária. Xisto teve vontade de chorar, abrir o coração ecumênico. Tinha somente uma imprecisa esperança de repor as fantasias no lugar. Levantou-se para ir ao banheiro. Caetano observou a decoração do quarto. Na escrivaninha, uma moldura pequena, virada, junto a um maço aberto de Gauloise. Levantou-a, viu o retrato de Chica, preto e branco, ao lado de Xisto. Com um barrete branco na cabeça, ela; ele, com patuás no pescoço, sobre a camisa branca de manga comprida. Os dois na calçada da Sé, sob a lua mítica de São Jorge, Oxossi.