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Cap. XIV – Um táxi no rumo oposto

O enterro se dera num domingo. Deixaram Xisto atônito, a viúva devassando o passado recente do filho, à cata de explicação para o fato de não ter uma nora carpindo saudades. Na manhã seguinte, Chica e Maújo tinham a impressão de que o corpo conservava os miasmas do cemitério. Tomaram banho, perfumaram-se com água-de-colônia, dormiram como dois cansados romeiros. Não coitaram nem se perguntaram por quê.

Os miasmas se juntaram à suspeita de que, como amantes, tinham invadido uma cerimônia privada.
Ela regou as plantas com receio de voltar a sentir o mesmo cheiro no interior da capela, com as flores emoldurando o rosto do defunto. Desconfiou das margaridas, cujas pétalas compridas servem para enfeitar mortos. Voltou a experimentar o mal-estar de quando vira a funda testa do morto com uma flor em cima. A testa, pensou, sofrera marteladas. A de Xisto, com o mesmo formato, parecendo uma tampa de lata. Agora ele anda com a cabeça para o lado, como se fosse apoiá-la no ombro. A prestidigitação tão de seu uso, a depressão a embotara.

Chica colheu flores para sentenciar a inocência de seu jardim; cheirou-as e felicitou-se por não sentir engulhos. Depositou-as nos jarros da oficina, nos da quitanda.

Maújo sentou-se no birô às quatro da tarde. Estavam prontos os textos de Zadock Costa Neves. Manipulou-os com dois dedos numa das extremidades das laudas; um maço de provocações, convenceu-se. Leu sem rabiscar as agressões à sintaxe. O repórter, no esforço de adulação a prefeitos, escrevia quase às avessas. Com o fastio do enterro, o mal-estar da leitura, Maújo levantou-se para tomar café. Distraiu-se na conta do açúcar, bebeu e correu para vomitar na latrina.
Na volta, leu com rebolos no estômago, como se estivesse digerindo um repimpado repolho. Costa Neves lambuzara de cosméticos o perfil do secretário; referiu-se à etiqueta de suas roupas, de comum acordo, a etiqueta, com a elegância das palavras. No final, desencavou de Caruaru um político de nome bilioso – Circuito Ânderson -, guru de seguidas gerações, do secretário inclusive. “Circuito uma porra!”, quase gritou, Maújo, suprimindo do texto a descoberta fóssil. “Trapaceiro!”, ainda resmungou. A editora conhecia os enxertos do repórter, queixara-se algumas vezes, mais para mostrar autoridade. Mantinha Costa Neves porque sabia de seu trânsito fácil nos palácios, nos gabinetes; um trânsito promíscuo, com troca de favores, recebimento de propinas. Costa Neves, assíduo nos gabinetes e nas uisquerias. No bas-fonds, metia-se num carteado vicioso num beco estreito de São José, com comerciantes acostumados a burlar o fisco com propinas; todos gordos, diabéticos, com o alvará de funcionamento na parede, como um troféu. O repórter não tinha troféu, fazia-se de distraído para manter o crachá de repórter pendurado como um escudo na gola da camisa.

Às seis da tarde, ele voltava com ares de quem se reunira com a nata do poder.

– Amanhã, outro banho no concorrente!?

Para não enfartar, Maújo movia os vasos com as vísceras. A editora, elogiando títulos mentirosos, dizia que serviriam para deixar o concorrente pasmo, obter informações de fontes indecisas. Editora e repórter picavam-se ufanos da redação, deixando Maújo com um maço de baboseiras. Findo o trabalho, ele punha sua rubrica, um traço revolto à moda de rubrica.

– Deixo na rubrica a grife de minha revolta – dizia nas reuniões do Guadalupe.

Numa noite, ele foi à avenida Rio Branco. Pediu um daiquiri para mais rápido desfazer o nó-cego deixado pela dupla sinistra. Sozinho, como ficara na noite em que conhecera Chica. Não estava de ressaca, mas sentia-se sem rumo, caçado por invisíveis desafetos. Os vultos riam de sua impotência. Poderia sentar-se à frente de uma parede com versos debochados, licenciosos, escritos como um balé de mulheres seminuas; tomar dois potentes goles, aventurar-se na fantasia. De resto, uma radiola de fichas com um fundo musical neutro. Ele mesmo se encarregaria de dar a versão à trilha sonora do tédio.

Nas paredes do Gambrinus não havia versos. A radiola lamurienta, encosto de duas putas, ressoando sentenças. As mulheres, magras, pálidas, vestidas em brocados chinfrins; riram sem graça para Maújo. Ele riu para encobrir o fastio.

A noite podia ser de miçangas alegres se houvesse desfile de maracatus. O comércio fechara. Os bancos, no interior das portas de vidro, tinham cada um um vigilante com revólver de grosso calibre.

Meia dúzia de transeuntes nas calçadas, de conversa e memória vadias. As luzes nos postes, mesquinhas. Paralelepípedos soltos nas ruas. Do cais o vento soprava a maresia de mistura ao lodo do Capibaribe.

Chica estava à espera do parelho. Imaginava-a deitada na otomana, relendo sem enfado O Romanceiro. Urdia, ela, a Inconfidência em Olinda. Podia tornar-se confidente de suas conjuras no Guadalupe, agora sem a inconveniência de Xisto. Xisto tornara-se um duende. Não descobrira uma divindade nova em Salvador, não custodiara Chica.

De sua oficina para o Guadalupe, ela tinha cada minúcia dos quarteirões na memória; teria, num nicho do cérebro, os fios da barba de Marx; inda que os juntasse ao rosto de cera de Ogum. Maújo se surpreendera com ela possessa, mas logo ela retornou com a pele remoçada, o relevo das sardas amanhado por um orixá. Nas oferendas ficara neutro ou fora seu auxiliar hesitante; a perplexidade cedera ao encanto do mistério. Tinha medo de ser flagrado parceiro do candomblé. Da primeira vez, absolvera-o a fruição da nudez de Chica.

Agora ela o esperava sem remorsos, embebida na maresia impura do Beberibe. Debruçou-se na janela. O tédio que a movera da poltrona era o mesmo que fizera Maújo sentar-se no Gambrinus. Os dois, sem respostas para as urgências do dia, purgavam-se no devaneio carnal. No ofício, ela engendrava formas de suscitar luxúria, contorcendo o próprio corpo para descobrir curvas acrobáticas. Maújo cismava o assassinato de Costa Neves.

A brisa podre do Capibaribe foi cruel com ele. As duas putas não vieram sentar-se perto. A brisa trouxe Zadock Costa Neves.

– Encontro o lexicógrafo bebendo solitário, tramando a ocupação da academia de letras…

– É assim que fala com o secretário, quando ele trama a candidatura no próprio expediente?

– Como assim?

– Com zombaria.

– O secretário é um homem de bem, você é um cultor da gramática; não merecem zombaria.

– Você é um zombeteiro, Zadock. É a sua marca.

– Sou repórter. Especulo para investigar. Não é zombaria.

– Virou ficcionista ultimamente! Quem é Circuito Ânderson? Faça uma especial com ele, para a edição de domingo.

– Hoje é um velho gagá. Não valeria a pena. Se morrer amanhã, valerá o registro.

– Você é um repórter que amadureceu no costume de se apoiar na fantasia que faz da profissão. Isso não lhe dá problemas de consciência?

– Remorsos? Nunca matei ninguém…

– Mata a verdade a semana inteira, tem o apoio da editora. E eu sou forçado a ser o coveiro de suas vítimas.

As duas putas riram.

– Devia ser redator do Velho Testamento, Maújo. Em nova versão.

– Não. Quero ser o redator da sentença de sua condenação por seus crimes de lesa-razão.

– O tribunal é o poder. Eu escrevo para o poder. A imprensa é o poder. Você trabalha para o poder. Nós estamos de mãos dadas. Ainda não se deu conta?

– Você está sordidamente certo. Nasceu para defender a razão suja. Está tendo o seu tempo, que pode passar como uma instituição velha. Você sairá de moda, não tenha dúvida.

– Está falando como um foca. Eu o convido para uma conversa com o secretário. Não teria outra saída para você, a não ser a defesa do secretário.

– Se você pudesse grafaria em ouro as declarações do secretário. Ele o tem como um assessor fora do gabinete. Você trabalha como se ele estivesse soprando no seu ouvido. É um cão subserviente.

– Um cão de raça. Minha linhagem está escrita em minha assinatura nas matérias.

– Isso mesmo, Zadock. Eu sou o tratador desse cão.
Costa Neves pediu outro café, acendeu mais um cigarro. Maújo emendou meio tonto:

– Já que estamos sem solução, pego um táxi rumo oposto ao seu.

– O motorista pode ser um eleitor do secretário…

– Puto!