Cinema: triste história da censura ao sexo nos EUA
Tudo começou no verão de 1913, quando George Loane Tucker teve a ideia de fazer um filme sobre o tráfico de brancas. Filho de atores, por vontade paterna tinha estudado Direito. Mas, fiel à vocação familiar, lançou-se ao teatro primeiro e depois ao cinema, onde se tornou ator e diretor.
Publicado 15/02/2012 17:39
Sua visão sobre o tráfico e o comércio de mulheres foi bem recebida por um editor dos estúdios onde trabalhava. O colega era grande conhecedor do assunto porque seu pai havia sido oficial da polícia, encarregado durante muito tempo do combate ao tráfico humano.
Foi assim que Tucker obteve valiosos documentos sobre o tema. Entre eles, minuciosas informações do promotor da cidade e os resultados da investigação aberta por ordem do governador.
Quando o cineasta propôs o projeto a Carl Laemmle, proprietário da Universal, recebeu uma resposta negativa. Carl temia que o público se ofendesse com o tema. O amor era até então um bom negócio e vendia como pãozinho quente. O orçamento apresentado por Tucker era baixo e o risco de prejuízo, mínimo, mas investir na produção era o mesmo que se meter em águas desconhecidas, inexploradas.
O diretor, por seu lado, contava com o decidido apoio de alguns colegas que se entusiasmaram com a ideia. Vários atores mostravam-se interessados em participar. E foi assim que Tucker, aproveitando que o diretor geral dos estúdios se encontrava na Europa e que seu sucessor interino conhecia pouco do projeto, começou, em segredo, a rodar o filme.
O trabalho só foi possível graças à cumplicidade de seus colegas técnicos e artistas, que acobertaram a movimentação no estúdio. O diretor dedicava ao filme apenas as horas livres entre a gravação dos filminhos de um e dois rolos que fazia semanalmente.
Tráfico de almas
Deste modo nasceu Traffic in Souls (Tráfico de Almas, em português), protagonizado por Jane Gail, Matt Moore e Ethel Grandin. A obra daria início a um novo gênero. Quando concluiu o filme, em uma montagem embrionária que compreendia nada menos que 10 rolos, a façanha foi descoberta. Tucker foi despedido imediatamente e mudou-se para a Inglaterra, onde rodou alguns filmes.
O custo da sua aventura na Universal somou cinco mil e 700 dólares. Como sua duração parecia excessiva, o filme foi reduzido a seis rolos e — contra a vontade de Laemmle e seus sócios – levado ao mercado para recuperar pelo menos o investimento econômico. O público adorou e, surpreendentemente, os lucros chegaram a 450 mil dólares.
O cinema encontrou, graças à audácia de Tucker, um novo elemento de apelo popular: o sexo explorado como tema dramático. Como o filme arrecadou muito dinheiro, imediatamente surgiram obras similares, como Damaged Goods (Mercadoria estragada, em português), que expunha pela primeira vez no cinema os danos sociais e físicos da sífilis. Ou Where are my Children? (Onde estão meus filhos?, em português), que tratou do aborto.
Como moda que surgiu da noite para o dia, não durou muito tempo devido ao movimento de repúdio organizado pelas ligas puritanas e ao surgimento da censura do Código de Haya. Esse tipo de produção existiu, graças à insistência por parte dos realizadores, até 1965, quando enfim saiu do mercado.
A indústria do cinema não podia seguir bancando a multiplicidade de tabus estabelecidos pelo Código (a perversão sexual nunca será mostrada, o tráfico de brancas fica proibido como tema, o ato sexual entre raças também fica proibido, etc). Nem podia sobreviver às campanhas adversas ou às péssimas críticas que recebia de entidades como a Legião da Decência, que assustavam o público das salas de cinema.
Católicos vetam em nome de leigos
Para exemplificar o rigor na censura, basta lembrar que, em 1964, a Legião, uma organização fundada pelos bispos católicos estadunidenses, declarou que tinha analisado e classificado 270 filmes — entre os quais 208 eram estadunidenses — e que só 42 desse grupo estadunidense foram considerados apropriados para toda a família, esta é a cifra mais baixa na história da organização.
A Legião decidia o que era virtuoso, qualificando as películas em uma escala que ia desde "moralmente inapropriada para todos os públicos" até a rejeição absoluta de "condenada" ou "totalmente proibida".
Apoiava as classificações com votos de compromisso que seus membros emitiam para "condenar os filmes indecentes e imorais" e "como medida política, permanecer afastados dos lugares nos quais eram projetados". Isto é, assegurava-se a moralidade com o medo ao boicote.
Nem Bergman escapou
Ao agir assim, a Legião desconsiderava os valores dramáticos, técnicos ou artísticos, se atendo apenas ao conteúdo moral, o qual era julgado estritamente sob o ponto de vista dos legionários, ainda que tal atitude, traduzida em cortes de censura, afetava a liberdade dos não católicos para ver o que o diretor de um filme queria mostrar-lhes.
Os filmes estrangeiros também não escapavam do veto. Por exemplo, nesse mesmo ano, A Faca na Água, a revelação internacional de Roman Polanski, foi condenada "por causa de cenas de nu", e O silêncio, de Ingmar Bergman, terceiro título de sua trilogia religiosa e existencial, "porque a seleção de imagens é às vezes vulgar, insultante para um público maduro e perigosamente próxima à pornografia".
Derrubadas as barreiras do Código e amenizada a briga com as ligas puritanas, o tema sexual ganhou novos brios e liberdade para abordar assuntos até então proibidos.
Por Christiane Marcondes com informações da Prensa Latina e de historiador e crítico cubano de cinema