A quarta frota e os senhores da guerra
“A guerra, no século 21, poderá não ser tão sangrenta quanto foi no século passado. Mas a violência armada, criando sofrimento e perdas desproporcionais, continuará onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica – em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota”. Essa foi a conclusão proposta pelo historiador Eric Hobsbawm, no ensaio Guerra e Paz no século 20, que foi publicado no jornal britânico “The Guardian”, em fevereiro de 2002.
Por Joanne Mota*
Publicado 09/03/2012 10:20
Uma década depois, essa afirmação nunca pareceu tão atual nestes tempos de imperialismo agressivo, que tem nas potências belicistas mundiais sua maior fonte de poder. A militarização norte-americana se converte como o maior símbolo desse processo, que gera insegurança e se conforma como uma ameaça constante às soberanias nacionais dos países menos desenvolvidos, sobretudo os que possuem grandes potenciais energéticos e de recursos naturais.
Em meio a esse projeto de recolonização mundial, o capital monopolista se internacionaliza, vai além de suas fronteiras. Para tanto, necessita e obtém o que Vladimir Lênin denominou de fenômeno da dependência, advindo do entrelaçamento do domínio econômico-financeiro com o político e territorial.
Não foi por acaso que, no final do século 20, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, cria a chamada “Nova Ordem Mundial”, uma estratégia que se converteria em um plano de dominação global. Em artigo publicado durante a Conferência Internacional “A integração Latino-americana e a Luta pela Paz”, organizada pelo Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), o jornalista e escritor José Reinaldo Carvalho discute as estratégias norte-americanas para a recolonização do mundo.
Segundo ele, criar a “nova ordem” nada mais foi do que consolidar meios e modos que se converteriam em um projeto que percorreria “o novo século americano”. Esse projeto implicou em diversos conflitos e agressões que destruíram nações e reorganizaram o cenário geopolítico mundial.
O jornalista frisa que o contexto atual se caracteriza por uma “acumulação militar global”, guiada por uma superpotência mundial que está utilizando seus aliados para desencadear numerosas guerras regionais. Alguns exemplos citados são as agressões ao Afeganistão e ao Iraque.
“Países independentes, como a Síria, o Irã e a República Popular Democrática da Coreia, por motivações diversas foram alvo de campanhas e ameaças de agressão. Todos os acontecimentos que estão em curso no mundo ligados a conflitos políticos e militares estão relacionados com uma luta, a luta das potências imperialistas, sobretudo as capitaneadas pelo imperialismo estadunidense, que exerce controle e dominação sobre o mundo”, diz José Reinaldo.
Quarta Frota
De acordo com Igor Fuser, professor da Faculdade Cásper Líbero, a América Latina não ficou de fora desse processo. O relançamento da Quarta Frota, por exemplo, simboliza um novo olhar das nações imperialistas sobre esta região. “A Casa Branca sempre considerou a América Latina como um ‘quintal’ dos Estados Unidos e durante muito tempo logrou estabelecer na região um domínio amplo e relativamente estável, alicerçada em forte aliança com as classes dominantes domesticadas. O controle político e econômico do ‘quintal’ está ligado ao acesso a ricas fontes de recursos naturais e energéticos, com destaque para o petróleo”.
Segundo ele, a questão energética é estratégica para as nações imperialistas. “Já na época do ex-presidente Jimmy Carter, a doutrina militar norte-americana estabelecia que qualquer tentativa de impedir o fluxo de petróleo para os EUA seria respondida com a guerra. Venezuela e Brasil, por exemplo, são países ricos em petróleo, e as suspeitas de que a reativação da Quarta Frota tem a ver com a descoberta do pré-sal e com a revolução bolivariana na Venezuela são procedentes”, elucida o pesquisador.
Corrida armamentista
Dados dos últimos 50 anos, publicados em 2008 pela Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que há ações militares dos Estados Unidos em praticamente todos os países do globo. Segundo o relatório, 55 países possuem bases militares sendo utilizadas pela Aeronáutica, Marinha ou Exército norte-americano. Além disso, o relatório aponta a existência de mil bases norte-americanas no exterior, destas 268 estão na Alemanha e 124 no Japão.
O relatório também apontou que, no final de 2008, os EUA mantinham aproximadamente 550 mil soldados no exterior. Esse número é 10% superior ao de 1985, no auge da chamada Guerra Fria, o que demonstra que o complexo industrial-militar norte-americano encontrou justificativas para a manutenção, e mesmo expansão do poderio bélico do país, ainda que em fase de distensão do quadro político internacional.
Segundo dados da ONU, publicados em 2011, os gastos militares dos EUA representaram cerca de 50% dos gastos globais em 2010. Seus aliados, vinculados à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), despenderam aproximadamente 28% dos aportes em defesa, no mesmo ano. Assim, os EUA e aliados responderam, em 2010, por aproximadamente 80% dos dispêndios militares globais.
Sobre essa militarização em massa, Socorro Gomes, presidente do Conselho Mundial da Paz e do Cebrapaz, destaca que as nações antiimperialistas têm no seu caminho um desafio, sobretudo no que se refere à luta contra as guerras e pela paz.
“É preciso ter consciência e entender a natureza do sistema que há, hoje, nos EUA e nas grandes potências da OTAN. É preciso ter consciência da sua prática de domínio, de terror e de saque infringida às nações menos desenvolvidas, ou menos poderosas militarmente. Uma das respostas que podemos dar contra essa ofensiva se materializa nas campanhas contra as bases militares e contra a OTAN, nas denúncias contra essa política militarista e agressiva dos Estados Unidos e dos seus aliados”, explana Socorro Gomes.
Mare Nostrum: um olhar ianque sobre a América Latina
Desativada por mais de meio século, a Quarta Frota da Marinha dos EUA, poderoso instrumento de intervenção bélica criado durante a 2ª Guerra Mundial, em 1943, para patrulhar o Atlântico Sul e que inclui vários navios de diversos tamanhos, submarinos e um porta-aviões nuclear, foi restabelecida em junho de 2008 com o propósito “anunciado” de combater o tráfico de drogas, auxiliar em desastres naturais e atuar em missões de paz na América Latina e no Caribe.
No entanto, para o deputado Ángel Barchini, representante do Paraguai no Parlamento do Mercosul (Parlasul), a reativação da Quarta Frota foi desnecessária. Segundo ele, “a presença militar norte-americana foi e é entendida como ameaça à soberania da região. Além de demonstrar a preocupação estratégico-militar de Washington para com a América do Sul e África Ocidental, e como os interesses norte-americanos tendem a se fazer ainda mais presentes nessas regiões em um futuro próximo”.
Socorro Gomes afirma que a reativação da Quarta Frota, bem como todo o processo de militarização, se dá justamente na busca de controlar os recursos naturais das nações menos desenvolvidas. Ela cita como exemplo a questão da Amazônia, região rica em biodiversidade e que estimula a cobiça por parte de diversos países. Segundo ela, “a biodiversidade, a água, os minérios nobres, e agora o pré-sal, são fatores mais que suficientes para estimular a ambição das nações desprovidas destes recursos”.
A dirigente acrescenta que, além da Quarta Frota, é preciso refletir sobre o papel da OTAN no mundo. “Um braço extremamente armado dos EUA, dono de aparatos militares modernos, que se coloca acima da ONU, como se possuísse um mandato para realizar suas incursões. Essa organização está presente em diversos países, e um exemplo latente de sua força é a sua presença nas Ilhas Malvinas”, ressalta Socorro.
Quarta Frota e o Pré-sal
O ex-presidente da Agência Nacional do Petróleo, Haroldo Lima, em entrevista à “Agência Brasil”, no final de 2011, externou sua preocupação com a ofensiva norte-americana e com a possibilidade de os EUA contestarem a posse brasileira sobre as enormes reservas petrolíferas na chamada ZEE (Zona Econômica Exclusiva).
Segundo a Convenção da ONU sobre a Lei do Mar (acordo internacional que estabelece o limite dos mares territoriais de cada nação costeira firmada em 1994), os Estados litorâneos têm direitos exclusivos sobre todos os recursos naturais do seu litoral numa faixa de até 200 milhas náuticas (370 km). No entanto, os EUA não são signatários da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, o que abre brechas para discussões.
Socorro Gomes afirma que o não-reconhecimento das definições da ONU sobre o Direito do Mar, por parte dos Estados Unidos e das demais potências imperialistas, faz parte do posicionamento estratégico dessas nações, que por meio de ameaças, de terrorismo e pressões tentam sanar seus problemas e controlar e saquear os recursos das nações menos desenvolvidas militarmente.
Ela acrescenta que a militarização e a proliferação de bases militares, em diversas regiões do globo, sinalizam às nações latino-americanas a necessidade de concentrarem esforços para repensar suas políticas de segurança e garantir sua soberania frente a uma possível ameaça de agressão.
“Hoje, se alguém encostar aleatoriamente o dedo sobre o mapa do mundo, por certo indicará alguma base militar das grandes potências. São tantas as instalações belicistas dos Estados Unidos e da OTAN que todos os países do mundo são vigiados e intimidados de perto a todo instante”, declara a presidente do Cebrapaz.
Soberania Nacional
Ao passo em que as nações imperialistas empreendem sua estratégia de agressão, a América Latina há mais de uma década vive um processo de mudanças. Cresce a luta por sua soberania, por direitos e o bem-estar de seus povos.
Para José Reinaldo, esse processo de mudança está intimamente ligado ao processo de mudança do quadro político, com a ascensão de governos progressistas. ”A renovação do quadro político na América Latina, que tem como marco de formação a vitória de Hugo Chávez, em 1998, e depois a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, além das sucessivas vitórias das forças progressistas latino-americanas, mudaram, inteiramente, o quadro político do continente. Essa mudança foi essencial para que a nossa região perdesse, em definitivo, a qualificação de ‘quintal’ dos Estados Unidos”, explana.
Segundo ele, diante de todo esse cenário, os EUA reativaram a Quarta Frota como fator de chantagem e de pressão. “Uma violência latente, que manda um recado: ‘Não avancem tanto, pois nós estamos aqui’”.
Socorro Gomes reafirma que “a ampliação da presença militar americana na região busca, além de intimidar os processos políticos de transformação na região, posicionar sua força bélica em zonas estratégicas de grandes riquezas naturais. Trata-se de um verdadeiro atentado à paz, à segurança e à soberania de todos os países da região. Por isso, a América Latina tem avançado na busca da integração solidária, na busca de construção de políticas de segurança conjuntas. O reflexo dessa busca pode ser visto na ascensão de governos comprometidos com estas posições, comprometidos com esta soberania”.
Sobre a ascensão dos governos progressistas, a presidente do Cebrapaz afirmou que esta só se concretizou graças às lutas populares empreendidas pelos povos de nosso continente. “Essa mudança no cenário político abre caminho para a luta, para a resistência a essa hegemonia e para a construção de possibilidades, de soberania, de independência, de desenvolvimento social, de progresso e de integração entre as nações que sofrem com os mesmos problemas”, finaliza.
*Jornalista da redação do Vermelho, Pós-graduanda em Globalização e Cultura
Fonte: Publicada originalmente na Revista Visão Classista.